domingo, 27 de fevereiro de 2011

A INSÔNIA MÁGICA DE SCLIAR

Arte de Gilmar Fraga


Mágico é aquele que revela o segredo e todos continuam não entendendo o que ele fez.

Falo de Moacyr Scliar, autor de mais de setenta livros, entre romance, crônica, conto, literatura infantil e ensaio. Morreu neste domingo (27) à 1h, por falência múltipla de órgãos no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Foi o único ilusionista que me convenceu desde a infância. Incompreensível onde arrumava tempo para escrever e manter colunas na revista Veja e nos jornais Zero Hora e Folha de São Paulo.

Confessava que tinha disciplina e acordava cedo, mas não tinha como acreditar, ele mantinha um exército dentro de si, um exército de um homem só domando centauros, produzindo miragens, dobrando os dias, duplicando a claridade da página.

"Não se dorme dentro do livro. São turnos ininterruptos de luz", brincou uma vez comigo.

"Então, o livro é o único lugar de Porto Alegre que fica aberto 24h", respondi, e ele riu da minha conclusão, eu queria ter aqueles olhos azuis imensos e sobrancelhas quase transparentes para poder rir um dia.

Scliar era ubíquo, estava em dois lugares ao mesmo tempo, é certo que no coração do leitor. Suas ilusões mais conhecidas envolviam aparecimentos súbitos, leitura da mente, e tudo o que desafiasse a explicação racional com seus personagens fantásticos, sequiosos pela verdade como num Antigo Testamento.

Era médico para despistar seus poderes ocultos. Colocou, inclusive, o Cruzeiro de Porto Alegre na semifinal do Gauchão (partida decisiva é hoje), como um dos 19 torcedores do time.

Eu não conhecia no mundo alguém mais gentil, mais dedicado. As costas sempre eretas de nadador, o passo rápido, o mundo se apequenava com sua ligeireza: mandava cartas, telefonava para agradecer uma referência, antecipava notícias, não esquecia coisa alguma.

Foi o primeiro a me saudar na literatura em minha estreia com As Solas do Sol. Meu primeiro comentário crítico no jornal é dele: Carpe Diem. Carpe Carpinejar. Minha pasta de resenhas começa com ele.

Acentuava traços filiais na hora de contar histórias. Acentuava traços paternos na hora de repreender. Ele me enxergava fumando no saguão de um hotel e logo mandava:

- Põe no chão, põe logo no chão, antes que vá primeiro do que o cigarro.

A ameaça escondia uma preocupação, um conselho de amor. Eu apaguei o vício, ele nunca apagou suas virtudes.

Ele, ele, ele, cadê ele? Resta uma armada de ausências pelo Brasil. Não havia evento literário que não houvesse o nome de Moacyr Scliar no folder. Chegava ao Acre e ele passara por lá na noite anterior. Chegava ao Amazonas, ele aterrissaria no dia seguinte. Pulava para Pernambuco e nos encontrávamos para dividir a tapioca no café da manhã. Escolas pelo interior, universidades, bienais, Scliar, além de escrever sem parar com toda qualidade.

Mágico. Scliar era um mágico.

Choro e fico com vontade de recolher uma por uma de minhas lágrimas para não desperdiçar nada que vem de sua literatura. Ele não desperdiçou nada ao longo de 73 anos.

Agora está acordado dentro do livro. Lá ninguém dorme. Posso procurá-lo sempre que precisar.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

FEIURA RECOMPENSADA

Disputa realizada anualmente no município da região norte do Rio Grande do Sul consagra musos às avessas, como o pedreiro Carlos Kroth, 66 anos, atual bicampeão. Foto de Ricardo Chaves

A feiura é um dom. Assim enxergam os 9 mil moradores de Alpestre, cidade a 430 quilômetros da capital gaúcha, o ponto mais setentrional do Rio Grande do Sul, divisa fluvial com Santa Catarina. Lá no fim do Estado, na ponta oposta de Chuí, ocorre o badalado concurso “O Alemão Mais Feio”. É o avesso do Mister Mundo. A figura masculina mais desleixada e estranha ganha o prestígio de muso do município.

A disputa atrai um público empolgado de 1,5 mil pessoas e cerca de oito candidatos horripilantes. Os aplausos decidem a série de mata-mata.

– Ser feio não é para qualquer um – avisa o atual bicampeão Carlos Kroth.

Criado em 2003 a partir de uma brincadeira, o campeonato hoje é tratado com seriedade profissional pelos concorrentes, que se preparam para a decisão na Oktoberfest (em outubro). Nenhum patinho feio pretende virar cisne; pelo contrário, a intenção é se transformar num marreco. Eles realmente se estragam ao longo do ano para fazer a diferença e arrebatar o galardão: comem e bebem sem censura e descuidam da aparência de propósito. Nem tanto pelo prêmio simbólico concedido aos primeiros colocados (R$ 100 ao 1º e R$ 50 ao 2º), e sim pelo status. O vencedor é consagrado como herói local, a ponto de ser procurado para dar autógrafos e tirar fotos com as crianças.

– Quem perde se zanga e diz que foi roubado – avalia Claudir José Boniatti, presidente da comissão organizadora.

Há fofocas, chantagens, treinos fechados que aquecem o interesse da comunidade.

O agricultor Silvio Zimmer, 71 anos, concorre desde 2004 e o máximo que alcançou foi um vice-campeonato.

– É boca braba vencer; os outros homens não são feios, são horríveis – zomba.

Mas ele não desiste. Seu plano é completar oito dias longe do banho, para desespero de sua mulher, Maria:

– A fórmula de sucesso é virar bicho.

Entre seus truques, destacam-se o golpe chapado (tirar a chapa de repente) e a queixada (colocar o queixo avantajado para frente), além da numerosa torcida organizada que leva de casa (seis filhos e 11 netos). Na dura campanha eleitoral, Sílvio não descarta promessas assistencialistas:

– Se botar a mão na taça, pago rodada de cerveja.

O que atrapalha o desempenho é sua simpatia. Por mais que se esforce na careta, não consegue assustar, transpira doçura própria de avô. Maria, sua companheira de 51 anos, reza em segredo pela sua derrota:

– Finjo que torço, mas fico aliviada quando é desclassificado. Ele é lindo por dentro, conquistou o torneio mais complicado que existe: o coração de uma mulher.

Já Avelino Hendges, 71 anos, está desiludido com o fim do reinado. Era invencível até a chegada de Carlos Kroth. Acumulou os títulos de 2007 e 2008 e os vices de 2009 e 2010. Agora, busca recuperar a hegemonia e a inédita marca de tricampeão:

– Vejo os dois últimos embates como zebras, eu sou mais monstro do que ele.

Seus pontos fortes são a barriga proeminente com a camisa dois números abaixo e a perna esquerda mais curta, provocando o que chama de “compaixão do manco”. Também comparece sujo do trabalho na lavoura: para o cheiro tontear os adversários. O trago também é indispensável, distribuído no vinho de manhã, no conhaque de tarde e no chope de noite.

O atual cinturão de Alpestre, o pedreiro Carlos Kroth, 66 anos, tem a extravagante teoria de que se enfeia 6% ao ano. É uma espécie de inflação de rugas, estrias e flacidez. Sua preparação física é intensa: fuma duas carteiras de cigarro por dia, corta a barba pela metade, despreza o pente, come mal e dorme pouco.

– Sou pobre, sou feio, mas sou. Posso ser alguma coisa – filosofa.

Quando está sério, não mete medo. O que vem garantindo a larga vantagem nos confrontos são a gargalhada assustadora de bruxo e a barreira do riso de apenas três dentes. Se fosse levada em conta a conversa, não seria eleito. É um romântico incorrigível, com pôster de Leandro e Leonardo na cozinha. Kroth atravessa, na verdade, uma longa dor-de-cotovelo:

– Não sou amado para me amar.

Nunca se recuperou do divórcio com Cenilda, há 18 anos. Ela permaneceu em São Carlos (SC) com os dois filhos, e ele tomou a estrada para esquecê-la.

– Ainda a quero como no primeiro dia. Poderia cozinhar para ela, passar a roupa.

Solteiro, cultiva o abandono. O distanciamento da família desanimou sua saúde:

– Se tivesse uma mulher, seria bonito, iria me arrumar e me encher de loção.

Não há vitorioso que não tenha um ponto fraco.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
ps. 31, 26/02/2011
Porto Alegre, Edição N° 16623
Veja os vídeos do concurso no Facebook

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

SUPERMERCADO E AS MULHERES

Arte de Cínthya Verri


Sofro resistência de supermercado. Sou um cardiopata daqueles corredores gigantescos e intermináveis.

Não é que não goste, é que demora, sempre há uma dúvida de preço, de produto, de promoção. Só revisar a validade de cada produto posto no carrinho é uma trabalheira.

Quando minha mulher diz que é rápido, sei que vamos acampar na seção de frutas.

Nem comento sobre o caixa, o fim do rolo, a ausência de um código, a digitação errada de um preço que depende de um supervisor para ser corrigida.

Não é a Lei de Murphy que me apavora, é a constatação de que não desfruto de talento para a coisa.

Conservo o vício de armazém, feito para as urgências. É da infância o registro sonoro: vá ali comprar um pacote de feijão, um azeite, um saco de arroz, um refrigerante. Miudezas que completam a despensa. Naquele instante em que todo atraso estragará o ponto da comida.

Volto em cinco minutinhos. Não é necessário enfrentar congestionamento na garagem, filas, esbarrões, são cem metros livres e desimpedidos.

O super é um outro negócio. Afora o cansaço físico, temos que lidar com a onipotência feminina de querer lembrar tudo de que precisa em casa.

Mulher não faz mercado, é um balanço de firma, uma partilha de bens. Desde o nascimento, está preparada para o Juízo Final. Homem não é maduro para o apocalipse, não saberá escolher uma reles lembrança para justificar a salvação de sua alma.

Para elas, o supermercado é uma arte. São marchands das embalagens. Procuram a perfeição; aliar técnica e intuição. Acho que pretendem superar a mãe introjetada, e não dar a mínima chance para sogra. Não buscam correr. Há uma diferença entre se preparar e apressar. Elas se preparam para o ato. Valorizam o ritual, reparar, comparar, comentar novidades, é regra começar a andança pelo setor predileto para terminar por aquele que menos agrada.

Esquecer um item é um pecado, esquecer dois é um desastre. Demoram a noite inteira reclamando e se mortificando da falha. Têm um aproveitamento de 98%, mas não se aquietam.

O mercado deve ter sido a praça da infância. O parque de diversão. Ficam tão à vontade que consomem aquilo que estão comprando. É uma relação atávica de criança, a fome faz parte da motricidade: andar de balanço e comer pipoca, andar de gangorra e comer algodão doce.

Cínthya escolhe as uvas, pesa e vai degustando uma por uma até o fim enquanto passeia pelos corredores. Depois toma um pacote de salgadinhos e esvazia antes da esteira rolante.

Mulher come no mercado porque está em casa. É o único lugar em que não falta nada.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

ARCA DA ALIANÇA

Arte de Francis Picabia

Desvendei o motivo que faz um casal envelhecer junto. É um sinal prosaico e mínimo. Não se comenta de propósito, para evitar a escatologia e o emprego ostensivo. Fica-se como algo subentendido.

Não conheço amigo que vença o boicote; admitir sua existência é jogar contra o próprio relacionamento.

Representa um segredo de convivência a dois. Maior do que o sexo.

Aliás, pais e mães das gerações passadas foram condenados por não esclarecer o sexo aos filhos, mas alguém consegue explicar sem parecer ridículo? Dou graças a Deus que meu pai não teve nenhuma conversa séria comigo, que não colocou uma camisinha numa fruta, acho que nunca mais comeria banana em minha vida.

Tal mistério também não permite didática. É um dos raros códigos que se mantém em sigilo. Para que os aproveitadores não abusem de seu significado. Para que os porcos não se sintam orgulhosos.

Difícil traduzir em palavras, como toda onomatopeia.

O impulso inicial é ofender e logo gritar no meio da noite: “Fora daqui!”

Ainda há os que bancam os compreensivos, acordam e avisam que não enxergam maldade na atitude – terminam por inspirar o exemplo e cortam o casamento pela raiz.

Ainda há os que exaltam a diversão do gesto – não duram muito.

Ainda há aqueles que não superam o nojo e escolhem dormir em cômodos separados com a desculpa de que são modernos e não abrem mão do banheiro próprio.

Nem Mussolini, nem Madre Teresa de Calcutá, o certo é adotar a não-violência de Mahatma Gandhi.

Um casal permanecerá unido pelo resto da trajetória no momento em que um perdoar o outro pelo pum na cama. É perdoar, não tolerar. É simular que não se ouviu ou não sofreu com o cheiro. A distração é estratégica, inibe o avanço dos maus modos.

Apenas quem ama se controla. É capaz do mais alto sacrifício respiratório. No instante do estalo, finge-se de estátua. Não pensa em nada e espera que o ar do quarto se renove naturalmente.

É evidente que nossa companhia já estará envergonhada. Não precisamos notificar ou lembrar na manhã seguinte. Desde a escola não existe culpado pela flatulência.

Suportar o ronco do marido ou da esposa ajuda a chegar às bodas de cristal (15 anos). Mas silenciar diante do incômodo ruído é garantir as bodas de prata, de pérola, de coral, de rubi, de platina, de ouro, toda a riqueza interior, é tomar de assalto a joalheria inteira de aniversários.





Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 21/02/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16618

sábado, 19 de fevereiro de 2011

O VESTIBULAR DA INFÂNCIA

Fotos de Ricardo Chaves


Uma praça é coisa simples. Básica. A maioria dos prédios residenciais tem cantos de recreação. Não há nada de sofisticação e de luxo. É paisagem previsível como corredor de ônibus, como postes de luz, como pintassilgo no muro. Por mais humildes que sejam, escolas possuem um coração verde de grama e uma caixa de areia para risadas e acrobacias dos estudantes. Praça é espaço corriqueiro e óbvio, menos para municípios como Mormaço, a 250 quilômetros de Porto Alegre, terra abafada no alto da Serra do Botucaraí, reduto de pessoas gentis e atentas, que não dispensa a farta comida na mesa, um bom e autêntico feijão feito na banha de porco.

Apesar de organizada e impecável, das lixeiras verdes e amarelas de coleta seletiva na frente das casas, a cidade conta apenas com dois pontos para brincar: uma pracinha de cimento (Dona Luiza) e um parquinho ao lado do Centro Esportivo. Muito pouco para 596 meninos e meninas.

Existem sete balanços (descartei o que seria o oitavo, absolutamente torto), duas gangorras e um escorregador para atender todo o público infantil, que representa 23,11% da população total. A concorrência é acirrada. Uma média de 62,45 crianças disputando um balanço. É maior do que o índice de 45,32 candidatos por vaga do último vestibular de Medicina da UFRGS. A marca humilha igualmente a seleção da USP, a maior universidade do país, que teve 49,25 concorrentes por vaga. Termina sendo mais fácil passar no curso mais cobiçado do país do que arrumar um balanço em Mormaço.

A infância no lugar é um simulado, um teste de filas e tentativas, de desistências e desculpas, de frases paternais esperançosas: “amanhã talvez”, “hoje está lotado”, “quem sabe outro dia”. Os filhos arcam com dificuldades para ser pássaro e treinar pequenos voos. Sentar no balanço é um prêmio da paciência, longas esperas por valiosos minutos de leveza e sonhado vaivém.

O banal – tudo estaria resolvido na combinação de tábuas coloridas, arcos e correntes – torna-se milagroso. O aprovado na corrida por um embalo não pinta o rosto muito menos estende faixa na janela, mas expressa sua alegria pela ansiedade dos gestos. Nem senta direito, logo vai para trás, toma impulso e joga o corpo ao alto para acolher o zumbido do vento nas franjas.

O cenário poderia ser mais tranquilo. Mas a escassez atingiu a rede de ensino. Os dois balanços da Escola Estadual Joaquim Gonçalves Ledo, a principal de Mormaço, foram retirados. Restam somente as traves amarelas e enferrujadas para lembrar as glórias do recreio. De acordo com a diretora Rosilene Nicolotti Perticelli, não há expectativa de reposição. Na escola infantil Sonho de Criança, os balanços estão em conserto para tristeza dos 60 alunos dos turnos da manhã e tarde.

– Há os brinquedos de chuva, em casa, e os brinquedos do sol, na rua – diferencia Duane Follner, 10 anos.

Para os pequenos, a situação piora. Falta balanço com proteção no município. Bebês não terão a lembrança das mãos dos pais empurrando suas costas. A gangorra dobra a carência. São 125,5 crianças por um assento. Daí ultrapassa seleções históricas de concurso público, como a do Instituto Rio Branco. É mais vantajoso ser diplomata e superar 82 concorrentes por uma poltrona no Itamaraty.


– Pego a bicicleta e atravesso a cidade para ir à gangorra. Chegando lá, fico com pena de quem é menor e deixo passar na frente – comenta Duane.

O escorregador é o algodão doce, o chantilly, o brigadeiro da diversão. Um único aparelho para 502 moradores mirins em idade de usá-lo. Lucas da Silva Klein, nove anos, foi conhecer o escorregador fora do território natal, num passeio pelo Parque das Tuias, em Fontoura Xavier.

– Até me esqueço que isso existe para não ficar esperando – diz.

Mormaço já sabe o que deseja de presente de aniversário daqui a um mês, em 20 de março.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
ps. 30, 19/02/2011
Porto Alegre, Edição N° 16616
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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

MÃEZINHA

Arte de Pierre Bonnard

Minha mãe quebrou um pote de vidro de biscoito. Daqueles imensos, neto dos baleiros coloridos do armazém, com um aterro de farelos ao fundo que contentaria um cardume.

Eu não como biscoito. Não pego biscoito. Não sei qual o gosto do biscoito, se era de polvilho ou de maizena. Estava a dezenas de quilômetros do tropeço doméstico, tenho 38 anos, minha barba cresce grisalha.

Tanto faz, a mãe encontrou um jeito de me incriminar:

- Quebrou porque alguém não fechou direito!

Mesmo distanciada de mim, mesmo em área rural, aliviou sua responsabilidade e insinuou a molecagem. Teria sido eu quando a visitei em data incerta e hora misteriosa. Não adianta rebater:

- Pô, não tem sentido.

Não há justiça para mãe. Quando o filho é generoso, ela sempre dirá que é culpado. Se ele é criminoso confesso e presidiário veterano, dirá que é inocente. Não é que o filho faz o contrário do que a mãe pede, a mãe fala o contrário do que o filho faz.

Em sua concepção, ela não quebrou o pote, alguém alterou sua rotina impecável. Eu teimei em mexer nos seus mequetrefes altamente vedados e organizados por tamanho, cor e limpeza. Baguncei o santuário, cismei em entrar na cozinha.

Ela não tem prova, tampouco precisa, sobra imaginação na memória. Qualquer acidente é descuido de terceiros.

Caso realmente tivesse espatifado o pote, o resultado não seria diferente, anteciparia que sou distraído e mantenho a triste mania de segurar as coisas pela tampa.

- é claro que ela derrubou o pote porque segurou pela tampa mal fechada por ela mesma e não colocou em prática o que costumava me repetir -

Mas mãe não aconselha, manda. Sua isenção é uma façanha. É assim desde a infância. A maionese desandou nunca por sua distração, eu é que fiquei conversando. O gás acabava nunca pelo seu uso, é que suas crianças exageravam no banho.

Crueldade materna é conversar com o filho como se ele não existisse. É o emprego da terceira pessoa. Assombração da terceira pessoa. Um recurso mais eloqüente do que o sujeito indeterminado.

- Quem foi que comeu o bolo? Quem foi que sujou o sofá? Quem foi que não lavou a louça?

É tudo de modo indireto, oblíquo, como se você fosse um outro a delatar que foi você.

Eu pedia desculpa para minha mãe antes que ela terminasse de cobrar. Por hábito. Por medo. Talvez por preguiça. Por saber que ela vai criar o inferno até encontrar um bode, um cabrito, uma vaca, um cavalo expiatório. Não suportava sua investigação incansável pelo celeiro dos quartos.

Em toda família, há uma cobaia esperando a lista de chamada. Costuma ser o caçula, fui eu.

Minha mãe não entrou em terapia, não entende o que é terapia, ainda é do tempo do Serviço de Orientação Educacional.

Teve que criar, sozinha, os quatro filhos. O que significa que nada será mais grave do que isso - desnecessário contar sua versão dos fatos.

No momento em que é desmentida, põe o remedinho cardíaco debaixo da língua. Não dá para continuar, já estou abanando o jornal novamente arrependido.

Nem cumprimento a mãe com oi ou olá, já chego em sua casa com "desculpa, tudo bem?".




Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 111, Número 207
Fevereiro de 2011

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

PAR DE VASOS

Arte de Cínthya Verri


Mudar de casa é de menos – isso o frete resolve.

Quando a gente ama, muda de corpo. “No meu ou no seu?”

É caso de exorcista.

Trata-se de um só corpo mesmo. Não é brincadeira. Uma cama imensa e os dois encolhidos num canto, um sobre o outro.

Eu e Cínthya temos tantas coincidências que estamos dispostos a oferecer um curso de telepatia aos interessados. Não é apenas a cumplicidade que nasce da observação, ou a afinidade de gosto que surge da convivência, é um pouco mais, quem sabe antecipar reações, algo como ler o desejo antes de virar pensamento.

Costumo me acordar cedo, meu lado madrugador é forte, carrego DNA de colono – ao despertar tarde, acho que perdi o dia e fico mal-humorado, culpando cada tarefa, praguejando cada atraso. Eu me conheço e não pretendo impor o meu ritmo, bem diferente do dela, que adora se estender ao meio-dia.

Ando na ponta dos pés e fecho a porta para não incomodá-la. Espio para me certificar de que não precisarei de mais nada. Nem dou beijo de despedida. Quem beija antes de sair age por maldade, com inveja do sono alheio. Repare que não existe discrição no ato aparentemente enamorado, nem é um beijinho rápido, são vários pelo rosto, alguns pelo pescoço, uma porção pela boca. Como um cachorro lambendo, o sujeito apenas se acalma quando sua mulher abrir os olhos. Depois que o estrago está feito, sussurra de modo cínico:

– Dorme, é cedo.

Almoçamos junto todos os dias. No começo era assustador, agora tem sido engraçado, não há como evitar.

Eu chego, ela chega, as mesas nos observam: um par de vasos. Parecemos gêmeos xifópagos. As roupas de cores iguais. Sempre.

Se estou de vermelho, ela desponta de vestido vermelho. Se estou de azul, ela vem de blusa azul. Se mudo o repertório e ponho laranja, um fato raro, ela veste conjunto laranja.

Ela não me viu sair, eu não a vi se arrumando, ambos estão uniformizados como uma dupla de vôlei de praia. Fica ruim de caminhar, o mundo inteiro apontando, destacando a cópia.

Os atendentes e garçons cogitam a ação promocional de uma operadora de celular. Os amigos supõem que combinamos as cores e acessórios diante do espelho, que corresponde a uma homenagem, uma hashtag, uma campanha de incentivo ao casamento consciente. A semelhança é possível porque não planejamos. Com intenção, seria evitada.

O comentário que mais ouvimos é “não teria a coragem de vocês”.

Nem nós. A coragem no amor é involuntária. Talvez seja a definição exata de intimidade: coragem involuntária.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

sábado, 12 de fevereiro de 2011

ONDE ESTÁ MINHA BABÁ?


Neide foi surpreendida com a visita de Fabrício (foto ao lado) em São Valentim do Sul. Acima, com três anos, ele participa de festa do irmão Rodrigo, acompanhado da babá (ao fundo dos dois) na casa da avó materna, em Guaporé. Fotos de Tadeu Vilani

Queria reencontrar minha babá, que me cuidou do nascimento até os cinco anos. Um pouco de curiosidade, outro tanto de saudade e muito para retribuir o amor que recebi dela.

É uma das figuras mais fortes de minha infância, uma segunda mãe; uma mãe menos apressada, adivinhadora dos pensamentos. Sua voz ainda ecoa lá no fundo da memória, aparece entoando marcha soldado ou boi da cara preta. Está presente em tudo o que lembro no período – e talvez em tudo o que não lembro mas continuo sentindo.

Com certeza, viu quando engatinhei, quando caminhei, quando formei palavras legíveis. Ela me conhecia antes de mim: diferenciava minha dor da manha, meu medo da timidez, meu cansaço do desânimo.

Trabalhou na minha família por 10 anos (1967-1977), na Capital e em três cidades (São Jerônimo, Erechim e Caxias). Somente largou o serviço para se casar aos 32 anos, com o comerciante Milton. Se um dos quatro filhos de Maria Elisa e Carlos Nejar chorasse, de longe dizia quem era.

NEIDE ALESSI PAGANIN.

Tinha seu nome, uma pequena foto e o nome do município em que morava: São Valentim do Sul, cidade do Vale do Taquari distante 154 quilômetros de Porto Alegre. Nenhum endereço, telefone ou dicas, sem referência no Google, tampouco constava na lista telefônica.

Previ que sofreria para localizá-la. Mas para uma cidade com 2 mil habitantes, não enfrentei dificuldade. Os moradores conversam das janelas, todo mundo mostra que está disponível sentado na varanda, surge alguém estranho e os vizinhos competem para alcançar a informação.

Neide contraiu os olhos, caminhou escorada na parede por breve lance de passos.

Não acreditou que era eu, estava bem mais alto. Achei que não era ela, estava bem mais baixa. Transcorridas três décadas, invertemos a altura do olhar. Perguntou como poderia ajudar. Respondi que vinha atrapalhar.

– Não pode ser, não pode ser! Fabrício?

E me enganchou, quase esqueceu meu tamanho e me pegou no colo.

Neide está com 66 anos. Permanece com os cabelos curtos, sempre preferiu a praticidade do corte para não fugir do trabalho pesado na roça.

Sobreviveu a dois aneurismas, em 1999 e 2000.

– Acho que tu é meu terceiro – provoca.

Mora numa residência de madeira, de esquina, que funcionava como um bar. Fechou o comércio em 2009, desanimada com a morte do marido. Cuida agora dos três filhos Melissa, 32 anos, Marcelo, 29, e Camila, 26, e da neta, Manuela, três anos. Em sua residência, adotou alguns hábitos da minha avó, cortinas no lugar das portas, velas nas vidraças do banheiro e fotos escondidas nas gavetas das roupas.

– Para vestir lembrança – brinca.

De São Valentim do Sul, não pretende mais sair, nem para passeio. Seu prazer é cumprir ronda pelo bairro de tardezinha, entrando de casa em casa, para pôr as fofocas em dia e tomar chimarrão.

Ao me admirar crescido, seus olhos azuis estalavam como os bifes que fazia na chapa, os melhores de minha vida. Bem humorada, foi me devolvendo:

– Tu esticava o forro dos meus bolsos para conversar comigo...

– Não, não ficava quieto, aproveitava minha ocupação com os manos para tirar as panelas do armário e produzir barulho. Batia tampas, louquinho da silva, até que aparecesse de volta. Sempre foi escandaloso, carente...

– O Rodrigo, dois anos mais velho, gostava de ser teu pai e te levar, sozinho, na escola, no Santa Inês. Emburrava, embeiçava, quando adulto se metia a acompanhá-los...

– Tu não comia nada, vivia se escondendo no roupeiro na hora do almoço. Cresceu graças à bolacha de sal e patê....

– Teu pai veio do açougue, passou o embrulho para colocar na geladeira. Depois não achava um livro que comprou. Reclamou por dias, culpando a família. Na hora do churrasco, descobrimos que o maldito livro estava junto da carne...

– Tua mãe dizia que amor não se conserta, amor se reinventa...

Meu silêncio ia se acalmando com as histórias. Enquanto isso, no balcão do antigo bar, a neta servia chá para as bonecas. A menina povoou o salão inteiro com barraca, bicicleta e brinquedos.

Neide realmente nunca brigou comigo para arrumar a bagunça. Entendia que a brincadeira tem uma ordem secreta. Entende de criança.









Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
ps. 36, 12/02/2011
Porto Alegre, Edição N° 16609
Veja vídeo do emocionante reencontro

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

REEDUCAÇÃO EMOCIONAL











Nem sempre estamos dispostos a conversar e compramos brigas à vista.

Casamento e namoro são frágeis. Não se deve pensar duas vezes, mas sentir duas vezes.

As palavras ferem. Conviver é cuidado para encaixar o termo certo.

Muitas iras e divórcios tolos podem ser evitados com a reeducação emocional.

Numa retrospectiva, veremos que ninguém briga por grandes causas; os desentendimentos ocorrem por banalidades, como se indispor a levar o lixo ou o cachorro a passear, por não lavar a louça, por esquecer um pedido. Não é a ação que conduz a discussão, e sim a postura, uma frase torta, ríspida, agressiva que feriu o orgulho. Fácil entrar numa arena de palavrões, complicado largar a cena.

Em vez de dizer que ela fala mal da vida, diga que ela é exigente. Em vez de dizer que ela é tola, diga que é ingênua. Em vez de dizer que ela irrita, diga que ela gosta de uma polêmica. Em vez de dizer que ela é relapsa, diga que ela é distraída. Em vez de dizer que ela é histérica, diga que ela é passional. Em vez de dizer que ela está nervosa, diga que é sensível.

UM SINÔNIMO MUDA TUDO.

Ou quase tudo.

O que mantém firme uma relação é o talento de tornar o outro sempre importante.

Não é o mesmo que bajular. É uma vocação séria e rara antever a fraqueza ou desânimo e puxar a corda para o lado contrário. Soltar um agrado no momento de absoluta confusão. E não criticar, sob hipótese alguma, nossa companhia quando ela já está se criticando. Não concorde com seu desespero, seja oposição, por mais que ela tente convencê-lo que não há saída.

TODO OUVIDO É UMA SAÍDA.

Escute com atenção de um apaixonado. Ouvir é mais comovente do que adivinhar. Existe o costume de mostrar que compreende o próximo projetando suas atitudes negativas.

Não busque antecipar os dissabores, parece que tenta se livrar dos incômodos. Expectativa pessimista soa como rejeição e influencia o curso dos acontecimentos. Antecipar o que a namorada ou o namorado está pensando termina motivando crises.
Pergunte, apesar da resistência desfavorável.

TROCA-SE DE OPINIÃO COM FACILIDADE ENQUANTO AINDA É PENSAMENTO.

Uma das coisas que a mulher e o homem procuram é alguém que entenda seus defeitos. Que olhe os defeitos com ternura.

Cômodo e previsível aceitar as virtudes de nosso par, o difícil é acolher as manias e tiques, sem censura e repreensão. Sabe aquelas diferenças que tentamos mudar ao longo da convivência e não conseguimos corrigir?

Justamente elas que provocam saudade. Porque ela tenta conversar com secador ligado ou prefere estacionar em esquinas e entradas de garagens ou esquece, invariavelmente, a cafeteira ligada de manhã.

As diferenças incorrigíveis formam o temperamento. Não nos apaixonamos por quem é igual à gente, senão bastaria cruzar os cartões de crédito e as preferências para surgir o homem ou a mulher ideal.

AMAR É QUEBRAR PRÉ-REQUISITO, romper estatísticas.

Aquilo que pode ser ruim pode ser bom. Basta inverter a perspectiva e descobrir um novo jeito de respirar dentro do amor. Descobrir uma compreensão - sem data de validade - que é superior à tolerância - quando aguentamos por tempo determinado para em seguida cobrar a conta.

Admirar não apenas o que se é, mas o que também não somos e seremos.

MONOTONIA É TER UM PAR QUE PENSE IGUAL, CRIATIVIDADE É RECEBER O AMPARO DO CONTRAPONTO.

Não tentar convencer que sua opinião é superior, que seu estilo de vida é o adequado, numa cruzada alucinada por dominar seu parceiro, porém oferecer um jeito diferente de pensar os problemas.

Enquanto um casal concorre para definir quem está certo, ainda não há relação.

Ambos devem se desarmar dos preconceitos. Somar suas fraquezas, e não disputar forças.

Não é para engolir qualquer ato, mas identificar aquilo que somente nos incomoda e não é grave assim.

(Não incluo os vícios. Se ele é fumante e ela não, ele deve aceitar que vai parar de fumar. Sua mulher fará uma campanha absurda pela sua saúde. Até no começo, vai parecer a mais educada possível, cedendo espaços e cômodos para as tragadas, mas logo mudará de tática e apertará o cerco. Ao final, ou larga as baganas ou fumará na marquise do prédio.)

Criticar é uma forma de se apresentar superior ao outro. O humor é uma forma de ser melhor junto.

NÃO FAZ SENTIDO?

Rir de si talvez seja o mais eficiente conselho. A autocrítica é terapêutica. Se nossa esposa ou namorada percebe que falhamos e reagimos com leveza, não se enxergará cobrada e incomodada de errar.

Por sua vez, não desfrutar de autocrítica é cair na tentação do auto-elogio. Ao apontar o defeito na mulher, automaticamente estou afirmando que não sofro disso, que estou acima da situação.

INTIMIDADE SIGNIFICA CONHECER AS FRAQUEZAS DAQUELE QUE NOS ACOMPANHA PARA NÃO USAR A NOSSO FAVOR NO MOMENTO DA BRIGA.

É um fair play dentro de casa.

Mais: fazer com que ela ou ele não tenha vergonha por agir e ser dessa forma.

Caso seu marido seja careca, não deboche, com medo da opinião dos amigos e conhecidos. Muito menos tente encaminhá-lo, à revelia, a implantes miraculosos e calendários lunares.

UMA DAS PIORES FRASES É: ‘NÃO QUERO QUE FALEM MAL DE VOCÊ’.

Deixe que os demais falem mal, trate de falar bem para compensar. Ruim é quando engrossa o coro.

O pulo do gato é inspirá-lo a admitir a aparência. Várias vezes o que nos falta são argumentos para nos defender e desafiar o senso comum. Afinal, não casamos ou namoramos para gostar do que todos gostam, e sim para criar o próprio gosto.

Diga que quem é careca tem mais rosto para beijar. É só rosto, não há como errar o beijo.

Haverá, no ato, uma distensão do problema.

Caso ele seja obcecado por futebol e já está farta dos jogos intermináveis na tevê, apareça com a camiseta de um time totalmente desconhecido. Na hora em que ele questionar o que é isso, comente com displicência que é o uniforme de FC Radian-Baikal Irkutsk, da Rússia. Ele ficará intrigado e abandonará sua obsessão.

IGUAL RUPTURA DE CONDICIONAMENTO FUNCIONA PARA O HOMEM.

Caso sua mulher demore a escolher a roupa, o que é provável, destaque o quanto é caprichosa, abandone a atitude de azucrinar pelo atraso.

Caso ela arda de ansiedade e mande dez torpedos por dia, no estilo agência de notícias, não lamente que é insuportável e excessivo, diga que quando vem um a menos parece que ela não lhe ama mais.

Caso ela não cozinhe, confesse o quanto os vizinhos invejam a duração do gás em sua casa.

Caso fique impaciente diante de sua preferência por comédias românticas no cinema, avise que não achou algo parecido e forte nos filmes que chegue perto da história de vocês.

Nada tão delicioso na vida do que não se envergonhar diante de quem amamos.

ACEITAR O OUTRO É MAIS ROMÂNTICO DO QUE DESEJAR MUDÁ-LO PARA GANHAR O CRÉDITO.



Revista Cláudia
Fevereiro/2011, Nº. 2 Ano 50
Ps. 106-109

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

CONFESSIONÁRIO


Todo mundo já pecou. Confesse seu pecado comigo. Venha por aqui.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

OBRIGADO, SOGRA

Arte de Cínthya Verri


Infidelidade, falso testemunho, difamação, seja lá o que você aprontou, conte com o auxílio da sogra.

A ala masculina reclama dela, mas não deveria; é a fiadora dos namoros, sustenta casamentos, firma afetos, soluciona dilemas com seu exemplo vivo.

Em especial, quando mora longe. Quando reside no interior. Nos grotões. Nos baldios do mundo.

Não é uma ironia. Não é que a distância ajuda.

A mãe de sua namorada é a única que pode salvá-lo numa separação. É a Suprema Corte do Amor.

Não vai defendê-lo, esqueça. Não vai aconselhá-la a retomar os laços, esqueça também. Toda mãe deseja que sua filha acabe como uma tia solteirona. Essa história de arrumar um bom partido, um genro educado é canção de ninar. Mãe anseia, por dentro, que sua filha permaneça sozinha para manter a influência. Resgata o romance de modo involuntário. Realmente sem querer, mas funciona certo como unguento.

É até recomendável que sua mulher procure a sogra em vez da amiga. Se ela dormir na residência da segunda, as probabilidades de reatar são mínimas. A amizade não tem dó, a confidente sentenciará que você não a merece, é isso que todas dizem sobre os machos ao final da catarse.

Deixe-a seguir ao colo materno para curar as mágoas e as dores. É melhor do que um spa, mais seguro do que um convento, mais isolado do que uma masmorra. A visita gera o efeito contrário.

Minha colega de italiano, Francieli, discutiu feio com Roberto, estão casados há cinco anos. Homem adora lugar-comum e repetir clichês no relacionamento, chegou de madrugada do que era para ser um jogo de futebol e não passou no bafômetro do beijo. Respondeu, na maior cara-de-pau, que não bebeu.

Francieli pensou: se ele é incapaz de inventar uma mentira não merece uma segunda chance. Arrumou a mala e partiu para sua mãe, em Caxias do Sul. Dois dias de silêncio e greve com o marido, não atendendo telefone, não respondendo torpedo. A situação parecia séria, irreversível, carregada de orgulho e ressentimento.

Na segunda-feira, de repente, Francieli retorna para casa extremamente feliz. Outra cara, outra simpatia, disponível para ouvir a versão do que aconteceu naquela noite.

Perguntei o motivo da mudança.

— Eu não aguentei mais ficar na mãe. Não tive um minuto de sossego. Vi o quanto minha adolescência foi infernal. Ou me cobrava que deveria aprender a guardar as coisas ou que não prestava atenção ou que minha roupa estava com pelo de gato.

Francieli visita a mãe para falar mal de Roberto e volta para falar mal da mãe.

Uns dias com ela é sempre garantia de reconciliação.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

SÓ SOBRE MINHA FOTO DE MORTO



Toda fotografia é um arrependimento, por isso tiramos tantas. Negociamos o descontentamento pela quantidade.

Sou obcecado pela pose, natural de quem é feio e procura se perdoar nos defeitos dos outros.

Uma de minhas pirações é remexer o baú de casa para definir qual é a imagem de morto de meus parentes. Existe uma foto de morto quando a pessoa ainda está viva. Representa a foto definitiva, que sairá no anúncio fúnebre ou na lápide. Depois de seu clique, a morte recusa liminar.

Será a nossa efígie, nosso símbolo alfa-numérico, nosso hieróglifo.

Che Guevara, por exemplo, morreu mesmo ao se deixar fotografar por Alberto Korda em 5 de março de 1960, em Havana. Aquele famoso retrato, Guerrilheiro Heroico, que estampa hoje desde camisetas até calcinhas, foi a emboscada fatal dos seus traços.

Já posso ter minha foto de finado. Analiso com cuidado os álbuns, examino as olheiras, levanto com paixão o véu dos rostos das páginas.

Minha escolha é feita a partir de três itens: caráter, estoicismo e determinação. Privilegio a cena que esteja encarando a máquina, como um toureiro ferido, antevendo o pior e não se acovardando. Os olhos firmemente abertos, porém com as pálpebras pesadas, numa imobilidade curiosa de ostra.

A antecipação demonstra o receio pela boa vontade dos familiares. Não me ajudam a procurar nenhuma comprovante de conta na gaveta, duvido que se prontifiquem a perseguir o melhor perfil e ângulo.

Mas estou em dúvida. Há critérios extra oficiais.

A foto também depende de como morri. Em caso de atropelamento, costuma ser a da identidade, a que estava no plástico sujo da carteira. Nada mais anônimo do que o fundo neutro e as sobrancelhas tristes de funcionário público.

Ao me perder em acidente de trânsito, é provável que se utilize a da carteira de motorista. Com afronta orgulhosa das pupilas, estrelas de espora. O homem parece um caubói ao ser aprovado no exame de habilitação.

Vítima de crime hediondo, a tradição é recorrer à chantagem da formatura. Para aumentar a injustiça: cara com futuro brilhante e desaparecido em algum matagal. Ou com a família numa praia, acentuando o contraste da felicidade passada com o ressentimento atual.

Se eu fosse uma celebridade, seria numa suruba flutuante, com a careta bêbada no iate, a língua para fora, retardado. Uma vingança invejosa ao sucesso. Raramente são aproveitados os flagrantes líricos da infância. A tentativa é sempre publicar a mais recente ou a mais acessível. E também porque ninguém entenderia o que aquela criança fazia dentro do rosto daquele barbudo.

O que não gostaria é que fosse aproveitada a foto do passaporte. É a mais chinelona de todas. É abominável. Atinei de estrear um quimono preto. O que atravessou minhas têmporas naquele dia para inaugurar uma roupa oriental com minha fisionomia de vendedor turco? Custava abrir uma exceção e vestir uma camisa polo, algo agradável, simpático, discreto, de almoço no sogro?

Desejava mostrar que era cosmopolita, multicultural, atento às tendências e saí vestido de bairro Liberdade. Eu mesmo me fichei. Quimono em mim é pijama. Não nasci para seda.

O rosto anguloso, o nariz adunco e a boca miúda têm ternura talibã. É acentuar a suspeita. Qualquer neto de italiano e descendente de árabe será indiciado com um quimono. Ou é um traveco ou um terrorista. Ou um traveco terrorista.

Como passarei pela revista da alfândega de Nova York? Que esperança, jamais conseguirei o visto da embaixada. Eu sou a arma química. Eu me explodi antes da hora.

Fico por aqui. Minha pária é a língua portuguesa.

Publicado no Pernambuco
Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado
Recife (PE), fevereiro de 2011

sábado, 5 de fevereiro de 2011

LUGAR DE GENTE SÉRIA. E PONTO.

Fotos de Tadeu Vilani


Não pergunte muito. Não vista roupas coloridas e extravagantes. Não coloque o som alto no carro. Não tente pedir informações na rua.

Os pedestres vão virar o rosto e fugir. Quem é da cidade é da cidade, e ponto final. Os que chegam são suspeitos.

– Identifico os rostos estrangeiros na hora – avisa Ricardo Luís Schuh, comandante da Brigada Militar.

Sério é um município acanhado, um esconderijo da BR-386. São 38 quilômetros de chão batido após Forquetinha. Estrada minúscula, serpeada, vertiginosa.

– Nosso esporte é remar poeira – diz Valmor Antoniolli, 47 anos. –Não tem camping, não tem rio, não tem fábricas. Ficamos esquecidos aqui por Deus e pelo Diabo.

Sinais de celulares vacilam. Não há letreiros de hotéis e pousadas. A gasolina custa R$ 2,90 o litro. Nos bares, ainda persiste o caderno de fiado, com as compras acumuladas para acerto no final do mês. Homens andam com lenço no bolso da calça para limpar o suor. Mulheres penteiam o cabelo nas janelas. Ônibus de linha não tem pressa para sair, e o motorista conhece certinho o endereço de seus passageiros, e suporta atrasos sem reclamar. Não é o morador que precisa esperar na parada, é o motorista que espera o morador. Taxistas desapareceram. Os salões de beleza acontecem nos fundos das casas. Lojas são minimercados. O cemitério toma a quadra mais cobiçada do Centro – ironicamente, os mortos desfrutam da melhor paisagem daquela porção árida do Vale do Taquari.

Ninguém fica à vontade para rir na cidade de Sério. Não por ser um contrasenso, mas já prevendo a piada do visitante com o nome.

– Seriense não nasce chorando, nasce fazendo beiço para o destino – brinca Marisa Candido, comentando a falta de asfalto no acesso principal.

O estranho batismo reforçou uma fobia de turistas. As pessoas são desconfiadas, com um pé atrás.

– Não é antipatia, é timidez – esclarece Liane Farfatto, 38 anos, técnica em Enfermagem.


A tranquilidade torna-se a recompensa pelo isolamento. Ao meio-dia, Valmor nem fecha a loja aberta para almoçar com a família atrás do balcão. No costado do bar, reúne-se com sua mulher, Susana, 42 anos, seus filhos Wiliam, 15 anos, e Yuri, sete anos, e os sogros Victorino Danieli, 74, e Lídia Danieli, 73. Todo dia é a mesma coisa. William é o último a comer, Yuri é o primeiro a sair da mesa para esticar os braços diante do ventilador e monopolizar o vento, e Valmor provoca a sogra para um arranca-rabo.

– Só a convido para lavar a louça – cutuca.

– Ele me ama com culpa – responde Lídia.

A refeição costuma não ser interrompida por nenhum freguês.

– Aqui o cliente, além de ter sempre razão, tem imaginação – diz Susana.

As aventuras são por dentro dos pensamentos. O sonho das jovens é namorar sério e entrar de véu e grinalda na Igreja São José.

– Vale viver para esperar – diz Tatiana da Silva, 25 anos, que trabalha como babá em Lajeado, e noivou com Cedemir há pouco tempo.

Não descarta a possibilidade de passar a lua-de-mel na própria cidade.

– Quer maior privacidade? – desafia.









Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
ps. 34, 05/02/2011
Porto Alegre, Edição N° 16602
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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

CARPINEJARDAY





Jornal Zero Hora
Informe Especial, p. 3, Edição Nº. 16600
Porto Alegre (RS), 3/2/2011

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

MAIOR BODE

Arte de Cínthya Verri


Renato guarda lápis de cor no bolso para lembrar a infância, Felipe mantém bolitas de gude na mesa do escritório, meus amigos conservam canivete, ioiô, relógio do pai, jogo de botão, escapulário da mãe.

É um pertence especial que estimula a memória, um cheiro único dentre todos já sentidos. Um atalho do olfato — a exemplo dos terrenos baldios que encurtavam o caminho à escola.

Não tive sorte. Não é um bambolê que me põe a girar os olhos, não são o bolinho de chuva e a cueca-virada que me puxam as narinas. Não é a gemada adocicando a xícara.

O que me leva a regredir é o refil do boa-noite.

O ritual exorcista ocupava a maior parte do criado-mudo, não restava espaço para os gibis: o pratinho branco, o suporte de ferro e a espiral verde queimando devagar.

Deixava o quarto inteiro com odor de pneu, de plantação de cana, de estrada de terra batida. Não havia motivo para a mãe acender todo dia. Com o cheiro entranhado nas cortinas, nenhum inseto mais entrava no aposento.

Recordo da caixinha com desenhos infantis, um homenzinho careca brigando com o mosquito violeiro. Não soava engraçado para mim, continua não sendo.

O ouvido imerso na expectativa do cuco, o ouvido preso a um relógio de fósforos. A cada minuto, um palito riscado.

O labirinto esfumaçado do repelente me conduzia para o centro de um pesadelo satânico, onde a Verdade seria finalmente revelada.

É certo que vou me afogar na neblina, estou cansado, adormecendo, entregando minha alma.

Dormia tremendo debaixo das cobertas.

Na época que eu não tinha pecado tinha o dobro de medo. Criança acredita na gratuidade da violência, a culpa vem depois. Antes é o exercício do medo puro, antes o medo não era castigo, o medo era pressentimento.

As espirais formavam lentamente os chifres de um bode. Não qualquer bode, o Capra aegagrus hircus da aula de Ciências. Se bem que o nome não faz nada existir, há coisas que existem sem nome, o nome somente apressa a morte.

No ambiente escuro, espesso, minha imaginação transformava a brasa vacilante ora nos olhos da fera, ora na sua barba fumante.

Não adiantava contar de manhã que ninguém acreditaria. O demônio tira proveito da incredulidade dos adultos.

Sabão Rinso na roupa para matar os germes, Neocid na cabeça para matar piolhos, boa-noite para matar mosquito, não sei mesmo como sobrevivi.




Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

ELE? EU!

Arte de Philip Guston


Haverá um período em que o filho vai cansar do que representamos. É tão cansativo concordar sempre, tão chato alguém que tem sempre razão. Ele irá combater a nossa figura com a ironia que dispõe, porque acredita que temos culpa naquilo que ele está sofrendo.

A relação filial depende do término da idealização. Não somos os melhores pais do bairro, somos os pais que podemos ser.

É o que chamo de fim do feitiço do bebê, daquela relação harmoniosa de que o pai e o filho são a mesma coisa.

O desencanto virá, é uma previsão inadiável, surgirá com o nosso desemprego ou quando nos separamos ou quando cometemos uma deselegância em público. Não demora, a decepção chega, esteja pronto, ninguém é perfeito a ponto de esconder os próprios defeitos durante a vida inteira.

O filho não expressará sua frustração somente a partir de insultos, manhas na mesa e choro ao dormir - sintomas óbvios. Faz também de formas mais secretas e que muitos nem identificam. Uma delas é, de repente, gabaritar as provas da escola e passar de aluno C para A. Pensaremos que ele finalmente encontrou a vocação, que agora decolou para Harvard. Cuidado, grandes alunos estão escondendo grandes problemas. São os mais inteligentes, disfarçam os pontos de críticas para conquistar a indiferença. Como não tem desempenho ruim na escola, parece que está maravilhoso. Os conceitos tornam-se álibis para cultivar tiques e fobias em paz.

Já ouvi casais dizendo diante do orgulhoso boletim do filho: "Não preciso mais me preocupar com ele!". Sim, precisa se preocupar, agora mais do que nunca. O acerto não é isolado. Veja se ele não anda antissocial, se não está falando baixo, se procura contar seu dia?

O que é bom não é de todo positivo, o que é ruim não é de todo negativo.

Assim como é provável que o filho, nalgum momento, largará de nos chamar de pai e adotará o nosso nome como referência. Cheira a desamor, tampouco é; trata-se de um distanciamento necessário para criar sua identidade. Vicente, meu filhote, inventou de me caracterizar como "Ele". No começo, me magoou. Depois larguei de corrigi-lo. Pai é uma palavra difícil. Em vez de defender o meu desapontamento, é hora de ajudá-lo. Esclarecer que não sou seu centro do mundo, que ele está certo em procurar seus gostos e empatias fora de mim.

Já fui menino, é um horror amadurecer, vem os pelos, a voz muda, nos sentimos feios, não controlamos a sexualidade sequer entendemos os hormônios, existe o receio de que os outros também notem nossa transformação. É uma solidão que somente a timidez suporta.

Para o filho não ser um monstro não podemos fingir que somos heróis.




Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 111, Número 206
Janeiro de 2011