quarta-feira, 30 de junho de 2010

OLGA DE VOLTA

Arte de Cínthya Verri

Não empresto livro, não existe quem devolva. A generosidade é uma alucinação. Eu agora compro um novo exemplar e dou de presente. Já apanhei da minha ansiedade. Desisti de cobrar, e ouvir a desculpa mais esfarrapada.

Renunciei a metade da biblioteca alcançando obras a colegas — tamanha a euforia com o que li. Não captei a mecânica da maldição: sempre que passo adiante uma obra, o amigo some e desaparece. A gente falava toda semana, de repente ele muda de paradeiro, telefone, personalidade.

Emprestar um livro é o início do desaparecimento. É o suicídio do Orkut.

Ele ganha o livro, eu perco o amigo. Foi assim com Francisco e Esculpir o tempo, de Tarkovski, com Renato e Gramática expositiva do chão, de Manoel de Barros, e com Paula e Alguma poesia, de Drummond, entre centenas de relações extintas.

E não emprestamos algo de que não gostamos, é de nossa preferência, de nossa estima. Não duvido que seja uma primeira edição, numerada e com autógrafos. Por isso, dói o remorso.

O livro emprestado nunca será lido — é aquele que legaremos para depois porque não há pressa. Compraremos outros durante o período, que assumirão a preferência na fila da cabeceira. É impressionante o quanto boicotamos sua presença. Torturamos de espera e de silêncio. De propósito, para testemunhar a saudade de seu dono. É como o amor não-correspondido de uma conhecida. Sabemos que ela nos ama, mas fingimos que é uma novidade. Fazemos de conta que não reparamos nos sinais.

Talvez o livro emprestado seja a vingança a todas as multas recebidas nas bibliotecas das escolas e da universidade. Uma desforra adolescente ao azedume dos bibliotecários de avental. Um trauma pelos cinco dias obrigatórios de leitura. Pelo bolso de datas na última página. Pela mesada consumida nos atrasos reincidentes.

O pai, por exemplo, colocava carimbo na folha de rosto para garantir a reintegração de posse dos seus latifúndios de papel. Não adiantava nada: o movimento do sem-livro invadia suas estantes e não ressarcia os hectares de ar. Tampouco assinar o nome no verso da capa criava compaixão — apenas aumentava a vontade de não devolver.

Minha crença foi rompida neste mês. Ainda estou me recuperando. Quisera apagar da memória o que aconteceu e continuar desesperançado. É mais complicado ser otimista. Fui autografar Mulher Perdigueira em São Paulo. Na recepção, encontrei Inês. Não lembrei quem era Inês de supetão, fui me lembrando aos poucos, frame a frame, gesto a gesto. Os cabelos cacheados me ampararam — a sorte é que ela não inventou de pôr chapinha. Inês? Inês! Colega da faculdade! Seus olhos de mel puxaram a ferroada. Ela me entregou um envelope pardo. Dentro, Olga, de Fernando Morais.

— Toma, é seu!
— Meu?
— Sim, você me emprestou na cadeira de Jornalismo.
— Está brincando?
— E me disse na época: “Getúlio deportou Olga para a Alemanha nazista, portanto tem a obrigação de trazê-la de volta”.

Mergulhei numa vertigem retrospectiva, numa prévia de coma. Passaram vinte anos que cedi para um trabalho numa atividade de rádio. Ela não esqueceu: pelo contrário, carregou seu peso com a expectativa de me rever. Morou no Rio de Janeiro, em Salvador, casou, descasou, e não se desvencilhou do pacote. Quando viajava, levava junto, aguardando um encontro acidental.

Ela me devolveu — mais do que um volume — o cuidado com a amizade.

Pena que não recordava de quem eu tinha tomado emprestado esse livro.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 29 de junho de 2010

CONVERSA E PATRONATO

Fotografia de Ramon Mello
Quarta (30/6), 19h30 - Porto Alegre (RS)
A Saraiva MegaStore promove a segunda edição do projeto Entrevista Poética, com mediação do escritor Diego Petrarca. O bate-papo vai girar em torno da minha nova obra Mulher Perdigueira (Bertrand Brasil).

Shopping Praia de Belas
Avenida Praia de Belas, 1.181
Porto Alegre
Grátis - vagas limitadas
Tel: (51) 3231-6868


Quinta (1º/7), 18h30 - Gramado (RS)
Sou patrono da 14ª Feira do Livro de Gramado, que vai de 1º a 18/7. Estarei na abertura do evento, na Rua Coberta. Faço sessão de autógrafos dos meus livros.

domingo, 27 de junho de 2010

E QUE SE PONHA A ROUPA DO VENTO

Poema inédito
de Fabrício Carpinejar
Fotografia de Caio Vilela

O jogo é inventar a goleira
mais do que a bola.

Garagens são traves,
lápides são traves,
cercas são traves,
chinelos são traves.

O que pode ser levado
com uma mão,
adivinhado pelas pernas.

Postes de luz são traves,
placas são traves,
lixeiras são traves,
bancos são traves.

Marcar o chão numa linha imaginária,
daqui pra ali é o campo.
E o mundo não existe mais
fora do giz branco.

Um quarto está pronto a céu aberto.
Um quintal no meio da casa.
Uma rua cortando a praça.

Corra no jardim sonâmbulo,
pise a grama com raiva, raízes
são cadarços amarrados
nos tornozelos das árvores.

Há coices, quedas, uivos:
nada termina a vida,
essa explosão suspirada.

É um transe, a trave;
trânsito parado, feriado.
O defensor descansa
na tranca dos joelhos.
O pássaro voa de cabeça a cabeça,
descasca a chuva, espalha os cabelos.

A trave é montinho, formigueiro,
capuz de ciscos, ninhos.
Formigas transportam alimento
por dentro dos seus riscos.

Que seja capacete de moto,
um tijolo, um toco,
qualquer troco de mato e entulho.

Dez passos ao lado e uma altura infinita,
fazer endereço para receber cartas,
desenhar gol de letra.

Trave é o quadro-negro dos pés.
Caroço de brilho, queimadura de cometa.
Na praia, no calçadão, no descampado.
Tudo o que foi costurado pelo invisível
entre o corpo e uma porta.

Pedras são traves,
bambus são traves,
frutas são traves.
Até crianças são traves
para o adulto passar
de volta à infância.


Publicado na Revista Serafina
Folha de São Paulo
P. 18, Junho de 2010

sábado, 26 de junho de 2010

ENTREVISTA PARA REVISTA VEJA

O POETA DO TWITTER VOLTA À CRÔNICA
Adriana Caitano


Um dos escritores mais atuantes nas mídias sociais, o poeta Fabrício Carpinejar tem mais de 34.000 seguidores no Twitter, onde dispara frases poéticas e outras que podem servir de ingrediente a prosas futuras. Algumas delas estão em Mulher Perdigueira (Bertrand Brasil, 336 páginas, 39 reais), livro de crônicas que o poeta lançou na quinta-feira, no Centro Cultural B_arco, em São Paulo (rua Dr. Vírgilio de Carvalho Pinto, 426). Antes do encontro com os leitores paulistanos, Carpinejar falou a VEJA Meus Livros.

Seus três livros de crônicas, O Amor Esquece de Começar, Canalha! e Mulher Perdigueira, formam uma sequência?
CARPINEJAR - Sim. A prosa ainda está encharcada de poesia, mas há diferenças entre os livros. Canalha! tem uma levada mais de humor, há uma combinação maior entre o lirismo e a graça que vai se especializando em Mulher Perdigueira. A história se sobrepõe ao efeito, ao capricho da palavra. O Amor Esquece de Começar é uma visão mais feminina do amor. Já Canalha! é sobre um novo homem, que não é mais uma caricatura, não é mais o Jece Valadão palitando os dentes. Ele tem outra postura, mais feminina. É um homem fruto de uma criação maternal.

Ser canalha não é ruim?
CARPINEJAR - Não exatamente. O canalha é um tipo raro. É diferente do cafajeste, que faz propaganda enganosa, mente pra conseguir o que quer. O canalha, não, ele desde o início confessa que não presta. Mas tem uma qualidade que é a coragem de amar e de falar a verdade. Você vai saber muito pouco da vida de um canalha, porque ele é invisível. É anônimo. A mulher que se apaixona por um canalha, na verdade, se apaixona por si mesma. É diferente do caso do cafajeste, que quer tomar todos os créditos.

Você também desconstrói o ciúme, e parece admirá-lo.
CARPINEJAR - Isso mesmo! Primeiro, porque ele vai explodir no momento certo. A pior coisa que existe hoje é as pessoas terem vergonha do ciúme. Ele é tratado como doença. Você não vai dizer para o namorado que está com ciúme. Vai tentar sonegá-lo, escondê-lo, e ele só vai crescer. Se a mulher confessa que tem ciúme, o homem diz “Você não confia em mim?”. Assim, ele coloca em risco o relacionamento e não permite que você sinta ciúme. E eu acho que o ciúme é indispensável. Porque é a pessoa ciumenta que vai se importar com você, vai ser leal, escutar o que você diz. A gente pensa nos efeitos colaterais do ciúme, no barraco, no escândalo, mas a gente esquece o lado positivo, a cumplicidade, a intimidade, a preocupação. Ele só se torna incontrolável quando sufocado.

Você parece admirar não só a mulher que tem ciúmes, mas a que demonstra o que sente.
CARPINEJAR -Isso. Uma mulher passional, intensa. Eu parto do princípio de que a doença é a indiferença. Hoje, a gente tem medo do terrorismo amoroso. Então, a gente faz de tudo para ser controlado, equilibrado. Os casais dificilmente confessam seus gostos, opiniões, preconceitos. Há uma impessoalidade atávica. Um deixa que o outro o imagine, porque assim será muito melhor do que realmente é. É uma mania de grandeza, a gente espera que o outro nos corrija, nos aperfeiçoe. E a gente não fala com medo de desagradar. Eu sou favorável a falar, a aceitar manias, a lidar com elas.

Sua namorada, Cínthya, fez o blog “Matando Carpinejar” e escreveu um texto dizendo que não era ciumenta e você exigia isso dela. É isso mesmo?
CARPINEJAR - Eu acredito que ela vai chegar à pós-graduação do ciúme (risos). Eu acredito que isso do relacionamento é tocante, isso do quanto ele pode ser jocoso. Todo mundo fala “Eu te mato” no relacionamento. Ela decidiu me matar na imaginação. Ela é ótima. Um Leonardo da Vinci: é médica, psicoterapeuta, blogueira, poeta, cronista, desenha, dá a melhor ré do mundo, é capaz de consertar chuveiro, torneira, pia. Eu já dei vexame trocando pneu na frente dela.

Vocês parecem opostos…
CARPINEJAR - Eu sou o que gosta de discutir o relacionamento, faço até resumo. Adoro conversar. Acordo elétrico, ela acorda lenta. Eu acordo com uma agência de notícias dentro de mim. Sou afetivo no abraço, perguntadeiro, indiscreto. Tenho uma aparência meio irreverente.

Como assim?
CARPINEJAR - Quando me descobri feio, vi que não tinha nada a perder. Ainda criança, já era famoso. As pessoas me apontavam na rua, chamavam de extra-terrestre. O feio é naturalmente famoso. Eu sofri bastante. Comecei a escrever para ser invisível. O que o feio mais quer é isso, é não aparecer. Eu me lembro uma vez, eu tinha nove anos, meus pais estavam tomando cafezinho na sala com o Mário Quintana, eu passei um creme francês da minha mãe que ardia muito no corpo todo e fui para a sala pelado. Passei por todo mundo e ninguém olhou para mim. Voltei para o quarto comemorando, achando que tinha conseguido ficar invisível. Mas eu teimei em repetir o teste, o meu pai me pegou pelo cabelo e me deixou de castigo. Até hoje, acredito que consegui ficar invisível da primeira vez (risos). Mas, com o tempo, aprendi a me reconhecer feio e isso me deu liberdade. Se sou feio, vou me inventar, vou escrever. Aí, comecei a rir de mim. Se sou uma piada, eu vou contar a piada. Não tive mais medo de ser patético, de ser ridículo.

Você aprendeu a lidar com a feiura de maneira bem-humorada?
CARPINEJAR - Sim, eu vi que gafes rendem as melhores histórias. Tanto que cheguei a ficar viciado em gafe, queria colecionar várias para contar. Enquanto meus irmãos colecionavam figurinhas, eu colecionava gafes. E, então, não ficava mais envergonhado com um tropeço. Eu fui me humanizando.

Você tem teorias originais sobre relacionamentos. Elas vêm de suas experiências ou de sua observação?
CARPINEJAR - As duas coisas. Não vou entregar se o que falo é o que vivi ou pensei (risos). Essa dúvida é própria do escritor, como se fosse um segredo. Será que ele viveu tudo aquilo ou ele imaginou tudo aquilo? Meus filhos, quando conto uma história, querem saber se é verdade. “Aconteceu mesmo?” A gente quer ter esse prazer duas vezes, o da invenção e o da realidade, e os dois ao mesmo tempo. Mas fui casado por 13 anos e essa experiência foi muito importante para mim.

Você defende a união estável?
CARPINEJAR - Acredito que seja deslumbrante a rotina. É deslumbrante você acordar no inverno e ter alguém ao lado. Não tem como um casal se separar no inverno, vão ficar com muito frio. Não há lençol térmico que dê o calor do corpo. Isso já é bíblico. Nossa, agora fiquei até santo (risos).
Em Mulher Perdigueira, há uma crônica poética sobre o ato de pendurar a roupa no varal. Cada um demonstra sua personalidade na hora de pendurar a roupa. Se eu pendurar a roupa, minha namorada vai dizer que está errado, minha mãe, também, porque cada um tem um jeito de fazer. Há um método, a solidão é um método. Você demonstra sua personalidade se tira a calça com o cinto ou se tira o cinto antes de tirar a roupa. Se você coloca por último o sutiã na hora de se vestir, por exemplo, confessa que gosta dos seus seios.

Você acredita que tenha uma alma feminina, uma sensibilidade maior?
CARPINEJAR - Enquanto eu tiver uma alma feminina e meu corpo continuar masculino, tudo bem (risos). Eu devo ter uma certa audição feminina, pelo fato de ter sido criado pela minha mãe e de ter uma irmã mais velha que é muito próxima – foi ela que me ensinou a dirigir, que fez a primeira festa, foi para ela que confessei meus primeiros namoros. Isso deve ter afetado tanto minha sensibilidade que eu esqueço as falas dos filmes e nunca termino um assunto. O homem é visual, capaz de transar com as coxas ou os seios de uma mulher, e não com ela. Mas a mulher vai reparar como você trata o garçom, as amigas. Isso não sedução, é entendimento. Ela não quer um homem, ela quer o homem em seu mundo.

É aquela história de a mulher ver o todo e o homem ser mais focado?
CARPINEJAR - É que a mulher é romancista, o homem é contista. Ela quer o enredo. Mulher Perdigueira trabalha o quanto a dependência pode ser prazerosa. É a mesma coisa que funciona com o escritor. A gente tem que distanciar as aparências. A crônica não é feita para ser um cabedal de impressões, é para contar uma história. Muito escritor reclama, diz que é dolorido escrever. Escrever é uma alegria, uma dança. Deveriam perguntar para o escritor o que dói mais: escrever ou não conseguir escrever.

Em você, o que dói mais?
CARPINEJAR - Não conseguir escrever! Quando eu não escrevo, aí, dói. Aí, eu acho aflitivo. Um escritor com crise de inspiração é muito infeliz.

Você já teve crise de inspiração? Lendo seu Twitter, tem-se a impressão de que as coisas saem de repente, com facilidade.
CARPINEJAR - Não, é do momento. Eu acredito nessa espontaneidade do chiste, do improviso, da bravata, coisa de gaúcho, tirar o tapete da conversa. Somos três irmãos, a gente se provocava muito no almoço. Se ganhava uma guerra pela irreverência, pela graça. Eu passei a vida inteira jantando numa tribuna. Cada um desafiava o outro com suas histórias. É muito natural isso, ou seja, se eu gosto de alguém, eu vou cutucar, provocar, tirar sarro. Se não gosto, fico na minha. Digamos que é um teste de resistência, saber o quanto o outro pode ser bem-humorado até na sua rabugice. Eu acho maravilhosa a rabugice. O pessimismo é inteligentíssimo, é um radar das contradições. Então, eu não acredito que falte inspiração porque não me enxergo em mim. Sou muito mais biográfico sendo os outros. Se eu quisesse contar minha vida não teria inspiração nenhuma. Minha vida é um atrito diante das outras vidas. Eu vivo recuperando o que é meu nos outros. E vivo devolvendo o que é dos outros que estava em mim. É esse jogo de comparações.

Publicado no site da Revista Veja
Seção Meus Livros, 24/06/2010

sexta-feira, 25 de junho de 2010

MINHA VIAGEM É PELA CASA

Arte de Giacometti

Aceito a caretice. Extraviei o ânimo para camping. Nada mais desalentador do que espiar o dia por um zíper. Numa oca de pano. Acordar agachado e seguir com a impressão de que fui abandonado toda noite num porão. As costas reclamando da proximidade com a terra e a boca protestando pelo café morno.

Gastei a juventude procurando Woodstock. E só encontrei a lama.

Acampar é trabalhar o dobro para evitar trabalho. O que se desperdiça na preparação e na antecipação dos problemas nunca será recompensado durante a estada.

É aguentar a falta de água quente, conviver em filas de banheiro, rir de piadas sem graça para arrebatar a cumplicidade de estranhos e eliminar o medo de que algum deles seja um psicopata. Nem acredito que percorri 200 metros com um rolo de papel higiênico nas mãos, com cara de Sonrisal, cumprimentando as pessoas para despistar a necessidade.

Não me contento com a precariedade de festejar uma tomada ou uma lixeira.

Larguei o movimento estudantil na primeira excursão. Desertei de um Congresso do DCE. Já tinha pavor de pedir carona, sofri com a ideia de mendigar um colchonete.

Não lembro nenhum amigo descrevendo experiências prazerosas. O hábito é expor tragédias. Os mochileiros ajudam meus argumentos. Cometem o elogio do masoquismo e das privações. Talvez seja uma mania preventiva, arrumar histórias de superação na adolescência para se vangloriar na velhice.

Soa como miragem. É o mesmo que dizer que é inesquecível transar na areia da praia. Isso é para quem não conhece o Nordestão da orla gaúcha.

Acampamento é um internato voluntário, um serviço militar opcional. Armar barraca, carregar mochila com tudo socado, caminhar oito quilômetros, subir nas pedras, lascar os joelhos, para morrer de frio no topo do monte. Uma hora de caminhada para cinco minutos exclamando o pôr do sol e se convencendo de que a vida é linda perto da natureza.

Sou viciado em janelas, gavetas, guarda-roupa, travesseiros. Minha aventura é mexer nos botões do controle remoto. Procuro o conforto, não o luxo, a quietude das coisas em seu lugar, uma toalha de renda e um vaso de flores me dizendo onde é o centro da casa. Uma sala cheirando a livros e um quarto impregnado do aroma feminino.

Já sobrevivi a enchentes em Santa Catarina, já madruguei inchado de mosquitos em Mato Grosso, já perdi metade dos objetos e aparelhos por distração em Alagoas.

Não venha alegar que me acomodei, é gosto pessoal desde que minha avó colocou bolsa de água quente debaixo das cobertas na infância. Prefiro um quarto aquecido, uma cama fofa, e me recuso a dormir ao relento observando as estrelas. O romantismo morreu de pneumonia.

As viagens não me ensinaram a partir, apertaram a saudade e a vocação para voltar.

Não tomei jeito, não fiquei econômico. Não aprendi a fazer uma mala compacta e escolher o que devo levar de essencial e dispensar o que não será usado. Ela está cada vez maior. Com o superficial mesmo. Transbordando inutilidades. Pago excesso de bagagem, mas estou sempre prevenido para o sequestro. Desejo contar com várias opções de roupas para acompanhar a mudança do humor. Vá lá que esteja amarelo e tenha somente verde, vá que desperte vermelho e tenha somente branco. Há dias em que sou demônio, outros dias pai de santo. Continuo sendo o mais lento no detector de metal. Não deixo de botar o cinto porque ele vai apitar. A cintura está amarrada em minhas convicções.

A única barraca em que entro é a do meu filho debaixo da mesa.

Publicado no jornal Zero Hora
Editoria Geral, p.2, 25/06/2010 Edição N° 16377

“MEU RACIOCÍNIO É TORTO”

Irinêo Baptista Netto
Foto de Renata Stoduto



O único limite das crônicas de Carpinejar é o literário: nada de clichês


Uma das coisas que um cronista pode almejar é mostrar ao leitor uma forma diferente de ver um fato sabido ou corriqueiro. É oferecer uma nova perspectiva. Fabrício Carpinejar faz isso com uma desenvoltura embasbacante. Veja Mulher Perdigueira, compilação de 125 crônicas que lança agora, um ano depois de vencer o Prêmio Jabuti da categoria com o livro Canalha! A quantidade de sacadas que permeia seus textos é um desafio para o leitor.

Nas primeiras, você sente o impulso de copiar o texto e guardar no bolso da camisa. Na décima ideia genial, percebe que não passou das primeiras páginas e conclui que é mais fácil carregar o livro todo debaixo do braço porque os papeizinhos não dariam conta de tudo que se quer anotar.

Carpinejar está com 37 anos e 19 livros. Jornalista e poeta, escreve também para revista (Crescer), jornal (Zero Hora, por um tempo), site (Vida Breve), blog e twitter. Mesmo com um volume impressionante de trabalho, é constante e, de modo paradoxal, imprevisível. Como as estações do ano. O inverno sempre chega, mas pontuado por dias inesperadamente quentes.

Na entrevista a seguir, ele conta para que serve uma crônica e diz que prefere ser romântico a “sofrer sozinho e não ter ninguém para descrever o próprio sofrimento”.

Uma boa crônica parece sempre ser íntima na medida certa. O cronista se expõe o suficiente para deixar o leitor entrever o homem além do escritor. Essa é uma das coisas mais marcantes nas suas crônicas: a intimidade que consegue criar. Ela é calculada?

CARPINEJAR - Sem intimidade, não é crônica. Quem quiser esconder suas manias e gostos e ser impessoal, deve escolher o ensaio. Todo escritor começa escrevendo para se proteger, depois seu maior trabalho é escrever para destruir suas defesas.
Crônica é fraqueza, conversa, essas miudezas que decidem nosso temperamento. Não há medida certa, sei que posso desagradar meus pais, namorada, filhos, que não vão tolerar que conte certas indiscrições. Mas não escrevo para ter medo, escrevo porque o medo não é maior do que a minha vontade de me aceitar. Existe uma censura familiar que não permite a simplicidade. Meus amigos sabem que serão difamados – só faço biografia não-autorizada.

Há um limite para o que está disposto a escancarar nas suas crônicas ou qualquer experiência pode servir de ponto de partida para um texto?
CARPINEJAR - O limite é literário: não aceitar o clichê, desconfiar das aparências, despertar sutilezas, dar uma segunda chance para a rotina.
Pode ser um furinho na camisa de uma mulher. Pode ser meu hábito de largar a xícara de café no parapeito da varanda, como balde para a chuva. É compreender que um olhar é futuramente nostálgico, estou comparando o que fui com o que sou. Meu passado pode ser modificado em qualquer instante. O cronista não recebe visitas, ele visita sua própria vida.

Falam que um dos fantasmas a assombrar o cronista é a falta de assunto, mas esse não parece ser um problema para você. Ou é?
CARPINEJAR - Falta de assunto é para quem deixou de viver para escrever. Não me desligo. Meu raciocínio é torto, flutuante, troço das minhas aspirações, espio as contradições, tento investigar como surgiu tal atitude. Não hostilizo a estranheza, duvido do rosto para enxergar com as mãos.
Não suporto crônicas que se desculpam pela ausência de inspiração. A literatura não termina em mim. Sou tão narcisista que tomo os problemas dos outros como se fossem meus.

Quais são as principais qualidades de uma crônica?
CARPINEJAR - Autocrítica e humor. O humor derruba a desconfiança para a poesia entrar. O drama faz com que as pessoas se fechem e sejam avarentas com suas emoções. A piada humaniza. O riso é tão-somente um vento chorando.

E o pior defeito?
CARPINEJAR - Arrogância. Cronista que não debocha de si será moralista. O mesmo ocorre nas discussões de relacionamento, as brigas prosperam porque nos levamos a sério demais e desejamos no fundo educar nossa companhia.

Existe algum cronista que admira e lê com frequência?
CARPINEJAR - Rubem Braga foi o maior dentro de um gênero menor, a ponto de fazê-lo maior.

Para que serve uma crônica?
CARPINEJAR - Para lembrar que a chaleira está fervendo.

Pelos textos, você parece um romântico irrecuperável.
CARPINEJAR - Sou um romântico que se atualiza e se recupera a cada gafe. Wando não era romântico, só pedia a calcinha. Quem é romântico pede a lingerie completa. Pede também o sutiã. Não sei viver ímpar. Conto os pássaros da migração para ver se estão voando em par. Protejo minha ilusão com toda maldade. Casamento é tão delicioso, depender é tão delicioso, quero uma mulher que sempre complete minhas lembranças, que me ajude a lembrar de mim. Não confio na memória, confio no amor. Se vale a pena, nunca fiz essa pergunta. Pior é sofrer sozinho e não ter ninguém para descrever o próprio sofrimento.

Você escreve sobre relações amorosas, pais, filhos, separação e a lista é longa. Existe algum tema em que se sinta mais à vontade? Ou trabalha com fases?
CARPINEJAR - Acho que é por necessidade mesmo. Eu me alterno. Largo o tema antes de ficar embriagado. A pior coisa é transformar a embriaguez em porre. Por exemplo, não consigo mais tomar saquê desde que passei da conta numa noite. Não suporto nem o cheiro. Gosto da saudade para poder voltar.

Como descobre os temas que fazem a sua cabeça?
CARPINEJAR - Quando não consigo pensar outra coisa: a crônica interrompe o trânsito das ideias. Transforma a rua em feira de fruta.

Serviço
Mulher Perdigueira, de Carpinejar. Bertrand Brasil, 336 págs., R$ 39


Publicado no jornal Gazeta do Povo, capa do Caderno G
Curitiba (PR), 24/06/2010

quinta-feira, 24 de junho de 2010

ACOMPANHE O LANÇAMENTO EM SÃO PAULO





Sessão de autógrafos de "Mulher Perdigueira"
e debate com Márcia Tiburi
Espaço Cultural B_arco, quinta (24/6)
Broadcasting via Twitcam

quarta-feira, 23 de junho de 2010

SIGILO PROFISSIONAL

Arte de Cínthya Verri

Escritor é fofoqueiro. Fofoca até o que acontece em sua imaginação. Se a vida não ajuda, ele trata de ajudar a vida inventando casos. É um trabalho em equipe.

Uma das minhas euforias é contar o dia para minha namorada. Volto de uma palestra, de uma aula, e vou falando sem nenhum empurrão. Narro que toquei no braço da poltrona e vi um chiclete colado no forro e fiquei sondando qual foi o palestrante porco que me antecedeu, lembro que fui elogiar um brinco da mediadora e era uma cicatriz, falo mal de uns e de outros, reproduzo o desempenho dos estudantes que mais crescem na atividade, cristalizo frases do Vicente (“Só sonho nos finais de semana, quando tenho direito a dormir até 8h30”) e coleciono dados para impressioná-la, tipo que a empresa Marco Polo vendeu 700 ônibus para Copa ou que Robinho é o jogador que fez mais propagandas no país. Confesso o que comi no almoço, o que jantei, quem encontrei, atualizo as histórias de meus amigos prediletos (todo amigo é uma fotonovela). Reproduzo frases do twitter, explico os textos que escrevi, sou uma draga.

É evidente que busco o contraponto e pergunto no meio da catarse noturna: “Como foi seu dia?”

Instante de tirar os sapatos, relaxar e intercambiar experiências. É a pausa para não me envaidecer com as próprias lembranças e desafiar os olhos a piscar devagar.

Mas ela me responde sempre com “bom”.

E o atendimento?, insisto.

“Deu tudo certo.” E o papo termina sem mais nem menos. Não termina, expira.

Namorar uma psiquiatra é o equivalente a namorar um agente secreto. Não há passado, mas prontuários. Ela não me abre coisa alguma, avisa que é tudo privado e segredo de paciente. Uma confidência de padre. Que não insista, que sua clientela confia nela. Tem uma bula de argumentos: se cochichar um hábito, sou bem capaz de reconhecer seu portador na rua.

Já ousei trilhar as perguntas de vários caminhos e sou interceptado com lacônicas generalizações. Não me esclarece se é homem ou mulher, sua saída é usar “uma pessoa”. Alta ou baixa? Nunca. Magra ou gorda? Nunca.

Fujo de seu telefone para não causar mal-estar. Quando tem uma urgência, saio de perto e cantarolo a fim de abafar o som. Eu me reprimo para não me deprimir.

Cogito em criar uma associação dos namorados e das namoradas de psiquiatras. Para discutir tudo o que não sabem dos seus parceiros e como admitir a inexistência diurna.

O máximo de intimidade é quando ela diferencia o atendimento entre pesado e leve. Pouco alcanço o que está passando, do que enfrentou em horas e horas de divã, se tem conseguido absorver traumas e resistências. Quem diz que não está metida numa boca braba? Não irei desconfiar. Não há um vazamento para descobrir a calha quebrada. Ela não fala, não pode falar. Não comenta uma indiscrição, guarda para si, uma pira espartana. Partilha convicções de uma seita, participa de uma mensagem cifrada, abraçou uma vocação, uma missão altamente solitária. Algo que minha curiosidade não aceitará. Não faz nenhuma diferença se prometo segredo — ela me achará abusado e invasivo. Não está no horizonte correr riscos profissionais pela minha carência. É assim e que trate de me acostumar.

Se eu fosse um colega, talvez me pedisse conselhos, talvez me ligasse para confirmar a dosagem da medicação, talvez dedicasse noites a detalhar fatos e cruzar informações. Apaziguada, desligaria o abajur, encostaria o rosto no peito e me agradeceria sinceramente pela ajuda e paciência. Eu me sentiria importante, lavaríamos os jalecos na mesma máquina de lavar. Ela não arderia de medo das minhas palavras e atitudes. Em nossas gargantas, haveria um idêntico juramento de formatura.

Mas eu não tenho anel verde de médico, meu sonho é a aliança que simplifica e democratiza as confidências, sofro horrores porque desconheço o dia dela. Não diferencio sua segunda da terça da quarta da quinta da sexta. É tudo um dia bom.

Ou arrumo um psiquiatra para desabafar ou curso Psiquiatria enquanto é tempo.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 21 de junho de 2010

ELEGÂNCIA É ACEITAR A GAFE

Veja entrevista dada a Saraiva Conteúdo. Soltando o verbo em minha passagem pelo Festival da Mantiqueira, em São Francisco Xavier (SP):


DEU NO JB


Mulher Perdigueira (Bertrand Brasil, 336 ps.) surge como o sexto livro mais vendido no país pelo Jornal do Brasil, segundo levantamento da última semana e publicado no caderno Idéias no sábado (19/06).

sexta-feira, 18 de junho de 2010

A IMPORTÂNCIA DO TIO PARA A EVOLUÇÃO DA ESPÉCIE

Arte de George Grosz

Toda família tem um tio fracassado. Aquele tio que não se firmou em nenhum emprego. Ou um tio tarado, o que erramos o nome da nova esposa.

É uma figura essencial para o equilíbrio genealógico. Será a fonte de fofocas na falta de assunto durante as datas festivas. Em caso de silêncio fúnebre na hora do pernil, é alguém perguntar “E como está o tio?” e a maldade alegre volta a correr solta.

Tio é o único parente que pode ser nosso ou não, dependendo das circunstâncias. Um ioiô de nossas vontades. Um curinga do nosso oportunismo. Se ele comete um crime, nunca ouvi seu nome, é muito distante. Se ele fica milionário, é irmão de meu pai ou de minha mãe, achegado demais, um padrinho espiritual.

Falo de cadeira cativa, sou tio, nem quero descobrir qual o meu papel para os dois filhos de Carla. Talvez seja o do tarado e do fracassado simultaneamente.

O bom de exercer essa função intelectual é que não temos noção do que representamos para os outros. O tio é o que nos mantém jovens, uma década mais velho ou alguns anos a mais, porém sempre acabado ou vítima de uma recuperação difícil, o que dá no mesmo para assegurar o viço de nossa aparência. Em função de sua coragem (que para muitos é inconsequência), alimento uma admiração clandestina pelo personagem.

Pois encontrei com o tio Daciano no último final de semana. Simpático, fanfarrão e encharcado de uma felicidade pouco educada (como deve ser a autêntica felicidade). Foi num churrasco de improviso, em que sobram copos e os pratos não são suficientes. Ele mora no Acre. Não entendo direito do que vive, acho que é de transporte de carga.

Nossas conversas eram tomadas por demonstrações. Eu pretendi antecipar seu sofrimento com o inverno gaúcho. Negaceou com os dentes e mostrou sua jaqueta de couro, toda forrada de lã.

– Não sofro, vê essa jaqueta?

Toquei na blindagem, analisei o zíper e elogiei seu aspecto imponente de armadura.

– Comprei por R$ 50 na Bolívia. Tenho três na mala.

Mudei de tema e confessei que meu relógio machucava o pulso, apesar de não abdicar de pulseira grande, chamariz da curiosidade feminina. Ele riu, e retirou três exemplares de sua jaqueta.

– Comprei por R$ 80 na Bolívia. Troco a cada viagem. Quer ver?

Arrisquei comentar de perfumes, que meu refil de Diesel terminou. Ele sacou três vidros de um bolso secreto da jaqueta: Jean-Paul Gaultier, Carolina Herrera e Armani.

– Experimenta! Comprei na Bolívia pela metade do preço. São de 50ml.

Depois de borrifadas e testes, lamentei que não havia café para lavar a respiração. Que nada, ele arrancou um saquinho de grãos dos fundilhos da calça e estava resolvido o impasse.

Eu me enxerguei diante de um colecionador. Um mágico retirando das mangas o Zoológico de Sapucaia. Ele agia como um expositor ambulante. Encarnava o casamento da revista da Avon com a Enciclopédia Mirador. Sua língua imprimia preços de passagens, de celulares, de computadores, de iPods. E fechava a vitrine tocando em meus ombros, num suspiro samaritano: “Fabrício, está pagando caro sua vida...”

Quando ele começou a falar de sua mulher, não resisti:

– Já sei, conheceu na Bolívia.

Publicado no jornal Zero Hora
Editoria Geral, p.2, 18/06/2010 Edição N° 16370

quinta-feira, 17 de junho de 2010

AINDA


Quinta (17/6), 19h30 - Canoas (RS)
26ª Feira do Livro
Encontro com Marcelino Freire
Local: Calçadão da Rua Tiradentes
Contato: (51) 34784449

Terça (22/6), 21h - Porto Alegre (RS)
Sarau Elétrico
Tema: Ciúmes
Com Kátia Suman, Cláudio Moreno, Luís Augusto Fischer e Claudia Tajes
Leitura dos textos de Mulher Perdigueira e autógrafos
Canja musical de Marcelo Duane
Local: Ocidente
(Oswaldo Aranha, 960, 1° andar, Tel.: 51 3312.1347)
Ingresso: R$ 10,00


Sexta, 25/6, 17h, Rio Branco (Acre)
Sempre um Papo
Debate e lançamento do livro Mulher Perdigueira
Teatro Hélio Melo
(Avenida Getúlio Vargas, 309, Centro)

quarta-feira, 16 de junho de 2010

PERDIGUEIRA!



Meu novo livro "Mulher Perdigueira" (Bertrand Brasil, 336 páginas) é o terceiro mais vendido na Livraria Cultura em todo o país. Aqui.

A sessão de autógrafos em São Paulo já está marcada: quinta (24/6), às 19h30, no Centro Cultural B_arco. Haverá debate com Márcia Tiburi, escritora, filósofa e integrante do programa Saia Justa do GNT.

Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 426
São Paulo/SP (11) 3081-6986
E-mail: contato@obarco.com.br

PLAQUETAS DE AEROPORTO

Arte de Cínthya Verri

Sempre acalentei o sonho de desembarcar no aeroporto e assumir uma identidade falsa. No saguão, avistaria uma placa, tipo Sr. Nertal, e abandonaria meu CPF:

— Sou eu!

Não forçaria intimidade, soltaria evasivas sobre as condições climáticas e o tempo de viagem. O impostor é que tem necessidade de convencer e fala pelos cotovelos.

Seguiria no carro com a arrogância de um casaco na mão. Seria levado para um negócio ou uma trama no escuro, concordando nas duas primeiras perguntas e discordando nas seguintes. No primeiro contato, não existem questões dissertativas, somente de múltipla escolha. Até um chutador de vestibular goza de método e cria ordem da casualidade. Fácil convencer que sou um outro, a maioria das comitivas de recepção não conhece realmente o convidado.

Não arrisquei ainda porque não provoco mais a minha sorte. Terminaria numa emboscada de traficantes ou num encontro sigiloso de cobaias de medicamentos.

O que me enerva nas minhas chegadas é que qualquer coordenação de feira e palestra promete que haverá um motorista me aguardando com a plaqueta de meu nome. Nunca há. O motorista tem vergonha de receber alguém. É sua maior humilhação, entende como um rebaixamento de seu posto. Uma agressão ao seu status. É acumular cargos. Alguns mandam os filhos para se prevenir das piadas dos conhecidos. Outros, mais religiosos, supõem que a clarividência irá salvá-los, que desvendarão o passageiro pelo cheiro de poltrona e pelo trotear das malas.

O impasse é que o motorista ou seu representante juvenil deixa o cartaz entre os joelhos e o umbigo, totalmente abaixado e virado. Quase como protegendo o saco numa cobrança de faltas. É o único lugar que não vou olhar.

Realizei centenas de voos e não ganhei sequer um letreiro levantado ou afixado no peito. Era minha aspiração literária: experimentar um dia de torcida para quem não foi esportista e não ouviu seu nome gritado pelas arquibancadas. Que seja uma cartolina escolar com letras falhadas e a régua de lápis por baixo. Não exijo um impresso, que é muito profissional. Eu me bastaria com uma folha de ofício e caligrafia apressada de agente rodoviário.

O que costuma ocorrer é pousar, passear pelas salas e não localizar ninguém paramentado, telefonar para a produção, descrever minhas roupas e descobrir que o motorista estava ao meu lado, discreto e despreocupado cortando as unhas no cinzeiro. Atendemos os celulares ao mesmo tempo e ele não sente culpa alguma pelo desencontro. Pega o papel indigesto, amassa em quatro vias e coloca no bolso.

Motorista abomina porta-estandarte, não admite ser passista de aeroporto. Sofre cólica ao imaginar que espera um macho. Deduz que terá prejuízos incalculáveis com sua clientela. O cartaz é seu airbag, o último recurso numa colisão.

Já flagrei um buscador com guardanapo de boteco. Só que ele não precisava assoar o nariz com meu sobrenome.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 15 de junho de 2010

SEM ALTAR

Arte de Natalia Goncharova


Vinte dias antes do casamento, com festa acertada e casa comprada, ele muda de ideia e desiste da vida a dois.

Fossa é no Consultório Poético.

Leia minha reflexão sobre o caso:

"A vingança é parecida com o amor, quente igual. E, cuidado, pode durar mais."

sexta-feira, 11 de junho de 2010

NÃO SOU MAIS UM RAMAL

Arte de Marcel Duchamp


Comprei telefone fixo para diminuir a conta do celular. Um aparelho aristocrático, com gancho, disco e fio crespo. Preto lustrado, um sapato de baile.

A decisão veio de um pouco de nostalgia, um pouco de economia. A cada três meses sofro recaídas retrô. De vez em quando sou anos 70, outras vezes anos 80, algumas vezes anos 60, dificilmente me encontro em minha época.

Minha mãe é que apoiou a medida, jurou que estava amadurecendo, tomando juízo. Ela é uma senhora elegante de cabelos grisalhos que confia na lista telefônica mais do que no Google. Orgulha-se em conferir seu nome naquela letra de Bíblia. Ainda umedece os dedos no momento de virar as páginas e trata os vizinhos pelo sobrenome. Na minha infância, ficava brava quando dava o número residencial para um colega. Talvez hoje não tenha tanta importância oferecer o telefone particular, mas já teve o apelo de reverência, de senha bancária. Só se alcançava para quem merecia toda a confiança.

O caso é que recebi o extrato depois de um mês: R$ 10. Na certa, paguei o reles envio postal.

Não pense que foi resultado de oferta formidável, com 30 dias grátis para seduzir a namorada ou uma promoção durante os jogos da Copa. Eu simplesmente não consegui usar o aparelho. Mesmo quando estava em casa. Sua existência me revoltou como as fitas VHS. Isso que experimentei a época em que a dignidade profissional era medida pelo ramal próprio. Um ramal somente para si. Essencial quanto o cartão de visita.

Um ramal respondia a independência, traduzia reconhecimento profissional, significava uma mesa própria na repartição, com direito a três porta-retratos. Depois de um ramal, eu podia casar e ter filhos. Havia sempre uma telefonista para mediar as urgências e enganar os chatos.

Falava com eco de montanha:

– Quem é? Tudo bem, pode passar para meu ramal!

Sinto que extraviei a vocação de funcionário público. Perdi a paciência de raiz. A serenidade de árvore.

Não suporto olhar para um ponto fixo, que já estou chorando. Não há como sentar mais de 20 minutos, que já estou dormindo.

Tentei empregar o aparelho, realmente me esforcei para gastá-lo. No primeiro contato, animado com as fofocas, saí a passear pela sala. Toda a escrivaninha veio junto. Puxei o fio e arrebentei a tomada, causando um estrago na pintura.

Irrita-me o desperdício dos horários, o alcance limitado da ação. Parece que voltei a jogar caçador na escola, que estou preso num canil. Bem que o veterinário me avisou que vira-lata tem alergia à coleira.

Não sei mais ficar parado. A facilidade de falar estragou a beleza da imobilidade. A imaginação enfraquece o fôlego na quarta frase, e logo se apoia nos olhos.

Na hora de sentar, sobe uma angústia, uma sensação de atraso eterno, uma melancolia de desastres. Preciso controlar e-mails, arrumar o quarto, organizar os papéis, sei lá, aproveitar o tempo enquanto converso.

Minha voz não tem mais endereço. Virei um sem-teto no timbre. O celular me corrompeu.

Publicado no jornal Zero Hora, Edição N° 16363
Editoria Geral, P.2, Porto Alegre (RS), 11/06/2010

quarta-feira, 9 de junho de 2010

EU ME MORDO DE CIÚMES

Meu novo livro "Mulher Perdigueira" (Bertrand Brasil) ilustrou reportagem da RBS TV. Entrevistei ciumentos na rodoviária de Porto Alegre. Programa foi exibido na quarta (9/6), no Jornal do Almoço. Confira:

POTES DE REQUEIJÃO

Arte de Tereza Yamashita


Eu me dei conta que tudo é exercício para estar acompanhado.

Arrumar a cama, por exemplo.

Há gente que coloca o cobertor fincado internamente nas bordas do colchão, revelando índole possessiva e ciumenta.

Há gente que deixa o cobertor solto, mostrando desapego e sociabilidade.

Há gente que nem ajeita, denunciando solidão e independência.

Vejo um temperamento nas banalidades. Eu dobro o lençol como aba de envelope sobre o cobertor. Minha avó me alertou: “Cobertor é masculino, lençol é feminino”. Faz sentido: ambos estão casados, esperando nosso olhar (o que explica que a cama se encontra curiosamente aquecida algumas vezes).

Arrumo os travesseiros com delícia porque é um ânimo a mais para namorar. Caminho de um lado a outro, concentrado. Trocar a roupa de cama é sempre reinaugurar o quarto.

Transformo a disposição do tecido num bilhete de amor. Desde a minha infância. Sou uma palavra dentro, bordada.

A solidão foi meu laboratório. Minha dança com o espelho. Cada ato, cada gesto, cada atitude insignificante representava a preparação para receber alguém. Minha solidão é tão feminina: não estranho que Cínthya não tenha surgido dela.

Quando retirava o rótulo das cervejas na adolescência não passava pela minha cabeça que participava de um curso de noivo. Na época, aquela fixação das unhas na embalagem sugeria vadiagem. Aos colegas, cheirava como isolamento. Mas era uma antecipação, já cuidava para não me atrasar ao encontro.

As garrafas da boemia me ajudaram a descolar depois o papel dos potes de requeijão. As distrações são técnicas domésticas. Ninguém me bate na ciência de não deixar adesivo no vidro. Resta limpo, luminoso, um copo ileso na prateleira.

Os casais que moram juntos não entendem o quanto são felizes. Como é fácil selar a paz dormindo na mesma cama. Uma hora vão suspirar de ternura no meio da madrugada ou esticar o braço ao longo do outro corpo e recompor a distância.

Fácil, fácil, por isso a proximidade é desprezada.

Durante o namoro, é preciso avisar, marcar hora, entrar em acordo. A conversa segue um ritmo nervoso, um atentado violento ao pudor, que logo esbarra numa reclamação e suspeita.

Tanto que os namorados, ao se encontrarem, não têm direito de trabalhar ou se isolar em seus passatempos. É um insulto. Compreendido como um desinteresse. Um dos dois se enxergará preterido, seja pela televisão, seja pelo computador.

Os casados não aparecem, estão lá, com a chance permanente de comover.

O corredor é o pressentimento do abraço. Não há urgência em finalizar um assunto, nem a obrigação de ser amoroso. É bater papo com ela enquanto toma banho, é servir café para brindar os dentes, é arrumar suas coisas para ganhar tempo.

Os casados estão despertos ao cuidado. Será simples surpreender, basta reparar que acabou a granola dela e trazer um novo pacote do mercado. Com certeza, os grãos formarão um buquê na xícara.

No namoro, qualquer mimo é previsível, uma chantagem. No casamento, toda lembrança é inesperada, uma gentileza.

Não coloquei nada fora em mim porque poderia usar como enxoval no futuro.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 7 de junho de 2010

ACOMPANHE O LANÇAMENTO EM POA





Sessão de autógrafos de "Mulher Perdigueira"
e debate com Martha Medeiros e José Pedro Goulart
Livraria Cultura, segunda (7/6)
Broadcasting via Twitcam

1, 2, 3 E JÁ!

Arte de Peter Blake


Admiro a espontaneidade dos filhos.

Eles fazem 1 e 2, especialmente o 2, em qualquer lugar: numa loja, no restaurante, no avião, no ônibus. O estômago apontou e não tomam frescura, procuram o banheiro próximo e voltam com rosto alegre e recomposto. Não comentam nada, mas pressinto o despojamento e a vida longe de sacrifícios e renúncias, de medo e boicote. Não castigam o corpo, muito menos maltratam o ciclo por pudor.

Eu não, demorei muito para falar do assunto. Ainda mais para fazer o assunto fora de casa.

Atravessei três décadas evitando cocô em locais públicos. Não ria, por favor, é sério. Temia de vergonha, tremia que alguém visse ou comentasse o fedor, que fosse denunciado numa festa ou que um desconhecido pensasse que estive ali somente para minhas necessidades. Claro que estava no banheiro para necessidades, mas a loucura consistia em acreditar que as pessoas reparavam em mim. Experimentava viagens cansativas e aguentava uma semana de prisão de ventre, até regressar aos azulejos azuis e terapêuticos do meu toalete. Relaxava apenas em meu toalete, a porta chaveada com duas voltas.

Não mudava de opinião, ainda que ameaçado pelo número 3, ainda que atravessando o Oceano Atlântico, suava frio e permanecia com a coerência educada. Na volta, já estava irritado, ilegível para conversa, tamanho o desespero e o bloqueio.

Não era problema de limpeza, da tampa seca, do pavor de micróbios, pois não sou famoso para ser Michael Jackson, celebridade é que coleciona fobias de contaminação e usa máscara e cuecas descartáveis; guardava receio da fofoca.

Há três anos que me libertei do condicionamento e abri exceção para cagar (ai, disse!) em hotéis. Tranquei-me no quarto por cinco horas lendo as revistas de programação de tevê. Quando atingi a grade dos canais abertos, o milagre aconteceu. Passei por fases de transição, óbvio, e consegui me acostumar com a ideia de que inclusive o papa compra e usa papel higiênico. Agora não corro riscos, todo ponto é normal e viável. Nasci para o mundo recentemente.

Mantive a repressão por trauma. Os pais e manos gostavam de debochar do cheiro, existia uma diversão sádica acentuada pela falta de espaço. Sentia-me vigiado na infância, acovardado pelas dores de barriga.

Família grande com um único banheiro rendia disputas e golpes baixos. Nas contas domésticas, masturbar recebia o crédito de pecado, já ir aos pés respondia a um crime. Não havia ética e Piaget que aliviasse a barra. Três irmãos não geram pressão, e sim terrorismo. Começavam com pancadas na porta para que terminasse rápido, logo mexiam o trinco como num filme de terror, em seguida gritavam para quem se encontrava na sala. Suportava o escândalo duas vezes por dia. O relógio biológico não tinha paz, funcionava pela corda da descarga. Apertava várias vezes fingindo o fim para ganhar alguns minutos de prorrogação.

Complicada também a chacota da saída, os comentários maldosos como "está podre", "morreu e não foi enterrado", "é a Borregar" (fábrica de celulose poluente da época), "olha o esgoto", "não dá para receber visitas". Virava um programa de debate esportivo na hora do almoço e da janta.

Eu me constrangia de humanidade, e me tolhia como modo de pedir desculpa.

Nunca brinquei com meus filhos sobre o tema, muito menos cometi alguma piada indiscreta. Sei o quanto custa e o quanto que tira a fome.

Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 111, Número 199
Junho de 2010

LIVROS EXALTAM A VOLTA DO MACHO SENSÍVEL

Xico Sá dá dicas para a recuperação da macheza perdida e Fabrício Carpinejar fala sobre "gay heterossexual"

Tatiana Salem Levy
ESPECIAL PARA A FOLHA




Todas as mulheres são devedoras do feminismo que, na década de 1960, batalhou por um espaço mais digno para o chamado "segundo sexo". Mas era necessário perder as gentilezas dos homens, que antes não permitiam que as companheiras abrissem a porta do carro ou pagassem a conta?

Ora, "Chabadabadá", de Xico Sá, e "Mulher Perdigueira", de Fabrício Carpinejar, estão aí para tentar recuperar o macho perdido e, com ele, a adoração pelas mulheres.

Xico Sá, com humor afiado e marcado pela boemia, faz um retrato das relações em tempos de "homens frouxos", em que o "macho-jurubeba" está sendo substituído por homens bem-vestidos, perfumados, maquiados - os chamados metrossexuais.

Segundo ele, nunca foi tão difícil ser macho: os tipos contemporâneos trocam uma boa costeleta por molhinhos de frutas exóticas.

Pode parecer simplista, mas o prato de comida diz muito sobre alguém, assim como os cremes que ele (não) usa, a coragem ou o medo de se entregar, de dizer "sim" ou "não" na lata e não "a gente se vê", a grande bobeira dos "tempos de amor líquido e sexo sem compromisso".

GAY HETEROSSEXUAL

Xico dá dicas essenciais para a recuperação da macheza perdida, como voltar para casa com o clássico pacote de pães debaixo do braço, escrever cartas de amor -à mão!- ou retomar o hábito de pedir em namoro.

Poderíamos pensar que Carpinejar é o homem que Xico abomina, mas está longe disso. A macheza é outra, as crônicas revelam um homem doce, um "gay heterossexual", como define, distante da vaidade metrossexual.

O que sobressai nos textos é o cuidado, a atenção com a mulher, tão raros hoje. Que mulher não gostaria de ouvir frases como: "Não me interessa um tempo comigo quando posso dividir a eternidade com alguém"?

Enquanto a maioria dos homens reclama do ciúme, da prisão do relacionamento, Carpinejar quer a mulher perdigueira, contraditória.

E também faz propostas, como a carteira assinada para marido para evitar que ele seja dispensado facilmente.

SEDUÇÃO PERMANENTE

Trata-se de um homem que não sabe namorar, só casar, que vê no dia a dia a grande construção do amor e que não sente compaixão por Romeu e Julieta, que conheceram "o ímpeto do amor, não o amor".

Cada um a seu modo, propõem a volta de antigos valores, a recuperação do homem macho e doce. Nos livros, sobressai o amor pela mulher, a sedução permanente, o prazer da reconciliação.

Se você for homem, faça um favor à espécie: leia esses livros que ensinam a ser macho sem perder a ternura. E, se for mulher, Xico e Carpinejar são homens para levar para casa. Mas, como as mulheres nunca estão satisfeitas, o ideal seria levar os dois, um para cada dia da semana.

TATIANA SALEM LEVY é escritora, autora de "A Chave de Casa" (Record).

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CHABADABADÁ
AUTOR Xico Sá
EDITORA Record
QUANTO R$ 37,90 (184 págs.)
AVALIAÇÃO bom

MULHER PERDIGUEIRA
AUTOR Fabrício Carpinejar
EDITORA Bertrand Brasil
QUANTO R$ 39 (336 págs.)
AVALIAÇÃO bom

Publicado na Folha de São Paulo
Caderno Ilustrada, P. 6, 7/6/2009

sábado, 5 de junho de 2010

CINCO COISINHAS PARA NÃO SE FAZER NO DIA DOS NAMORADOS

Arte de Jim Dine


1. Não invente de levá-la a um motel. Permanecer em fila - ainda mais numa lomba - é somente preliminar que esfria a libido.

2. Não dê ursinho de pelúcia. Glória Pires já foi Tony Ramos duas vezes e não gostou da experiência.

3. Procure fazer um jantar em casa, à vontade, sem pressão. Restaurante parece agência de casamento, lotado, somente com mesinhas coladas umas nas outras. É impossível conversar.

4. Não compre calça ou alguma roupa que possa não servir, mesmo sabendo o número certo. Tudo o que ela precisa é não se sentir gorda.

5. Esqueça que é Dia dos Namorados e será finalmente espontâneo.

Publicado no jornal Zero Hora
Informe Especial, p. 3
Porto Alegre (RS), 05/06/2010

"NA PAIXÃO, TODO MUNDO MENTE E JURA QUE É MODERNO"

Paula Dume
colaboração para a Livraria da Folha



"Saúde emocional é explodir na hora certa do que guardar rancor", defende o escritor

Possessiva, escandalosa, preocupada e apaixonante. A mulher que ninguém quer, à primeira vista, é a que o escritor Fabrício Carpinejar deseja. "Mulher Perdigueira", publicado no final de maio pela Bertrand Brasil, descreve as contradições da mulher que dá título ao volume.

Em 125 crônicas, o autor cria sentido para o que não se vê, não tem cor, não pesa mas sentimos o desequilíbrio, não tem forma mas muda, não nomeamos mas existe. A mulher perdigueira reconhece todos esses sintomas humanos e consegue transpor para a realidade sua angústia, mesmo que seja em forma de perturbações para seu companheiro.

Em entrevista à Livraria da Folha, Carpinejar --melhor cronista do tradicional prêmio Jabuti no ano passado-- poupou os desequilíbrios da mulher perdigueira ao afirmar que louco é quem não demonstra sua necessidade. "Todos comentam os efeitos colaterais da passionalidade, mas esquecem o lado positivo: a ternura, a cumplicidade, o amparo, a atração química e a amizade indestrutível", disse.

O escritor delineou as principais características das mulheres consideradas "perdigueiras". Pontuou que o avesso desse tipo feminino é a que se utiliza do "coitadismo", chamada de "mulher-vítima". Carpinejar comentou também sobre os empecilhos nos relacionamentos, como o fingimento do controle e da sobriedade. "Tudo conversa fiada, cartão de visita."

Leia a íntegra da entrevista e descubra se você ou sua mulher são perdigueiros por instinto ou por opção.

Livraria da Folha - Como surgiu a expressão "mulher perdigueira" e por que você decidiu compor um volume sobre o tema?
Fabrício Carpinejar - Pensei em combater o estigma da mulher ciumenta, que parece uma louca varrida. Louco é quem não demonstra sua necessidade. Perdigueira realmente se importa com seu namorado ou marido. Exagera, mas se importa. Todos comentam os efeitos colaterais da passionalidade, mas esquecem o lado positivo: a ternura, a cumplicidade, o amparo, a atração química e a amizade indestrutível.

Mulher Perdigueira não finge equilíbrio, pois entende que o amor é puro desequilíbrio. É discutir, incomodar, provocar e apenas encontrar a paz com os pés enlaçados debaixo dos lençóis. Hoje existe uma castração do temperamento, fingimos controle, exalamos sobriedade. Tudo conversa fiada, cartão de visita. Saúde emocional é explodir na hora certa do que guardar rancor. Tudo o que não foi dito no momento terá depois o juro da desconfiança e os casais terminam falindo pelas incertezas polidas. Temos que tomar cuidado para não confundir silêncio com omissão. Parece um absurdo fazer algo pelo outro, soa como burrice, como renúncia. Vejo como cuidado. A dominação --saber quem dá mais ou quem dá menos-- é inútil para os dois que já se entregaram completamente a um relacionamento.

Livraria da Folha - Xico Sá segue o modelo clássico literário para classificar as mulheres ("balzaquianas", por exemplo). O termo "mulher perdigueira" não sugere que esse tipo de mulher é como uma raça?
Carpinejar - Não é uma raça, é uma predisposição que atinge tanto o homem como a mulher. Há homens que passam o vírus do ciúme para mulheres até então independentes. Não há sofrimento unilateral, desculpe. Quem diz que está imune mente. É muito fácil dizer que isso nunca vai me acontecer quando não se ama.

Livraria da Folha - Qual seria a mulher contrária à perdigueira? Descreva-a.
Carpinejar - A mulher-vítima. Que diz ao filho que deixou de viver para cuidá-lo, que diz ao marido que deixou seus sonhos para casar. É aquela que não assume nenhuma responsabilidade sobre suas escolhas. Vive no passado, imersa no coitadismo. Bem diferente da perdigueira, que está enraizada no presente e na demonstração de suas vontades.

Livraria da Folha - Quanto tempo demorou entre composição e edição da obra?
Carpinejar - Três anos. É o tempo que leva um livro desse porte para se formar e se agrupar como uma corrente marinha. Como os textos são recortes autônomos, montar a unidade requer uma costura invisível, eliminar os ecos, os temas recorrentes, procurar desdobramentos e a limpidez da voz. Como se as crônicas fossem escritas num só dia.

Livraria da Folha - São 125 crônicas que retratam, de certa forma, o etéreo, aquilo que não registramos mas existe.
Carpinejar - Um exemplo é nossa dificuldade para fazer perguntas diretas, didáticas, que reduziriam qualquer discussão. Começamos a maior parte das brigas porque não sabemos como perguntar de uma desconfiança. Daí, armarmos todo um estado de pânico para realizar as indagações mais absurdas. Ao tentar esconder a doença criamos outras bem piores. Se o namorado encontra uma amiga antiga e solta frases desconexas, em vez da mulher fulminar "É uma ex?", ela se enche de rodeios e questiona quem é ela, onde se conheceram, comenta que a situação foi estranha e que ele está diferente. Entende? O atalho desconhecido é muito mais longo do que os caminhos conhecidos.

Livraria da Folha - No livro, você defende a "caça" das mulheres perdigueiras. Já teve alguma dessas em seu encalço?
Carpinejar - O que posso assegurar é que adoro a coragem da opinião, a franqueza do hábito. Os mornos podem ficar com a posse, a possessão é para quem entra no inferno ou no paraíso. O universo feminino é melhor do que a asma: me tira o fôlego.

Livraria da Folha - Como o homem pode reconhecer uma perdigueira no primeiro encontro? Quais pistas "dedam" a pretendente?
Carpinejar - Não existe mulher perdigueira no primeiro encontro. Na paixão, todo mundo mente e jura que é moderno. Ela surgirá na convivência, na retratação da personalidade com a chegada do amor. Forneço dicas para identificação:

- Usará apenas "meu homem", "meu namorado" ou "meu marido", altamente possessiva;
- Não espera para discutir em casa. Parte do princípio terapêutico de que a raiva depende da espontaneidade do momento;
- Acredita que toda gafe poderá ser corrigida com sexo de noite;
- Pergunta de novo aonde ele vai, somente para confirmar os dados;
- Aparece de surpresa nos lugares avisados e afirma que é coincidência;
- Ao atender os amigos dele, puxa papo para garimpar histórias e informações privilegiadas;
- É uma leoa-de-chácara. Qualquer mulher que se aproxime mais melosa de seu companheiro, já chama de piranha ou vadia;
- Não pergunta quem ligou, pois considera uma atitude mal-educada, é independente, mexe direto no celular para verificar o número;
- Disca para números suspeitos como se fosse pesquisadora do IBGE, além de apagar nomes femininos do catálogo de endereços;
- É a provedora do Orkut dele, controlando os scraps e os recados;
- Parte da tese de que não importam os meios, mas o fim;
- Esquece o que fez de errado com repentinas declarações de afeto;
- Cheira a camisa e alega que é capricho, somente para confirmar se ele ainda põe o perfume que comprou;
- Tem um ciúme preventivo. Avisa o que ele pode aprontar antes de qualquer coisa e antecipa o julgamento;
- Investiga sua caixa de mensagens e ainda o culpa por deixar tudo ligado e à mostra;
- Decide mostrar sua lingerie nova justo quando ele tem algum compromisso;
- Pede desculpa com a mesma facilidade que xinga;
- Propõe constantes testes, em especial surpresas que terá que corresponder à altura. Ai se ele se atrasar para algo, mesmo não desconhecendo;
- Cria aniversário de tudo, do primeiro beijo, da primeira transa, do primeiro presente, do primeiro jantar, do primeiro cinema;
- É uma agência de notícias: manda mais de dez torpedos ao dia e conta suas novidades a cada meia hora;
- Instala a discussão perto de dormir, aproveitando o cansaço, e depois se faz de vítima, repetindo as ofensas recebidas;
- Quando ele chega tarde, finge estar dormindo;
- Na separação, amaldiçoa com "Nunca mais será feliz" ou "Ficará broxa com outra mulher".

Livraria da Folha - Há "homem perdigueiro"?
Carpinejar - Está falando com um. Ou acha que faço propaganda enganosa?

Publicado na Livraria da Folha, 5/6/2010

sexta-feira, 4 de junho de 2010

ACOMPANHE O LANÇAMENTO NO RJ




Sessão de autógrafos de "Mulher Perdigueira"
e debate com a cantora Ana Carolina
Livraria Argumento/Leblon, sexta (4/6)
Broadcasting via Twitcam

quarta-feira, 2 de junho de 2010

GAIA


Arte de Tereza Yamashita


Percebo que fiquei demais em um hotel quando a camareira começa a mandar em mim. É hora de fechar a conta.

Ela entra no quarto sem pedir licença ou bater na porta. Abre e vai mandando descer ao café ou dar um passeio para não atrapalhar seus horários.

Estou tão sozinho que obedeço.

O trauma é que ando viajando mais do que permanecendo em casa. Na última semana, passei por Belo Horizonte, Londrina, Presidente Prudente, Erechim, Brasília, São Paulo, São Francisco Xavier. Uma cidade por dia, um hotel por dia, cinco estados distintos.

Não suporto me agachar diante de um frigobar. Não tolero mais geladeira anã. A normalidade me escapa.

Tenho saudade de abraçar uma geladeira maior do que eu. Com mais de três andares. Com alguma coisa apodrecendo na última gaveta. Cheirando mal para perder tempo procurando e investigando com o nariz.

Meus olhos estão virando um frigobar. Minhas pupilas são latas de Coca-cola.

Levanto já me atrapalhando com compromissos, entrevistas, palestras e mapas. Há sempre um rádio-relógio para uniformizar os quartos. E uma Bíblia que muitos usam para ler no banheiro. A Bíblia é confundida com um laxante, uma espécie de jornal da eternidade.

Vivo sucessivamente o Dia da Marmota, com a diferença de que nunca é igual e procuro semelhanças e uma rotina que me torne consecutivo.

Não guardo o que aconteceu ontem e anteontem. Minha memória demora a baixar.

Preciso olhar pela janela e me situar, isso quando não está chovendo. Até decorar o número do apartamento exige esforço. Lembro que estava no 506 no Hotel de Londrina e cismei em tentar arrombar a porta trancada do 506 do Hotel de Presidente Prudente. Embaralhei as origens. Um casal — suado do banho — me atendeu com a cordialidade conferida a um garçom. Logo fui denunciado para a portaria, sob a alegação de que incomodava o descanso e o sexo de outros hóspedes.

Insônia provoca loucura. Falta de cama própria é mais devastadora: altamente alucinógena. Embarquei num táxi — onde? — com oito ursinhos de pelúcia no painel. Uma inacreditável estante de criança no vidro dianteiro. Os animaizinhos estavam vestidos com roupas de boneca. Vestidos apertados, números menores do que o adequado. Eram ursinhos travecos.

Se estivesse bebido, se fosse de noite, seria perdoável. Mas partia ao almoço, num solaço das 13 horas. De vestido longo vermelho e salto alto, uma loira cinquentona dirigia o automóvel. A taxista parecia que voltava de uma festa. Ou será que seu prefixo luminoso indicava uma boate? Numa atitude esquisita, quase íntima, pediu para que segurasse sua bolsa e atualizou o batom dos lábios usando o espelhinho. Aquilo me deu medo. Sempre que experimento uma história, vejo se alguém acreditaria nela. Ninguém confiaria na cena, o que aumenta as chances de um assassinato. O que não posso escrever me mata.

As fantasias mórbidas vêm aumentando com o deslocamento sucessivo. Na serra da Mantiqueira, fui colocado na Fazenda Gaia. Dois quilômetros de mata antes de alcançar a pousada. Imagina se morro numa fazenda com esse nome? Nenhum gaúcho me perdoaria. Todo mundo irá pensar que me converti, que me transformei num vegetariano, que reneguei o espeto corrido e a costela em meus derradeiros instantes poéticos. Não duvido que Gabeira comparecesse ao enterro e que meu caixão descesse forrado com a bandeira crespa da alface e da rúcula.

Desperto sem saber onde estou. Suspeito que a doença avança ao segundo estágio: quando não saberei mais quem sou.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 1 de junho de 2010

RIO DE JANEIRO E PORTO ALEGRE


4/6 (sexta), 19h30 - Rio de Janeiro (RJ)
Debate com a cantora Ana Carolina
Sessão de autógrafos do meu novo livro de crônicas Mulher Perdigueira (Bertrand Brasil, 336 páginas)
Livraria Argumento
(Rua Dias Ferreira, 417)
21 2239-5294


7/6 (segunda), 19h30 - Porto Alegre (RS)
Debate "O AMOR É SIMPLES", com Martha Medeiros e José Pedro Goulart
Sessão de autógrafos do meu novo livro de crônicas Mulher Perdigueira (Bertrand Brasil, 336 páginas)
Livraria Cultura
Bourbon Shopping Country
(Av. Túlio de Rose, 80 - Loja 302)
51 3028-4033


É o momento de autografar "Mulher Perdigueira", minha nova reunião de crônicas da Bertrand Brasil, grande parte feita aqui no blog. Amadureci lendo cada um dos comentários de vocês.

Há escritores que odeiam lançamento com receio dos lapsos e do nervosismo. Eu sinceramente odeio perder a possibilidade de transformar um nome em rosto.