sábado, 29 de outubro de 2011

BAILE DAS ORQUÍDEAS

Airton diz que a música nativista é um estímulo para as plantas crescerem. Foto de Emílio Pedroso

Antes do telhado de vidro coar os primeiros raios de sol, Airton Moacir Nedel, 54 anos, pega seu rádio de pilha e vai visitar a estufa de flores. Ele é o principal orquidófilo de São Paulo das Missões, cidade a 537 quilômetros de Porto Alegre, conhecida como Suíça gaúcha pela semelhança geográfica com o país europeu.

São 6h, a estação local toca Os Serranos. A acanhada população de 6,7 mil habitantes recém está se despedindo dos sonhos noturnos e Airton já mergulha as luvas no jardim particular de mais de mil orquídeas de 40 espécies. Ele não é um colecionador comum. Cultiva suas plantas ao som alto da música gauchesca. E diz que funciona, que elas se mostram mais viçosas e atraentes, com dobro de exuberância nos ornamentos.

A gaita de Borghetti, a voz do Gaúcho da Fronteira e a poesia dos missioneiros costumam polinizar o ambiente, formando o adubo perfeito para a floração das prendas.

O acervo que conserva com capricho durante duas décadas é, ao mesmo tempo, um recorte do Éden e um show gaudério.

– Tiro a flor para dançar chula. Preparo seu andar para exposição, que é o baile final – comenta.

Airton mudou desde que passou a tratar de orquídeas. Tabelião aposentado, casado há 31 anos com Elaine, era duro, de poucas palavras e vivia organizando festas típicas longe de casa. Hoje é caseiro, meigo, não se envergonha de chorar e de explicar seus sentimentos.

– A orquídea é uma terapia, é desembrulhar uma noiva todo dia, é casar toda manhã – derrama-se.

Segundo Airton, a orquídea gera uma atenção especial que valoriza seus donos. Como ela morre somente atacada ou abandonada, a durabilidade depende da dedicação.

– Pode ser imortal pelos nossos cuidados, entende nossa responsabilidade? Qualquer um se enxerga importante.

O passatempo fisgou seu interesse por truque da mãe, que mandou uma muda de LC. Remo Prada de presente para cada um dos cinco filhos.

– Se ela fez um teste de herança, estou rico. A minha é a única que se manteve viva – graceja.

A partir daquele momento, ele tomou gosto de cuidar. Cuidando de algo, cuidava de si.

– É a planta mais carente que existe. Sem carinho, ela murcha, desaparece. Duas semanas sem ninguém, a estufa é terra de cemitério, lugar de assombração.

De um hobby, onde dedicava menos de uma hora, converteu-se em obsessão, movido a um turno inteiro de vigília. Airton (ou, simplesmente, Alemão) assumiu a presidência do Polo dos Orquidófilos das Missões, representando também Santo Ângelo, Santa Rosa, Ijuí, Carazinho, Santiago e Ajuricaba, disseminou a cultura pela cidade com mostras anuais e formou uma liga local de vinte produtores.

– Mexo, fuço, inspeciono para prevenir o pior, em especial à cochonilha, pó branco que estraga as hastes. Não largo meu CTG.

Ele não protela nada, não adia a ternura. Tudo para não reprisar a tragédia que foi encontrar duzentas peças abatidas de uma única vez, pelo fungo Fusarium.

– Dói perder uma delas, porque não existe orquídea feia.

Airton é um romântico. Com cabelo escovinha e olhos claros, elabora surpreendentes teorias de convivência. Diz que homem que dá rosa pretende agradar a mulher, por sua vez sujeito que oferece orquídea confessa verdadeiramente sua paixão.

– Matamos a orquídea mais facilmente com o excesso de água do que pela falta. Assim é o casamento. Temos que deixar o outro respirar.

Enquanto me despeço, ainda é possível escutar o refrão de Obrigado, Patrão Velho. Com a leve brisa da porta aberta, as pétalas acenam ao fundo.




Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 32, 29/10/2011
Porto Alegre, Edição N° 16870
Conheça o jardim de Airton Moacir Nedel, em São Paulo das Missões.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

BARBARIZANDO

Foto de Alexandra Martins

03/11 (quinta-feira) – Porto Alegre (RS), 19h
57ª Feira do Livro de Porto Alegre
Oficina
Local: Sala O Retrato – Centro Cultural Érico Veríssimo
(Rua dos Andradas, 1223)
Contato: 51 32864517

04/11 (sexta-feira) – Porto Alegre (RS), 9h
Escola Associação Cristã de Moços do Rio Grande do Sul – ACM Centro
Bate-papo com alunos
Local: Rua Washigton Luiz, 1050 – Centro
Contato: 51 32136000

04/11 (sexta-feira) – Porto Alegre (RS), 19h
57ª Feira do Livro de Porto Alegre
Oficina
Local: Sala O Retrato – Centro Cultural Érico Veríssimo
(Rua dos Andradas, 1223)
Contato: 51 32864517

05/11 (sábado) – Porto Alegre (RS), 19h30
57ª Feira do Livro de Porto Alegre
Lançamento Borralheiro
Local: Praça da Alfândega
Contato: 51 32864517

09/11 (quarta-feira) – Triunfo (RS), 9h30
25ª Feira do Livro de Triunfo
Patrono
Local: Praça Bento Gonçalves
Contato: 51 36543541

09/11 (quarta-feira) – Camaquã (RS), 19h30
31ª Feira do Livro Camaquã
Patrono
Local: Praça Zeca Netto
Contato: 51 36715288

10/11 (quinta-feira) – Lagoa Vermelha (RS), 10h, 16h e 19h
Feira do Livro de Lagoa Vermelha
Patrono

11/11 (sexta-feira) – São João del Rei (MG), 23h
5º FELIT - Festival de Literatura de São João del-Rei
Leitura de poemas com Ana Martins Marques
Local: Centro Histórico: Largo do Carmo

16/11 (quarta-feira) – Paraíso do Sul (RS), 19h
II SEMIC - Semana Cultural e Intelectual e IX Feira do Livro
Patrono

17/11 (quinta-feira) – Paraíso do Sul (RS), 22h
II SEMIC - Semana Cultural e Intelectual e IX Feira do Livro
Palestra

18/11 (sexta-feira) – São Paulo (SP), 10h
Projeto “O Escritor na Biblioteca”
Palestra
Local: Biblioteca Pública Milton Santos - Aricanduva

18/11 (sexta-feira) – São Paulo (SP), 14h30
Projeto “O Escritor na Biblioteca”
Palestra
Local: Biblioteca Pública Érico Veríssimo - Parada de Taipas

19/11 (sábado) – São Paulo (SP), 14h
Balada Literária 2011
POEMA-BOMBA - Prosadores e Poetas – com Cida Pedrosa, Elisa Nazarian, Juliana Amato e Lorena Martins
Local: Biblioteca Alceu Amoroso Lima
Contato: (11) 6932-0337

21/11 (segunda-feira) – São Paulo (SP), 10h
Projeto “O Escritor na Biblioteca”
Palestra
Local: Biblioteca Pública Amadeu Amaral - Jardim da Saúde

21/11 (segunda-feira) – São Paulo (SP), 14h
Projeto “O Escritor na Biblioteca”
Palestra
Local: Biblioteca Pública Álvaro Guerra – Pinheiros

21/11 (segunda-feira) – Porto Alegre (RS), 20h30
Projeto “Adote um escritor”
Bate-papo com alunos do EJA
Local: EMEF Neusa Goulart Brizola

22/11 (terça-feira) – Porto Alegre (RS), 9h
Fronteiras do Pensamento - Geração Z
Local: Salão de Atos da UFRGS
(Av. Paulo Gama, 110)

24/11 (quinta-feira) – Sete Lagoas (MG), 21h
2ª LITERATA – Festa Literária de Sete Lagoas
Mesa Redonda com Ivan Angelo e Humberto Werneck
Local: Casarão - Praça Tiradentes

25/11 (sexta-feira) – Santiago (RS), 21h
13ª Feira do Livro de Santiago
Palestra
Local: Praça Moisés Viana
Contato: (55) 32511353

29/11 (terça-feira) – São Luis (MA), 20h
Projeto Escritores Brasileiros CCBB
Cássia Kiss lê Carpinejar
Contato: producamar@gmail.com

0/11 (quarta-feira) – Teresina (PI), 20h
Projeto Escritores Brasileiros CCBB
Cássia Kiss lê Carpinejar
Contato: producamar@gmail.com

terça-feira, 25 de outubro de 2011

SACOLEIROS DO DIVÓRCIO

Arte de Natalia Gontcharova

Eram separados recentes. Mariana e Renato já tinham atravessado o apocalipse do primeiro mês, momento crítico em que se torce deslavadamente para a tragédia do ex. (Torcer é um eufemismo, rezava-se para que o divórcio logo se transformasse em viuvez. Quem passou pela fossa sabe do que estou falando: o desejo 24 horas por dia para que o outro morra, desapareça da face da Terra, evapore da humanidade. E que seja uma morte retumbante, com ampla repercussão nas redes sociais, esmagado pelo Arco da Redenção, ou atropelado por uma bicicleta na ciclovia do Gasômetro).

Os dois curtiam a segunda fase da separação: a curiosidade do ódio, aquele período fundamental em que se paga por informações para descobrir como o nosso antigo par está reagindo ao luto. Mariana e Renato queriam porque queriam notícias, adoeciam de ansiedade para desvendar se o ex engatou um novo relacionamento e esqueceu o passado, mas não poderiam se telefonar. Soaria suspeito ligar para os amigos perguntando, ficaria muito na cara o interesse, representaria uma recaída. (Ansiedade não é o nome certo, talvez seja medo de que o ex seja feliz primeiro. Existe uma competição oculta entre os separados: quem sai mais nas baladas, quem emagrece mais, quem tem mais amigos no Facebook, mais seguidores no Twitter).

Ambos psicanalistas, lacanianos assumidos, Mariana e Renato não se sentiam à vontade usando a filha Marisa, de três anos, como garota de recados. Viviam criticando essa atitude, quando a criança é intermediária da crise, uma espécie de mula do tráfico amoroso, levando ofensas e indiretas entre os lares.

Mas Mariana e Renato encontraram um modo inteligente de se comunicar: as sacolas das lojas. A filhota chegou para dormir na casa do pai com os pertences numa sacolinha de caríssima loja feminina de sapatos, onde cada par não custava menos de R$ 500. Aquilo irritou o homem: “Eu sofrendo para pagar a pensão e ela gastando os olhos da cara”. Para quê? Não deu outra: a filha voltou para a mãe com sacolinha de grife masculina. Mariana reparou na marca Armani e se enfureceu: “Comigo, ele vivia de abrigo molambento, velho, agora torra tudo o que não tem com terno, deve estar apaixonado por alguma piranha”. A reação veio no final de semana seguinte. Providenciou que a filha visitasse o pai com uma sacola de free shop. Renato bufou: “Agora a cretina viaja ao Exterior! Ao meu lado, só íamos almoçar na sogra em Cachoeirinha”. Preparou a vingança mais do que perfeita, apareceu numa rede de lingerie para pedir uma sacola emprestada na maior cara de pau, comportou as coisinhas da filha lá dentro e teve sucesso. Sua desafeta predileta babou, esperneou e ralhou que não aguentava a provocação: “Ele nunca comprou um sutiã para mim, sequer conhece o número do meu peito, agora o pilantra distribui peças íntimas para suas namoradas”. Após sete dias, apelou de vez e pôs as roupinhas da menina numa bolsa plástica prateada e fosca, própria de sex shop.

Foi um golpe baixo. Renato perdeu a educação dos símbolos, pegou o telefone e rompeu o silêncio:

– Da próxima vez, pode mandar os objetos da nossa filha numa sacola que não seja de sacanagem?
– Por quê? Está com ciúme? – pergunta Mariana.
– Não, imagina, deixa pra lá...

E começava a terceira e última fase da separação: a hipocrisia, fingir que nada mais é importante.



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 25/10/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16866

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

THE WICKED AND THE WONDERFUL


Life loved death
more than it had left
to die.


A revista americana Rattapallax, de Nova York, realizou um especial sobre minha poesia, denominado de "O Mal e o Maravilhoso" (The Wicked and the Wonderful). Johnny Lorenz traduziu oito poemas inéditos do livro "Inimigo Imaginário" e Craig Epplin verteu versos das obras "As Solas do Sol" (1998) e "Biografia de uma árvore" (2002). Acompanhe aqui.

domingo, 23 de outubro de 2011

O PEQUENO SEDUTOR



Tom estava brincando na praça. Uma menina se aproximou e perguntou se podia ver a bola. Ele não gostou da ideia nem um pouquinho. A menina fez beiço.

- Empresta a bola para a amiga, Tom, por favor... - os pais suplicaram.
- Não!
- Não seja egoísta... Brinca com a amiguinha...
- Não!

A menina ameaçou chorar. Tom caminhou na direção dela e, estranhamente, deu um beijo na boca. E não emprestou a bola.

sábado, 22 de outubro de 2011

FANÁTICOS POR BOCHA

A paixão pelo jogo do treinador da seleção brasileira de bocha Valmir contagiou o filho Pietro e outros familiares. Fotos de Jean Schwarz.

A bocha é o esporte mais democrático que existe. Permite barriguinha de cerveja, pode ser feito depois do almoço, ajuda a digestão, integra famílias, não tem restrições a sexo, idade e condicionamento, serve para duelos e disputas em equipes, é barato e recomendado para prevenir problemas de memória (superior, inclusive, às palavras cruzadas).

Carlos Barbosa, a 97 quilômetros da capital gaúcha, é a que tem melhor aproveitado seus efeitos curativos com 40 canchas espalhadas pela cidade. Ao lado do futebol de salão, o jogo vem dividindo a preferência dos 24 mil moradores.

O município serrano é a terra do treinador da seleção brasileira de bocha, Valmir Danieli, 51 anos, que recruta atletas de Mato Grosso a Santa Catarina, em viagens trimestrais pelo país.

– Vejo quais são os jogadores de ponta e trago para se preparar na minha cidade – diz Valmir.

Carlos Barbosa também foi sede em outubro do 8º Mundial de Bocha, que reuniu 15 clubes de 14 paí-ses durante uma semana (de 9 a 16 de outubro), no bairro Santo Antonio de Castro. O campeonato recebeu público fervoroso de 11 mil pessoas e teve transmissão das finais pela RAI. Mesmo sem conquistar o primeiro lugar, que ficou com os italianos de Treviso (Clube Monastier), os gaúchos fizeram bonito com o segundo degrau do pódio, alcançado pelo Clube Três Lagoas de Garibaldi, e o terceiro degrau, destinado à equipe barbosense de Valmir, Associação Braço Forte.

Valmir encarna o espírito bocheiro no Estado. Não pensa em outro trabalho que não tenha a dimensão de 27 metros de comprimento e quatro metros de largura. Contagiou a parentada inteira a participar da obsessão. Um dos seus filhos, Pietro Daniel, 14 anos, é vice-campeão mundial na categoria infanto-juvenil, em decisão que ocorreu neste ano em Ancara, na Turquia. Sua mulher, Mariza, é campeã gaúcha de duplas. O pai, Honório, obteve o segundo lugar do Estadual em 1972 e continua a bochar com talento e sabedoria, aos 81 anos. Todos atuam juntos no final de semana. As brigas e diferenças são resolvidas no bolim.

– É o esporte de maior longevidade do mundo, para ser praticado dos nove aos 90 anos. Não é como o futebol, que tem vida curta, de duas décadas e meia no máximo – explica Valmir.

– Minha aposentadoria será a morte – exagera Pietro, que treina quatro horas por dia.

O agricultor Dorvalino Zarpelon, 69 anos, o Canhoto, partilha o fanatismo pelos corredores de carpete. Corpulento, bigodudo, é um bochófilo típico. Ou está jogando ou opinando sobre o jogo dos outros. Dono do cetro regional dos veteranos, iniciou cedo a vocação. Ainda piá, antes da escola, fugia da lavoura para exercitar a força de seus arremessos com pedras.

– Não sei se minha vida melhorou com a bocha, sei que ela não piorou – ri.

Composta apenas de três movimentos básicos (ponto, bate e raffa), a bocha é o equivalente a um xadrez em terceira dimensão, talhado a quem tem sangue-frio e talento conspiratório.

– Ninguém pretende sair jogando, porque o placar consiste em desfazer o que o adversário construiu. Em nenhum outro lugar tem tanto sentido a expressão “Calcanhar de Aquiles”, o negócio é descobrir e cutucar a fraqueza alheia – explica Valmir.

Além da aparência de roda animada, na intimidade das regras, é uma competição de malícia e intriga, de alta precisão e raciocínio rápido.

– A amizade necessita suportar as inúmeras traições do oponente. É um golpe de Estado atrás do outro. Exige concentração e astúcia, e não desistir e não se intimidar com a desvantagem.

O treinador percebe que a cancha converte os sentimentos ruins em graça e brincadeira.

– Aceita-se a condição provisória de um lance, por mais espetacular que seja. A vida segue com seus defeitos e dificuldades, entende?

Eduardo Mattuela, 17 anos, integrante do selecionado juvenil, realmente entendeu o recado. Deixou de reclamar do isolamento em casa e aderiu à embriaguez coletiva.

– Meu pai nunca estava perto, a bocha era uma espécie de bar. Passei a jogar para estar com ele. Hoje, tutto bene, sou viciado igual.





Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 32, 22/10/2011
Porto Alegre, Edição N° 16863
Conheça Carlos Barbosa, a sede mundial da bocha.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

terça-feira, 18 de outubro de 2011

QUER NAMORAR?

Arte de Raoul Hausmann

A melhor agência de namoro é comprar uma passagem para bem longe.

Quanto mais longe, maior a chance de ser feliz. Não precisa usar o bilhete, é adquirir, pôr no bolso e andar com aquele olhar irresistível de janela redonda de avião.

Sempre repercute: todo mundo sente que vamos embora e ganhamos importância amorosa. Mais imbatível do que usar aliança, do que borrifar perfume de boto, do que afogar estátua de Santo Antônio.

Quer se apaixonar? Invente uma viagem. Mas tem que pagar para fazer efeito. O destino confere os depósitos bancários.

A despedida é um afrodisíaco veemente. Ficamos abertos e receptivos ao acaso.

Durante os veraneios da adolescência, em Rainha do Mar, eu me ligava na menina no último dia de férias, quando era condenado a voltar para a Capital. Amiga do Interior confessava que me amava um pouco antes de entrar no carro cheio de malas e tralhas. Dava um selinho, corria em direção aos pais e trocávamos cartas ansiosas pelo reencontro ao longo do ano.

É ter um compromisso certo e inadiável para arrumar uma paixão. Sem antítese, não há dialética, não se chega à síntese.

Adoramos uma encruzilhada, confusão, dúvidas. Adoramos a ambiguidade do aceno, que pode ser um oi e um tchau.

Ao tomar um caminho, surge outra opção até então invisível. É programar um intercâmbio no Exterior, que nos envolveremos na noite anterior ao embarque. É realizar sonho profissional de trabalhar na Europa, que antigo amor vem suplicar reconciliação.

O aeroporto e a rodoviária são altares, cupidos, balcões de suspiros.

Se você é solteiro, não entre em chats, não crie perfis falsos, não perca tempo.

As mulheres são alucinadas por homens com malas. Os homens são alucinados por mulheres atravessando o detector de metais.

Se não consegue namorado/namorada, gire o globo, pare um país com o dedo e arrebate passagens.

A distância influencia a longevidade da relação. Menos de 200 quilômetros não traz cócegas. O arrebatamento é proporcional à quilometragem. Viajar a Espumoso produzirá um rápido olhar 43, Santo Ângelo resultará em flerte, Rio de Janeiro ocasionará um caso, Natal renderá breve namoro, deslocamento ao Acre talvez pinte noivado.

Mas, para casar com véu e grinalda, aposte alto e compre passagem de ida (somente de ida!) a Bangladesh.



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 18/10/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16859

sábado, 15 de outubro de 2011

MINHA HOMENAGEM AO ÚLTIMO PAYADOR

A cidade visitada na edição de hoje é São Luiz Gonzaga, terra de 34,5 mil habitantes, distante 465 quilômetros de Porto Alegre, berço do músico Pedro Ortaça, lenda da trova missioneira. Fotos de Rogério Sartori.

Põe o cavalo a correr.
Se é fiel, ele volta.
Se é triste, ele morre.
Se é vento, ele sonha.
Enche o pulmão para ler
e não se afogar na neblina.
Depois de Jayme Caetano Braun,
Noel Guarani e Cenair Maíca,
o único que está vivo
é Pedro Ortaça, um dos quatro
troncos do protesto, arisco,
febril, nosso estado pelo avesso.
Pedro Ortaça não é um nome,
mas uma condição missioneira.
Payador, bruxo solto, árvore
à sombra das catedrais jesuíticas.
Pedro Ortaça é uma joia da ofensa,
sessenta e nove anos de bem com a maldade,
quando canta sua voz é outra, tão diversa
da sua, usa a aspa do cavanhaque
a traduzir o Rio Uruguai.
Baixa em si o espírito dos Sete Povos,
pomba-gira é Sepé Tiaraju,
índio de secreto mundo
exorcizando massacres sem fim.
A terra colorada é o poncho que cobre a ave
de São Luiz Gonzaga. Por favor, com licença,
Pedro Ortaça é a cidade reunida na estância,
aquece os olhos como quem serve o mate:
não deixa esfriar a raiva,
o coração sempre está além
daquilo que se entende,
só pede perdão lutando.
O maior riso surge do desespero,
a dor brilha mais do que ferro puro,
mais do que carência de espelho,
mais do que dente de ouro.
Pedro Ortaça não é flor que se cheire,
é pedra andando, campo encilhado,
desarruma o pago e os limites
tocando violão com arames das cercas.
Ostenta o bigode afiado
contando aflições antigas
de um jeito alto, desaforado,
próprio do galpão de amigos.
Não foi fácil desatar o grito,
montar guarda em centenas de letras.
Recebeu de um pescador sua faca;
do avô Quintino, o acordeão;
da mãe Cândida, as modinhas fraseadas;
e do pai Alberto, a fome de pirão e pão.
Os nervos custaram a desmanchar
na carne dura, magra, cigana.
Por mais que se monte banda,
por mais que se apresse o dom,
a montanha demora a devolver o som.
Vendeu sangue para conseguir viagem,
quatrocentos gramas de veia
foram seus bilhetes de trem.
Ele bem sabe, o verso faz história.
Pedro Ortaça é uma figura esguia,
de origem ilusória, mínima,
brincava para esquecer a falta de comida.
Passava acordado de madrugada
espiando o baile dos adultos.
Mais do que o café do medo,
não dormia pela beleza dos timbres.
Tirou a morte a dançar, mascou todo gengibre.
Não teve cadeira de letrado,
não botou sua honra no penhor,
não procurou nada emprestado,
não disse amém ao senhor.


Ortaça, feito de taipas e relâmpagos,
transforma as ruínas em tambores,
veste crepúsculos, manto guarani aos ombros,
suas mãos escrevem galopes.
Ortaça, Ortaça, a chuva não cala o fogo.
Quem inventa nunca chega atrasado
na lembrança. A guitarra é campo santo,
não terminam os ouvidos de pampear.
Quem inventa nunca chega atrasado
no parto. A rédea é aceno do canto,
não terminam os ouvidos de guerrear.
Ortaça, Ortaça, Ortaça já viu o demo,
o redemoinho, no meio da colheita:
nuvens negras de gafanhotos
roubaram sua infância.
Ninguém mais assusta Pedro Ortaça,
ele jamais duvidou do instinto
que vem do passado cancioneiro.
Não desistiu de ser bicho,
da valentia de sua gente,
de brigar por improviso, matreiro.
Pois aquele que nada tem, nada deve,
nada teme, vive por inteiro.






Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 32, 15/10/2011
Porto Alegre, Edição N° 16856
Pedro Ortaça canta como quem duela. Veja o vídeo feito em São Luiz Gonzaga.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

PEDRA DE TOQUE


Confira minha entrevista ao Pedra de Toque - A Poesia Contemporânea Brasileira, no Portal do Itaú Cultural. Conversa conduzida pelo ficcionista Eduardo Baszczyn. Ouça aqui.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

NÃO RECLAME DO HOMEM RONCANDO

Arte de Joseph Cornell

A esposa reclamava do meu ronco. Dizia que desrespeitava a lei de silêncio do prédio. Ainda mais quando estava absolutamente cansado, naquele estado vegetativo de quem não dorme, porém desmaia.

Capotava de barriga para cima, as pernas esparramadas pela cama inteira.

Ao fechar os olhos, abria a matraca. Não respirava, e sim uivava. Meu inconsciente brincava de língua de sogra. Sorte que adormecia fundo, o necessário para não ouvir minha respiração galopante. Ruim é ter sono leve e ser acordado pelo próprio barulho cavernoso.

Reservava toda a audição da sinfonia para Cínthya. Minha mulher odiava a cortesia e recorria a métodos diversos para me calar.

Inicialmente, ela me ajeitava e massageava o rosto com carinhos. Como não desligava a britadeira, a ternura logo desandou em tortura. Optou pelas ações drásticas: sacudia os braços, comprimia o queixo, apertava o nariz. Em seguida, comprou tapador de ouvidos, touca térmica, fita isolante de sequestrador.

Exausta das tentativas inúteis, veio protestar de manhã:

– Não consigo dormir. Para piorar, seu ronco é ida e volta, lança o ar e engole de novo.

Ensaiei resistência, só que me envergonhei do defeito e fui procurar ajuda. Eu me internei durante três dias no campanário do mosteiro de Três Coroas, conversei por Skype com Dalai Lama, parei de fumar, iniciei ioga, retornei à natação.

Depois de dois meses, não regurgitava mais com o nariz, surdina enfim consertada. Livrei-me do escapamento e das ameaças. Já era um travesseiro de penas de ganso, macio e confiável.

Mas Cínthya continuou a me cutucar de madrugada.

– Ei, ei, ei?
– Que foi amor?
– Tô com insônia, sinto falta de seu ronco, fico com medo de que tenha morrido ao meu lado.

Por obrigação matrimonial, voltei a roncar. Não sou cemitério para descansar em paz. E faço defesa do criativo chiado musical, cheio de tambores e trovões.

Um homem roncando é sinal de saúde. Todos em casa sabem que ele está vivo. Um homem roncando traz segurança ao lar. É ter um cão dentro do quarto. Ninguém assaltará sua casa. Não necessitará pagar alarme ou serviço de vigilância.

Um homem roncando serve como crucifixo. Afasta vampiros, bruxaria, mau olhado, demônios e fantasmas.

Um homem roncando revela satisfação sexual. O ronco é o casamento escondido da risada com o gemido.

Por favor, não seja precipitada, não critique mais seu marido, antes que você se torne sonâmbula da saudade.

Homem é como chimarrão: se não roncar, é falta de respeito.



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 11/10/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16852

sábado, 8 de outubro de 2011

LÍNGUA VIVA DE UM PAÍS MORTO

Casados há cinco décadas, Álida e Arno só conversam no idioma pomerano. Fotos de Nauro Júnior.

Pomerânia não está pintada de azul no mapa mundi.

Era um país eslavo, na fronteira entre a Alemanha e a Polônia, reduzido a ducado no século 11, apequenado em província no século 18 e que deixou de existir de vez com o fim da II Guerra Mundial, em 1945 (85% do território foi incorporado pelos poloneses e 15% acabou sob domínio dos alemães).

Mas seu idioma áspero ainda é falado no Rio Grande do Sul.

Em São Lourenço do Sul, cidade de 43 mil habitantes, a 195 quilômetros da Capital, famílias mantêm viva a língua de uma região extinta. Para não sofrer boicote, as lojas são condicionadas a contratar funcionários que respeitem a tradição.

O agricultor Arno Bubolz, 76 anos, defende a bandeira com unhas, dentes e enxada. Bisneto de um dos primeiros imigrantes da Pomerânia a desembarcar no Rio Grande do Sul (Fritz desceu no Porto da Lagoa dos Patos, em 1868), não abre mão da origem. Conversa exclusivamente em pomerano com os parentes.

– É o nosso código de amor – afirma Álida Bubolz, 74 anos, sua mulher há cinco décadas.

– Ela me diz cada coisa no ouvido que apenas eu entendo e não posso traduzir – reage Arno.

– Meu marido adora xingar no idioma dos avós. Mas não xinga de ruim, para amaldiçoar, xinga de faceiro, de orgulho – completa Álida.


De largo chapéu de palha e inseparáveis tamancos, Arno é simpatia pura. Álida aproveita a vulnerabilidade de seu riso para beliscar as faces rosadas.

– Até seu beijo é pomerano. Ele transmite sua felicidade pelos lábios – confidencia a esposa.

– Temos uma paixão pelo som. Em vez dos olhos, observamos a boca para ver se a pessoa está mentindo – argumenta Arno.

O dialeto tem uma pronúncia semelhante ao alemão. Resiste apenas como língua oral no Estado, sem representações por escrito.

– Fui entender português tardiamente, aos sete anos, na escola – esclarece Hilmar, 46 anos, um dos seis filhos do casal.

Ao longo das bodas de ouro, o par honrou os rituais dos antepassados da costa do Mar Báltico. Preservou hábitos diferentes, a princípio estranhos para seus vizinhos gaudérios. Um deles é o vestido negro da noiva.

– Matrimônio é luto para mulher. Significa abdicar da proteção dos pais – explica Arno.

O casório é permeado de regras especiais. Não é permitido convite impresso. A cultura estabelece a figura do convidador: um padrinho – de preferência de fígado forte – que visita a comunidade convocando os amigos para a festa. Ele é obrigado a beber um gole de maischnaps, cachaça típica feita com 32 ervas, em cada residência.

– Certo que volta embriagado da missão, e não lembra quem realmente convidou. Depois a cerimônia enche de penetras – ri Arno.

Outro ritual é colocar o primogênito de castigo na hipótese de o caçula casar antes.

– São castigos divertidos. O filho encalhado é condenado a passar uma tarde inteira sentado no fogão, para aprender a não ser mais bobo – pontua Hilmar.

Arno e Álida já são os professores de pomerano dos 13 netos, criançada que lota todo o galpão da fazenda na Estrada da Divisa.

– Não seremos o último capítulo do idioma. O livro não termina com o fim.

The End. Ou, para os íntimos dos antigos celtas, Yho.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 32, 8/10/2011
Porto Alegre, Edição N° 16850
Veja hábitos de pomeranos e vídeos de São Lourenço do Sul.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O GRANDE MENTECAPTO

Foto de Alexandra Martins

Pensava que seria protagonista, cheguei de manhã no set de filmagens e virei coadjuvante. De tarde, já era figurante. No final, terminei como ponta. Essa foi a minha história no divertido comercial da Nextel.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

PREENCHA A LINHA PONTILHADA

Arte de Victor Brauner

No aeroporto, vinha um segurança gigantesco em minha direção. Uma porta fardada. Com roupa azul e frisos amarelos nas mangas. O coldre enviesado indicava seu trabalho de vigilância. Seu andar anabolizava a atenção das mesas da Praça de Alimentação.

Ele se aproximava lentamente, tinha um rosto malvado, duro, tenso. Os bandidos deveriam temê-lo, lembrava o Falcon de minha infância; a barba rala e a cicatriz na testa.

Quando ele passou por mim, eu vi seu crachá e sua maldade desapareceu no ato, foi substituída por uma candura de carrossel, de pônei pintado e música de ninar.

Estava escrito no crachá: EM TREINAMENTO.

Constrangedor fazê-lo prestar serviço com o claro aviso do período probatório. É desarmá-lo moralmente.

O ideal é que seja treinado para depois entrar em atividade. Não entrar em atividade para ser debochado.

Por que não colocar uma tabuleta no pescoço ou prendê-lo no picadeiro?

O estrago é igual. Não havia mais como levá-lo a sério. Emanou uma compaixão reservada aos passarinhos de asa pisada, que correm em círculos pelo jardim.

Coitado, pensei; projetar é recuperar no outro a própria memória, lembrei meu início profissional. Aguentava as provocações do chefe pela esperança de ser efetivado (aquilo não era esperança, mas perpétuo adiamento).

Em treinamento é dizer que o guarda não merece a identidade, que sequer recebe o FGTS, que é uma versão envelhecida de um estagiário.

É um sadismo das empresas estabelecer o sofrimento como critério para merecer o emprego. Mania absurda de considerar sacrifício e renúncia requisitos de um bom trabalhador.

Já não foi provado de que o purgatório não existe, de que é uma invenção da Igreja Católica?

Novatos terminam atrás do balcão com advertência macabra EM TESTE. A tarja no bolso da camisa é um carro colorido de autoescola: mantenha distância. As letras surgem em caixa alta, para não deixar dúvida da ausência de competência.

Com o crachá de aprendiz, os erros de atendimento serão condenados antes do julgamento. Diante do primeiro impasse, os candidatos ao emprego fixo vão se tornar garotos de recado e ouvir sempre o mesmo apelo:

- Por favor, chame o gerente!

Dinheiro é arrogância, os clientes não toleram iniciantes, reclamam da inexperiência, maltratam os novatos.

A identificação temporária difere pouco dos patrões que zombam de seus funcionários ao exigir que usem roupas típicas para atrair consumidores. Expor-se como coelho da páscoa, papai noel e caipira não vale o carimbo da carteira de trabalho.

Fantasia é uma escolha pessoal, torna-se crime quando imposta. Assim como ninguém pode tirar o direito que cada um tem de se humilhar.

Ser provisório é uma ofensa definitiva.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

FALSO BRILHANTE

Arte de Leonardo da Vinci

Há o condicionamento de que amor mesmo, de verdade, é gastar metade do salário para a esquadrilha da fumaça assinar o nome da namorada pelos céus de Porto Alegre.

Temos uma noção de que amor mesmo, de verdade, é exibicionista. Depende de surpresas públicas de afeto como serenata na janela, carro de som, anúncios na TV, outdoors com pedido de casamento.

Mulheres e homens se desesperam por um amor público, encantado, de estádio cheio, e cobram provas mirabolantes de seus parceiros. Reclamam da rotina, da previsibilidade, e exigem declarações barulhentas para despertar a inveja do próximo.

O amor espalhafatoso recebe a fama, mas o amor contido é o mais profundo.

Ao procurar o amor empresarial, desprezamos o amor funcionário público, que atende às ligações e escreve nossos memorandos.

Ao perseguir o amor de cinema, desdenhamos o amor de teatro, de quem encena a peça todo dia ao nosso lado, sempre com uma interpretação nova a partir das falas iguais.

Ao cobiçar o amor sensual de lareira e restaurante, apagamos a delícia de comer direto nas panelas, sem pratos, sem medo do garçom.

Ao perseguir a aventura, negamos a permanência.

Preocupados em ser reconhecidos mais do que amar, esquecemos a verdade pessoal e despojada do nosso relacionamento. Recusamos o amor constante, o amor cúmplice.

Não valorizamos a passionalidade silenciosa, a passionalidade humilde, a passionalidade generosa, a passionalidade tímida, a passionalidade artesanal.

O passional pode ser discreto na aparência e prático na ternura.

O amor mais contundente é o que não precisa ser visto para existir. E continuará sendo feito apesar de não ser reparado.

O amor real é secreto. É conservar um pouco de amor platônico dentro do amor correspondido. É reservar as gavetas do armário mais acessíveis para as roupas dela, é deixar que sua mulher tome a última fatia da pizza que você mais gosta, é separar as roupas de noite para não acordá-la de manhã. E nunca falar que isso aconteceu. E não jogar na cara qualquer ação. E não se vangloriar das próprias delicadezas.

Buscá-la no trabalho é o equivalente a oferecer um par de brilhantes. Esperá-la com comida pronta é o equivalente a acolhê-la com um buquê de rosas vermelhas.

São demonstrações sutis, que não dá para contar para os outros, mas que contam muito na hora de acordar para enfrentar a vida.



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 04/10/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16846

sábado, 1 de outubro de 2011

EMBAIXADOR DA GARGALHADA

Beltrame e seu mascote Chico à beira do Rio Uruguai: animal é atração há duas gerações de turistas. Fotos de Ricardo Duarte

Mais de 2 mil motoristas que atravessam diariamente a linha que separa as cidades de Palmitos (SC) e Iraí procuram cumprimentar um personagem típico da divisa entre os dois Estados: o macaco-prego Chico.

– Ele é tão visto na região quanto o Rio Uruguai – avisa Bola, vulgo Ricardo Beltrame, 49 anos, seu proprietário há duas décadas e meia desde que o simpático animal foi comprado de um motoqueiro.

Chico é um embaixador gaúcho da BR-386, mascote do poncho e da bombacha. Saúda todo visitante que entra pelo limite do Estado com Santa Catarina.

Morando numa casinha de madeira junto a um chalé, o macaquinho acena para as crianças, usa o trapézio dos galhos para mostrar o sovaco, arreganha os dentes para as fotos. Tornou-se uma atração à parte de Iraí, município de 8 mil habitantes, situado a 485 quilômetros de Porto Alegre. Com modesta cambalhota, ele arranca uma chuva de nozes, pinhão e aplausos.

– Sua casa é um camarim. O problema são as exigências de celebridade. Coloquei a Preta (pastor alemão) e a Peca (vira-lata) como guarda-costas – debocha Bola.

A fama atingiu duas gerações de turistas. Para conhecê-lo, houve menino que saiu de Mato Grosso segurando um cacho de bananas durante a viagem inteira.

Aproveitando a condição de primata mais inteligente da América e o único que utiliza pedras e madeiras para abrir objetos, Chico é capricorniano, impossível, ansioso, temperamental, possessivo. Os defeitos não rendem castigo e isolamento. Pelo contrário, aumentaram a popularidade e o conforto.

Pesando três quilos de fofura, ele desenvolveu um apetite estranho, voraz, gaudério de raiz. Não se interessa por fruta, come apenas quando não há nada melhor. Por outro lado, saliva com um suculento pedaço de costela malpassada na tábua.

– Na hora do churrasco, Chico soca o telhado pedindo preferência. Nasceu com mate misturado ao sangue.

Os acessos de fúria não se restringem à fome. Enlouquece de ciúme da paternidade de seu dono. Ralha com qualquer aproximação dos filhos Ricardo, 22 anos, e Leonardo, 17 anos. Ao perceber desvantagem de cuidado, converte-se numa assustadora e mimada prima-dona. Faz escândalo, ameaça morder os jovens e bate o rabo no chão com o tremor irritante de chocalho.

– Sou obrigado a andar de carro para acalmá-lo.

O bicho termina por alcançar o que desejava. Acompanhar Bola nos passeios ao centro da cidade é sua glória urbana, momento raro em que permanece imóvel e pacificado. Senta no para-brisa do jipe e curte o vento de 60 km/h no rosto.

– Ele só não fala para não trabalhar.

As traquinagens rendem mobilizações familiares e expedições pelas árvores e encostas do rio. Rápido e acrobata, não cansa de testar a generosidade dos curiosos e furtar picolé, celular, máquina fotográfica e chapéu.

– Mas o que ele mais gosta de afanar é sorriso.

Bola que o diga, era um burocrata carrancudo, inseguro, enfiado numa escrivaninha de agência bancária. O macaquinho mudou sua história.

– Não tem como ser sério com o macaco. Podemos ser compenetrados com cachorro ou gato, mas com ele não. Exige a gargalhada. É o rei das cócegas.



Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 32, 1°/10/2011
Porto Alegre, Edição N° 16843
Veja vídeos do macaco-prego Chico e de minha passagem por Iraí.