quarta-feira, 30 de março de 2011

QUE DIA É HOJE?

 Arte de Cínthya Verri


— Onde estão as crianças?
— Na casa da avó.
— Por que tudo isso?
— É um dia especial, amor.
— Nossa, querido, não esperava que você me preparasse o jantar!
— Não podia ser menos.
— Mas até velas, Jesus!, champanha Brut gelada!
— Viu? Não esqueci, nunca poderia esquecer.
— Esquecer do quê?
— Não diz que esqueceu, Joana?
— Não, não, imagina…

(Não era aniversário dela, muito menos dele)

— Ai que bom, já estava com medo de que não tivesse sido importante para você.
— Claro que foi, estava fingindo surpresa.
— E o que lembra daquele dia?
— Ahnan.
— Daquele dia, o que mais marcou você?

(Não era aniversário do casamento, nem do namoro)

— Ah… Seu jeito de mexer meus cabelos.
— Mas você não me deixava tocar, dizia que o cabelo de prenda é como beijo de puta.
— Ah, é mesmo.

(Pô, aniversário de quem?)

— O que não esqueço; senta, vamos comer.
— Que delícia, tortei.
— Deixa que sirvo; o que não esqueço é que você foi embora pensando que eu iria correr atrás.
— E?
— Como assim “e”? Eu corri, né?
— É verdade…
— Você não lembra que dia é hoje, não lembra, esqueceu de novo!
— Olha, Olavo, juro que tentei, mas não fica magoado, por favor…
— Como que não? Parece que somente eu dou bola para a relação.
— Não é isso, tô muito cansada para forçar a cabeça.
— Forçar a cabeça? Eu não mereço seu esforço, ótimo.
— Não é isso, é que…
— É que?
— É que não queria cobrança de nada.
— Comemorar agora é cobrança, onde vamos parar?
— Não quero estragar, vamos lá, me perdoa.
— Porra, Joana, é o dia do nosso primeiro beijo, há dez anos, na frente da banca do Mercado Público.
— Como você é romântico…
— E como você é insensível…
— Vai começar?
— Perdi a fome. Pode comer sozinha…
— Não faz cena, Olavo!
— E só para você saber: é também aniversário de nossa primeira briga.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 28 de março de 2011

BORRALHEIRO!

Para estourar a boca do balão; Vicente com medo do escândalo. Foto de Cínthya Verri

Fabrício Carpinejar vai lançar "Borralheiro: uma viagem pela casa". Retrata um novo homem, que estaria preferindo ser do lar. Vantagens:

* O poder cansa, estressa, gera infarto. A submissão traz longevidade.
* Nada mais tranquilo do que viver de mesada.
* O Borralheiro curte a infância dos filhos, com disponibilidade pay-per-view.
* Aprende pole dance e refina fantasias sexuais.
* Tem a preferência da reclamação, lamentando que nunca é valorizado pela família.
* Descobre o que os vizinhos pensam dele.

Outros benefícios:

* Especializar-se na arte da conspiração e da intriga.
* Influenciar o comportamento dos outros pela fofoca.
* Retomar a coleção de aeromodelismo da infância.
* Discutir o relacionamento com mais freqüência e ampliar o repertório de palavrões no estádio de futebol.
* Manter-se livre dos tribunais e cobranças, pois nenhuma dona de casa foi processada até hoje.
* Aperfeiçoar o faro para infidelidade, com a possibilidade de mexer em bolsos, roupas e gavetas.
* Ganhar isenção do Imposto de Renda.
* Aproveitar o tempo livre para cursos, cinema e teatro.
* Vingar-se da mãe cozinhando melhor do que ela.
* Por fim, é sempre mais prazeroso puxar o saco da mulher do que do chefe.

Publicado no Jornal O Globo
Segundo Caderno, 26/03/11, P. 3
Coluna Gente Boa, Joaquim Ferreira dos Santos
Rio de Janeiro (RJ)

sábado, 26 de março de 2011

VIAGENS (ELEITORAIS) DE GULLIVER

Arte de Genaro Joner

André da Rocha tem a menor população do Estado. Cabe inteira no teatro do Bourbon Shopping Country. São mil e 200 moradores do povoado serrano, que fica a 195 quilômetros da Capital.

– Dirigimos sempre com a primeira marcha, não dá tempo de trocar para segunda – graceja Édson José Vieira.

Para ser eleito na cidade, um vereador precisa de 80 votos; o campeão das urnas não ultrapassa 130. O ímpeto é concluir que se trata de uma barbada, melhor do que concorrer a síndico em Porto Alegre.

Errado. Reduzir o eleitorado é piorar a guerra.

André da Rocha apresenta a eleição mais disputada e espinhosa do Rio Grande do Sul. Dezessete nomes brigam pelas nove vagas da Câmara. Se alguém arrebata a promessa de um vizinho, é obrigado a voltar na manhã seguinte para conseguir de novo, já que outro interessado passou lá, e assim sucessivamente, numa trova de meses.

Ganha-se o apoio no grito, perde-se no sussurro. Na véspera eleitoral, os cabos eleitorais não dormem, na derradeira tentativa de virar uma opinião. Os concorrentes se transformam em leões de chácara de seus amigos, com direito a vigília e campana.

– Vi vereador sair da lista do TRE por um voto – avalia Édson, 49 anos, chefe de gabinete da prefeitura.

Ele viveu na pele a igualdade enervante de forças. Seu pai, José Carlos Vieira, hoje falecido, concorreu na primeira eleição do município, em 1988, e empatou com Miguel Angelo Tagliari, pelo emocionante placar de 442 votos a 442 votos. O critério de desempate terminou sendo a idade. Tagliari tornou-se chefe do Executivo em função dos 70 anos (contra 58 do adversário).

Os políticos sofrem porque todo mundo se conhece. Levino de Souza Dal Olmo, 60 anos, vereador por duas gestões, amargou a suplência do PP no pleito de 2008 por apenas quatro votos. Ele alcançou 73, o último colega a entrar teve 77. Menos de uma mão o separou do salário de R$ 1 mil e das acaloradas sessões quinzenais às quartas-feiras.

– É complicado, nosso lugar é pequeno, o eleitor se envergonha diante da pressão, não quer desagradar, promete a muitos e não se compromete com ninguém. Cria a dúvida até o momento de apertar a tecla verde – explica Levino, pai de três filhos (Maira, Lairton e Marisa) e casado com Naide há quatro décadas.

– Avaliando em números, minha votação não é nada. Avaliando meu campo de ação, é uma odisseia – completa.

Uma pesquisa eleitoral seria impossível em André da Rocha, exigiria atualização de hora em hora. Silvana Della Flora, 30 anos, debita a rivalidade pela convivência muito próxima:

– Quem tem três grandes amigos, corre o risco de sacrificar dois numa eleição.

Família grande pode garantir a felicidade do mandato ou quatro anos de ressentimento.

– Dez parentes não votaram em mim, entre irmãos e sobrinhos. Sei certinho quem me abandonou – contabiliza Oliveiro Orsi Furtado, 64 anos.

O aposentado da CEEE quase entrou, faltaram 21 votos.

– Escaparam adesões de repente. Eu me distraí sonhando com a vitória – confessa.

O dono de empresa de transporte escolar, Edgar José Jacques Vieira, também não conquistou a vereança por um triz, foram 15 votos a menos que o eleito Rosalino Cassol, do PMDB.

– A dificuldade de André da Rocha são também os eleitores de fora. Eles surgem no dia da decisão e mudam o nosso destino – justifica.

Curiosamente, o município registra 1.441 votantes, quase 250 eleitores a mais do que o número de habitantes; marca que anularia a vantagem do atual prefeito Braz Hoffmann sobre o oponente derrotado Heroni Jacques.

Não é incrível?

Em André da Rocha, fofoca não é telefone sem fio, mas urna sem fio.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 40, 26/03/2011
Porto Alegre, Edição N° 16651
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quarta-feira, 23 de março de 2011

FREUD E MELAINE KLEIN

Arte de Cínthya Verri

O amigo Sandro tem um adorável casal de malteses brancos. Às vezes eu o visito para matar saudade de seus fiéis escudeiros. O latido deles é a campainha do apartamento. Cismo apenas com os nomes dos dois: Freud e Melaine Klein. Já critiquei abertamente meu camarada de sua grandiloquência enrustida. Não são mais cachorros, mas Wikipédia.

— Menos, Sandro, não mete os autores no meio! Por que não personagens? Quer mostrar erudição, então que tal Édipo e Electra, para contemplar nossos principais complexos?

Não adiantou, ficaram para sempre Freud e Melaine Klein.

Meu ponto de vista é de que podemos descobrir a pretensão de alguém pelo nome que dá aos seus cães. É onde enterra o osso de sua ambição, sob o disfarce de homenagem divertida.

Profetizo que Sandro chamará a primeira ninhada de Lacan e Winnicott. O que definirá o batismo não será determinado pela aparência e pela raça, e sim pela linha de atuação teórica do seu dono.

É evidente que meu amigo é psicanalista e ainda mostra que não deseja ser qualquer um, mas o profissional com o maior número de citações em pesquisas acadêmicas, o sucessor máximo dos principais baluartes de sua estante. Ele nunca admitiu a aspiração publicamente, diz que não chega nem aos pés de seus ídolos. A dupla de cães forma seu alter ego e contraria a falsa modéstia.

Sandro não fez isso com seu filho, que batizou de João. Um simples e eficiente João. Pode ser uma homenagem a João Gilberto ou João Cabral e tantos joões divinos que circulam pela posteridade da arte. Cuidou para manter o primeiro nome e não restringir o futuro colando o sobrenome de um artista famoso. Que terrível destino de um menino, cria de católicos fervorosos, nomeado de João Paulo Segundo. Terminar como papa, ok, mas nascer como papa é agouro.

Restou ao pequeno João a liberdade de ser outro João. Seu pai não foi soberbo, parou no pudor de cartório.

Já com os animais de estimação, Sandro extravasou a ração da vaidade. Além de roer as almofadas do divã, os coitados não têm como se defender.

O que tem de Beethoven, Shakira, Mandela, Napoleão e Michael Jackson passeando de coleira nos parques não é brincadeira. Onde está a simplicidade carinhosa do apelido, onde foram parar Totó, Mel, Bidu, Xodó, Rex?

As praças são manicômios de focinhos. Onde ninguém admite ser anônimo, todo mundo pretende ser celebridade por tabela. Estamos enlouquecendo os bichos.

O cachorro é o nosso melhor amigo, convém não abusar da lealdade.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 22 de março de 2011

DEBATE SOBRE BELEZA INTERIOR



Debate na quinta (24/3), às 19h30, na Livraria Saraiva do Shopping Praia de Belas, em Porto Alegre (RS). Conversarei com os leitores sobre a série Beleza Interior, do jornal Zero Hora. Lembrarei histórias e causos dos dois meses e meio de reportagem. A mediação do encontro será de Barbara Nickel, editora de mídias sociais do Grupo RBS.

segunda-feira, 21 de março de 2011

O MAIS EXTREMO ÓDIO COM O MAIS EXTREMO AMOR

Arte de Harold Gilman


A vingança encharca a literatura e a música, mas seus mistérios jamais serão esgotados.

Vingança é uma arte, o refinamento da carência. Quem procura se vingar do ex ou da ex, na verdade, não cansou de brigar. Não terminou de argumentar. Vingança é discutir o relacionamento sozinho, é discutir o relacionamento à distância, é dedicar o dia inteiro, às vezes a vida inteira, a arquitetar uma forma de chamar a atenção do amante que negou o ouvido.

O luto é destinado aos que amam amar. Vinga-se a pessoa que odeia amar, odeia continuar amando. É o encontro do mais extremo ódio com o mais extremo amor. A união de dois terrorismos.

Vinga-se aquele que acredita que deu mais do que recebeu e que se enxerga ludibriado. Aquele que, durante a relação, cobrava em segredo tudo o que oferecia, listava presentes e gestos. A vingança é o juízo final do avarento amoroso.

Indica também prepotência. O vingador se enxerga superior ao vingado, mais experiente e sábio. Acha que está ensinando seu antigo par. Encarna a figura de professor repreendendo o erro do aluno. Assim como não sofre em vão, somente se humilha para humilhar o outro. Todo sofrimento é arrogante, debitado na conta do desafeto.

O vingador cobiça a última palavra pois não aceita que alguém pense o pior dele. Planeja castigar as supostas distorções e intimidar as possíveis confissões de sua intimidade. O vingador vive por hipóteses. Não entendeu que a última palavra não existe, é uma desculpa para mandar.

A vingança é o mais paradoxal dos atos: um sentimento inteligente em mãos burras e desgovernadas; uma pressa que exige longa paciência e dissimulação. Requer as mais contraditórias atitudes: sangue frio de alguém com sangue quente; calar-se apesar da exagerada vontade de falar.

A vingança fracassa pela ânsia de fama do seu autor. Quem busca se vingar pretende que o outro saiba que foi ele, que não tenha nenhuma dúvida. Deseja dar o troco beijando a boca, olhando nos olhos. Conclui que não adianta nada uma vingança sem remetente. E peca pela ambição, erra ao se expor, porque a represália aguda e exitosa esconde o criminoso para a perfeição do crime; deve ser anônima, gerando a desconfiança, mas não entregando totalmente o seu mentor.

Não conheço vingança perfeita. Não se vingar talvez seja a melhor vingança. Fazer esperar uma resposta que nunca virá.




Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 21/03/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16646

domingo, 20 de março de 2011

TERRORISTA DO AMOR



Se alguém não conhecia minha palestra, acabou o mistério. Se alguém ainda tinha dúvida da minha insanidade, pode ter certeza agora. Veja minha participação no projeto Sempre um Papo, minha interação com o público, minha conversa com o sempre atento Afonso Borges. O encontro ocorreu em novembro do ano passado, em Belo Horizonte (MG), no Palácio das Artes, durante lançamento do livro Mulher Perdigueira (Bertrand Brasil). Cinquenta minutos de terrorismo.

sábado, 19 de março de 2011

A FANTÁSTICA USINA DE DOCES DO ESTADO

Anette ao lado da filha Cristiane. Fotos de Genaro Joner.

Um caderninho escolar surrado, sujo de comida, é o maior patrimônio de Anette Ruas, 53 anos. Mais sigiloso do que agenda de adolescente, mais importante do que inventário de morto.

Ela troca o objeto de esconderijo toda semana. Às vezes esconde tão bem que tarda a achar. O conteúdo vale a fortuna acumulada de três gerações. Trata-se do livrinho de receitas da família, alma da empresa “Anette Ruas”. A verdadeira bíblia do açúcar, com os segredos portugueses de 40 tipos de confeitos, sustenta uma fábrica de 15 funcionários e gera uma produção de 5 mil produtos por dia. É óbvio que a história acontece em Pelotas, cidade que é sobrenome de doce, onde até existe legislação para evitar a concorrência desleal.

Nas vitrines pelotenses, não vale colocar brigadeiro grande para ganhar a preferência do cliente. Doce de festa precisa ter até 40 gramas e o de confeitaria não pode ultrapassar 70 gramas. O melhor negrinho é sempre o menor, do tamanho de uma unha e que se desmancha na boca. O terceiro município mais populoso do Estado, a 250 quilômetros de Porto Alegre, leva a sério a atmosfera pecadora de claras, gemas, chocolate e massas. Isso explica a preocupação obsessiva de Anette em proteger suas fórmulas.

– Minha biografia são as receitas.

Mas não espere letra arredondada de caligrafia. A encadernação está acabada, com algumas folhas soltas e recheada de códigos, asteriscos e anotações apressadas. Os filhos de Anette, quando pequenos, aproveitaram a distração materna com as panelas e desenharam caretas, nuvens e sol entre o modo de preparo da queijadinha e do camafeu. Telefones de eletricista e pedreiros e outras emergências aparecem de repente, sem nenhuma explicação.

– A confusão é a essência do caderninho, a vida no meio da vida – explica.

O caderno esnobou a amizade da borracha. Um sacrilégio impensável é passar a limpo as informações.

– Assim como é impossível viver sem palavrão na intimidade – compara.

O prazer reside na simplicidade. As rasuras enganam curiosos e dificultam a localização dos tesouros. A receita de quindim, a mais importante, está no rodapé da página, como se fosse secundária.

– Quem escreve bonito demais não cozinha bem – esclarece.

Segundo Anette, não convém separar a vida pessoal da profissional. Ela abriu o negócio em 2001, no casarão do avô Pedro, após desemprego do marido, Renato, no comércio de couro. Assumiu o legado cultural iniciado pela madrinha Nilza há 50 anos. O que veio como um socorro das finanças acabou justificando a precocidade gustativa na infância.

– Debaixo das acácias, aos nove anos, eu colocava chimia de pêssego nos tachos e ouvia as estórias da avó Conceição e da mãe Maria Lopes. Cozinhar é lembrar o quanto já fui amada – confessa.

O amor influencia a rotação das panelas e das mais altas estrelas. Não é lenda: uma noite romântica melhora a qualidade do confeito. José Antonio, 18 anos, espera que o nome das guloseimas lhe ajude a arrumar a primeira namorada. Já traçou o plano de carreira na fábrica. Começar por beijinho de coco, enfrentar o olho de sogra para terminar bem casado.

O doce exige mesmo romance, já que é feito um por um, com paciência artesanal. Pamela Furtado Armindaliz, 21, bate o cartão um pouco frustrada com a maravilhosa recepção do seu trabalho. Ela pinta os bombons durante horas para serem devorados em segundos.

– Devo entender que não é um enfeite. Quanto mais saboroso, mais rápida a despedida – lamenta Pamela.

Anette dedica a manhã e a tarde ao paraíso da glicose. Nas folgas noturnas, é de se esperar que fique longe do fogão. Que nada. Seu lazer é fazer figos em calda.

– O doce é meu coração calmo – suspira.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 40, 19/03/2011
Porto Alegre, Edição N° 16644
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quinta-feira, 17 de março de 2011

VOO 1965

Arte de André Farkas


“Barrabás chegou à família por via marítima, anotou a menina Clara com a sua delicada caligrafia. Já nessa altura tinha o hábito de escrever as coisas importantes e mais tarde, quando ficou muda, escrevia também as trivialidades, sem suspeitar que, 50 anos depois, os seus cadernos me iriam servir para resgatar a memória do passado e sobreviver ao meu próprio espanto...”

Comecei a ler A Casa dos Espíritos, sua obra preferida, mãe. Tem sua assinatura no início, anotações pelos cantos, trechos sublinhados. Você queria que lesse... Insistiu. Meu nome é uma homenagem à personagem, né?

Quando íamos para escola na semana passada, lembro que comentou que Isabel Allende decidiu escrever uma carta para o avô doente e saiu todo um livro. Que loucura.

Na semana passada, você existia. Que loucura... Sempre usei a palavra para algo alegre, que loucura triste, como a loucura é triste.

Acordei de manhã com a ideia de que o tempo é a única liberdade. Achei a frase inteligente e guardei para o nosso próximo reencontro.

Pensei que teria tempo para mim, que poderia deixá-la de lado pela adolescência, dar mais atenção aos amigos, curtir as festas, namorar de montão, zapear pela internet e, ao final, a gente se encontraria para uma conversa animada sobre segredos. Como filmes de reconciliação entre mãe e filha, de abraços miados e choros.

Mas não brigamos e não fizemos as pazes.

Eu me enganei: não existe tempo ideal, existe tempo daquele jeito sem jeito, como vier.

Pegava no meu pé quando recebia torpedo no jantar. O barulho do torpedo me agitava, eu já me posicionava a olhar e a responder e você implicava: Agora não!

Como mesmo você chamava o torpedo? De soluço do celular. Isso, dizia que meu celular estava soluçando.

Aquele “agora não” me engasgava, era muito autoritário. Gostava de decidir o que, como e quando. Que saco.

Agora eu posso e você não.

Vontade é dizer: agora não, mãe, não morre, agora não morre.


Você se irritava demais porque roubava suas roupas de noite, sem permissão. Sabe que nunca mais entrei em seu armário? Não consegui mais puxar uma blusa, não tenho coragem. Nossa casa é um cemitério, nem preciso sair daqui para visitá-la, mãe. Vejo você em qualquer canto. Um fantasma apareceria menos vezes do que você, mãe. Você é uma ausência. Mais do que um fantasma. Uma ausência. Não houve um corpo para enterrar, desapareceu. Sumiu de repente.

Está em tudo e em nada. Não posso ouvir uma campainha, um interfone, sem desconfiar de um milagre, porra, um milagre, um erro de digitação de Deus. Senhorita, não era Mendes na lista, mas Medes. Uma letra diferente e você estaria viva.

Estou adulta depois que a companhia aérea confirmou seu nome no desastre. Adulta com 15 anos, caralho. Odiava palavrão, aguenta. Caralho!!!!

Por que, mãe? Por que me obrigou a crescer, estou com raiva de crescer para aguentar a dor.

Por que ninguém cresce sem dor? Por que não se cresce na alegria? Parece que a alegria só nos torna infantis. Explica, vai? Explica que estou ouvindo.

É estranho que você tenha sido sorteada pela tragédia após vencer azar, desgosto, privação. Logo você que brigou contra a ditadura, não é justo.

Que liberdade é essa? Eu apenas tinha a liberdade para não entender você, liberdade para não a escutar, liberdade para virar as costas.

Não parei para ouvi-la, você enfrentou a prisão quando jovem, eu sofria um pavor de que você tivesse sido maltratada. A vontade era gritar: Cala a boca, não pedi para saber!

Você sentava na sala, os olhos em um ponto fixo do teto, discursando sobre a barra pesada dos anos 60 e 70, havia censura, propaganda estúpida, muito estudante expulso da faculdade, amores despedaçados, porões secretos e sujos, sumiço de gente. Lembrava-se do rio Araguaia, dos acampamentos no mato, da identidade falsa, da paranoia... Eu me trancava no quarto para não ouvir. Para me irritar, você encostava seu rosto na porta e aumentava o volume do noticiário da garganta.

Não pedi para saber, conhecia bem onde terminaria: lembrava e logo cobrava, justificando que a liberdade de hoje custou caro, custou o sonho de muitos colegas, que eu não podia desperdiçar. Emputecida porque não tirei meu título eleitoral, que não guardava a noção do que é expressar a opinião e votar, sei lá, naquela hora parecia minha diretora da escola, não minha mãe.

Você foi torturada?

Está neste momento junto de tantos amigos que desapareceram? O que você pensou durante a queda? O que você estava pensando? Rezou por mim? Doeu?

Depois que se foi, eu puxava conversas antigas, asneiras, recados, recolhia lista de mercado do balcão da cozinha, abria contas, cartas, limpei suas gavetas, para buscar um sentido, uma aviso, um pressentimento. Mas não se é educado ao morrer, não se diz com licença. Saímos porta afora sem avisar. Não se desculpou por ter ido, não posso me desculpar por permanecer.

Em sua última frase, disse que comprou uma lembrança. Você morreu e não sei qual é a lembrança. Você morreu e eu somente me importava com a lembrança: o que será que ela comprou?

Fui fria e estúpida para me proteger. Comprar uma lembrança entendo que é comprar a memória entendo que é comprar a saudade entendo que é comprar o que não tive. Você comprou tudo o que estou escrevendo nesta carta. Linha por linha. Comprou parcelado. Dia a dia. Sou sua lembrança do avião.

Pretendia ser livre, mas não há como ser livre sem alguém para contar a própria liberdade. Liberdade foi feita para se declarar livre. É uma vaidade: sou livre.

Eu jurava que liberdade era lutar contra seus desejos. Lutar contra sua caretice de quarto arrumado, de responsabilidade, de escola. Essa aporrinhação de educar e respeitar. De não sentar de pernas abertas, de reparar que as camisas envelhecem nas golas, de comer devagar.

Deixa falar, transei com 14 anos, perdi a virgindade com o André. Foi ruim na primeira vez, foi mais ou menos na segunda, na terceira eu já tratei de melhorar, não iria esperar que ele tomasse uma atitude.

Está rindo, hein?

Bala, palha, fogo. Do que mais sinto falta é de quando você falava para exigir camisinha do namorado. Saudade do cuidado.

Fique tranquila. Não vou engravidar e morrer para minha filha.

Eu não tinha pensado que você não teria tempo para falar comigo.

O tempo é a única liberdade, mãe. Quando nos falta tempo.

“Barrabás chegou à família por via marítima, anotou a menina Clara com a sua delicada caligrafia.”

Eu deveria escrever um livro, mas acabei fazendo uma carta.

Conto inédito
Publicado na Revista Bravo!
Março de 2011, Ano 13, Nº. 163
SAIDEIRA, Ps. 96-98

quarta-feira, 16 de março de 2011

AÍ TEM COISA

Arte de Cínthya Verri

Minha obsessão é pelos calções esportivos com um pequeno bolso interno. Um esconderijo de simbólicas quantias.

Eu praticamente só jogo futebol de bobeira com os filhos Mariana, 17, e Vicente, 9. Recuso participar de campeonatos da firma, qualquer um pode sacrificar a perna ou o braço no final de semana com colegas de trabalho. O amador é desesperado; por um caneco de latão, entra numa dividida perigosa e cabeceia as chuteiras do zagueiro.

O que faço hoje é aquela bagunça de praça, nada que force o fôlego. Alguns chutes a gol, dois contra um, marcação das traves com pedras e chinelos, corridas cômicas, dribles na linha de fundo e faltas irreverentes — a maneira que ainda encontro para abraçar meus adolescentes.

Levo sempre cinquenta reais. Uma onça por garantia. Não é destinada a comprar lanchinho ou água, não vou subornar o juiz (desnecessária a presença dele em nossa pelada), nem é caixa dois de amolecer a defesa.

Uso a nota sem usá-la. Dependerei dela durante a partida como uma simpatia, um fundo moral, uma fitinha do Nosso Senhor do Bonfim. É a certeza de que não seremos incomodados.

A primeira vez aconteceu na praia, há dois anos, em Balneário Camboriú.

Brincávamos na areia com nossas redes invisíveis entre cocos. Num banco de pedra, de frente ao mar, três adolescentes acompanhavam o nosso ziguezague engraçado. Debochavam da ruindade familiar. Não continham as gaitadas, já nos atrapalhava a exagerada torção dos seus corpos.

Foi o momento em que peguei a grana e desafiei o bando:

— Querem jogar? Valendo cinquenta reais! Topam? É barbada…

Os monstrengos estavam na faixa dos 18 anos, cheios de energia, prepotentes em sua forma física.

Enfatizei o convite:

— Vamos pessoal, é um menino, um velho e uma jovem contra vocês, dinheiro fácil…

Eles se calaram, receosos.

— Não vão dizer que estão com medo da gente, que são covardes? Cinquentinha, hein?

Desconfiaram da mutreta sigilosa: Vicente escondia o jogo, Mariana deveria ser a sucessora natural de Marta na seleção e eu, um ex-jogador disfarçado de tiozinho.

Compreenderam que não iríamos provocar à toa. Já nos enquadravam como jogadores de sinuca que começam perdendo e, na última hora, aposta feita na caçapa, acertam todas as jogadas de surpresa.

O golpe funciona que é uma maravilha — e nos dá a privacidade de um treino fechado.



Crônica publicada no site Vida Breve

sábado, 12 de março de 2011

O CREPÚSCULO MAIS BONITO


Felipe e Valentina brincam sem preocupações no distrito de Árvore Só, batizado por uma figueira secular (reproduzida no livro “História das Terras e Mares do Chuí”, de Péricles Azambuja). Fotos de Genaro Joner


Ele viajou 8 mil quilômetros para estar ali. O aventureiro José Adilson, 27 anos, saiu de bicicleta de sua cidade natal Jacobina, no sertão baiano, pedalou o centro-oeste do Brasil, passou pela porção chilena da Patagônia, atravessou a Argentina e o Uruguai, para estar ali. Inteiramente ali.

Ele escolheu dormir em Árvore Só, um dos seis distritos de Santa Vitória do Palmar, pela beleza imponente e alaranjada do seu crepúsculo.

Colado na BR-471, numa parada de ônibus, armou sua barraca para suspirar pelo declínio do sol no horizonte.

– Valeu a pena todo o chão para testemunhar essa mistura de cores – afirma.

Ele vive na estrada desde junho de 2010 e agora vai explorar o Rio Grande do Sul, começando pelo extremo meridional do Estado e do país.

– Defino o lugar que descansarei pela força do pôr do sol. Na Bahia, há o costume de jantar observando o entardecer.

Árvore Só é a localidade com o nome mais poético do Estado. Seu batismo vem dos espanhóis, da expressão “Árbol solo”, um modo comum de localizar um ponto no pampa pela presença rara de uma árvore.

A árvore em questão era uma figueira secular, que reinava isolada na paisagem e destoava dos matos e descampados da região no final do século 18. Na época, Santa Vitória do Palmar representava uma terra sem dono, chamada de “campos neutrais”, faixa de trégua da disputa territorial entre Portugal e Espanha.

O lugarejo hoje tem 1.415 dos 31 mil moradores do munícipio que fica a 501 quilômetros da Capital. Parte da população trabalha na Fazenda Santa Amélia, cuidando de 3 mil hectares divididos entre plantação de arroz e pecuária. Vinte casas dos funcionários da granja formam um quarteirão. As moradias são gêmeas, de alvenaria, brancas e pequenas, numa rua sem nome.

– Os problemas moram distantes da gente – orgulha-se Maria José Santos Viana, 29 anos.

Suas crianças, Felipe, seis anos, e Valentina, quatro, brincam de bola na rua longe da ameaça de carros. No contraturno da escola, é um universo de eternas férias para os filhos: montar pandorga e arapuca para pássaros, jogar taco e disputar corrida de bicicleta, pescar na lagoa e limpar os peixes na mesa do quintal, tudo feito sob o olhar curioso dos vira-latas.

A infância em Árvore Só é um único dia, de tão parecidos e alegres os dias entre si. O inverno é inverno mesmo, com temperaturas negativas, o verão é verão mesmo, oscilando entre 35ºC e 40ºC. Não há surpresas, muito menos revezes.

– Eu sei o que vou encontrar ao acordar e gosto de encontrar de novo – ri Marlene Resende, 36 anos, que sequer chaveia a porta para dormir.

– O vento sempre venta, não para um minuto, o som faz parte de nossos pensamentos – diz o capataz da fazenda, Leomar Iepsen, 38 anos, responsável pela rotina de 1,5 mil cabeças de gado.

A hipnose é olfativa. Ele acredita que o perfume da Lagoa Mangueira é a grande responsável pela atração da localidade:

– Respiramos o ar limpo e tremente do Oceano Atlântico, já que apenas uma estreita porção de dunas de seis quilômetros separa a lagoa do mar.

Árvore Só fica ainda mais bonita porque seus habitantes a chamam, pela pronúncia rápida e abreviada, de Ave Só. A vontade é planar pelo crepúsculo.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 25, 12/03/2011
Porto Alegre, Edição N° 16637
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quinta-feira, 10 de março de 2011

MESSI!


"Foi uma bicicleta de frente, criou o gol de patinete. A bola e o goleiro estavam em outra rotação, muito mais lentos; Messi congelou o tempo para encobrir e botou o tempo a correr novamente ao arrematar. A bola sobe com efeito, como se zombasse das mãos do arqueiro. Não há jogo de corpo do atacante, mas jogo de corpo da bola. A bola joga para Messi.

Talvez seja o tento mais perfeito que se viu no Camp Nou. Esperava-se o toque ao lado para limpar o goleiro. Não, ele toca por cima, numa manobra absolutamente original. Essa é a diferença do gênio para o craque, da estrela para o cometa. Messi não diviniza o banal, desembaraça o divino. "

Leia toda narração poética no Rolo Compressor.

quarta-feira, 9 de março de 2011

AS APARÊNCIAS NÃO ENGANAM

Arte de Cínthya Verri


Mulher guarda repulsas em segredo. Não abre para a ala masculina o que realmente detesta. Deseja que ele descubra sozinho ou reza para que nunca aprenda mesmo, sempre é bom ter uma pequena vantagem no ódio.

Um dos seus horrores é homem que usa sapato branco. Para ser perdoado, ou ele é um bicheiro extremamente rico, dono de escola de samba, ou um pai de santo poderoso, proprietário de uma granja. Na ausência das duas hipóteses, precisa saber dançar muito bem, reeditar um Fred Astaire do bico fino, tirar música do salto, reproduzir La Marseillaise subindo a escada.

Mulher projeta o futuro no primeiro encontro, o depois vem antes. A realidade disputa corrida com sua idealização. Quando namora já pensa se ele serve para casar. Quando casa já pensa se ele serve para cuidar dos filhos. Por sua vez, homem é de alma retroativa; quando namora e casa, só lembra a sua mãe.

De acordo com o efeito dominó feminino, o cara que compra sapato branco vai adquirir cinto branco. O cara que compra sapato branco vai vestir camisas floreadas e abri-las até o terceiro botão para exibir a corrente de ouro com a inicial do nome. Não terá limite. Não terá censura. Colocará carpim preto com tênis. Aparecerá na cama de cueca cor de pele. É totalmente sem noção, previsão de vexame na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, durante o casamento ou na pensão.

E essa não é a mais constrangedora repugnância. Há uma que envolve a maioria dos parceiros.

O que sua esposa ou namorada não confidencia é a fobia que sente com a rodela de mijo na calça. Toda fêmea não aguenta mijão, quem abandona o vaso com um halo molhado na braguilha, uma infiltração de parede no tecido.

Não tem como dizer que é outra coisa, senão que ele não balançou o dito e que aquilo é urina pura, nem precisa submeter a exame de laboratório, urina pura!, não invente de cheirar. O mais grave é que seu companheiro não trocará de calça por preguiça ou pela certeza de que ninguém reparou. A impunidade é a higiene masculina.

Ele espera a prova do crime evaporar para seguir com suas atividades. Passará o dia inteiro cheirando a mercado público, sem nenhum pingo de vergonha.

Os mais culpados ainda desenvolvem explicações e se antecipam aos comentários: “Eu me encostei na pia e molhei a calça”, “Espirrou sabonete na hora de lavar as mãos”, “Derrubei café e tentei limpar com um pano”. Os mais intrépidos abusam das fantasias e criam a teoria de que o refil da privada foi posto invertido e jorrou água na descarga. Perdem tempo para mentir, não para corrigir o desleixo.

No banheiro masculino, junto da toalha, deveria ter uma fralda geriátrica. E, por precaução, o talco Johnson.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 7 de março de 2011

DEPOIS DE MUITO AMOR

Arte de Edward Hopper


A mulher somente despreza quem ela amou demais. Não é qualquer homem que merece, não é qualquer pessoa. Pede uma longa história de convivência, tentativas e vindas, mutilações e desculpas. O desprezo surge após longo desespero. É quando o desespero cansa, quando a dúvida não reabre mais a ferida.

É possível desprezar pai e mãe, ex-esposa ou ex-marido, daquele que se esperava tanto. Não se pode sentir desprezo por um desconhecido, por um colega de trabalho, por um amigo recente. O desprezo demora toda a vida, é outra vida. É nossa incrível capacidade de transformar o ente familiar num sujeito anônimo.

Assim que se torna desprezo, é irreversível, não é uma opinião que se troca, um princípio que se aperfeiçoa. Incorpora-se ao nosso caráter.

Desprezo não recebe promoção, não decresce com o tempo. Não existe como convencer seu portador a largá-lo. Não é algo que dominamos, tampouco gera orgulho, nunca será um troféu que se põe na estante.

Desprezo é uma casa que não será novamente habitada. Uma casa em inventário. Uma casa que ocupa um espaço, mas não conta.

É a medida do que não foi feito, uma régua do deserto. A saudade mede a falta. O desprezo mede a ausência.

O desprezo não costuma acontecer na adolescência, fase em que nada realmente acaba e toda vela de aniversário ainda teima em acender. É reservado aos adultos, desconfio que deflagre a velhice; vem de um amor abandonado. Trata-se de um mergulho corajoso ao pântano de si, desaconselhável aos corações doces e puros, representa a mais aterrorizante e ameaçadora experiência.

Indica uma intimidade perdida, solitária, uma intimidade que se soltou da raiz do voo.

O desprezo é um ódio morto. É quando o ódio não é mais correspondido.

Não significa que se aceitou o passado, que se tolera o futuro; é uma desistência. Uma espécie de serenidade da indiferença. Não desencadeia retaliação, não se tem mais vontade de reclamar, não se tem mais gana para ofender. Supera a ideia de fim, é a abolição do início.

Não desejaria isso para nenhum homem. O desprezado é mais do que um fantasma. Não é que morreu, sequer nasceu; seu nascimento foi anulado, ele deixa de existir.

O desprezo é um amor além do amor, muito além do amor. Não há como voltar dele.





Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 07/03/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16632

sábado, 5 de março de 2011

PARAÍSO DE WANDO

Em Guaporé, colecionar lingerie virou mania de moradores como Fernanda Grando, que tem mais de cem conjuntos. Foto de Genaro Joner

Foi Gilberto Gil que descreveu Guaporé como refúgio ideal do amor, na canção Vamos fugir:

“Guaporé, Guaporé
Qualquer outro lugar ao sol
Outro lugar ao sul
Céu azul, céu azul
Onde haja só meu corpo nu
Junto ao seu corpo nu...”


Mas quem ficaria maluco com a cidade é Wando, célebre por receber calcinhas de suas fãs durante os shows.

Com 22 mil habitantes, distante 195 quilômetros da capital gaúcha, o município da Serra apresenta 150 fábricas de lingerie. É o maior polo de moda íntima do Estado e o segundo maior do país.

As peças femininas tomam os outdoors, mais de 40 pontos de venda e as rodas de conversa dos bares e restaurantes; é uma febre que não tem hora para terminar. Em 30 anos de atividade, a confecção já ameaça a liderança histórica da indústria joalheira.

Os homens estão seriamente assustados com a mudança dos costumes. Felizmente assustados.

– Toda noite é uma lingerie diferente da namorada – diz Marco Antonio Henz, 48 anos.

O código erótico passou a ser: “Tem lançamento, quer ver?”

– Sei de cor e antecipado o mostruário do inverno – suspira Henz.

Lojas contabilizam um aumento de 80% na saída dos produtos em janeiro e fevereiro. Juliana Fidarelli, 26 anos, desfalcou a vitrina da Elegance. Numa tarde, comprou 49 peças. Desfruta agora de um mês inteiro para fazer estreias.

– Sete dias da semana, sete modelos. Não dá para repetir – explica.

Noivas substituíram o tradicional chá de panela pelo chá de lingerie. Existe a prática de reservar lounges das principais marcas em datas festivas. Camisolas e pijamas ganham a preferência nos pedidos de amigo secreto. Estojos foram criados para sutiãs e calcinhas, a exemplo de instrumentos musicais, para que não sejam amassados em viagens.

O cabeleireiro Ampélio Zanchin, 72 anos, casado há quatro décadas com Virgínia Neli, 70 anos, festeja a nova compulsão de sua esposa.

– Melhor lingerie do que joias, estamos lucrando – avalia.

– Assim transformo o marido em eterno namorado – confessa Virgínia, que separa grande parte do salário para renovar o armário.

A professora de dança Fernanda Grando, 27 anos, é o maior exemplo do fanatismo. De manhã, não escolhe primeiro a roupa, define a lingerie para daí selecionar o resto. Roupas de baixo mandam nas de cima.

Ela possui mais de cem conjuntos. Destina duas gavetas enormes somente para os sutiãs. Uma delas é o purgatório, garantindo uma última chance a um item mais antigo.

– Tenho pena de jogar fora – afirma Fernanda.

Ao espalhar a coleção pela cama, desiste de contar. São tantos que poderia costurar um edredon com os bojos. Confia que o cuidado com a imagem aumentou também a exigência com a aparência do parceiro.

– Se o namorado vem com cueca velha, dorme na rua – avisa.

Fernanda não dispensa artimanhas para despertar a curiosidade do sexo oposto. Ao surgir no quarto com uma aquisição recente, nunca desfila ou dança.

– Mantenho a espontaneidade, leio um livro e testo se ele repara em mim ou não – revela.

Entende que se vestir é exercer a cidadania, apoiando o uso peculiar de um código de postura:

– Sutiã bege aparecendo é crime, passível de multa.

Nas residências de Guaporé, nenhum homem reclama das calcinhas no box do banheiro.

– Aqui pode! Porque revela nosso bom gosto.









Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 28, 05/03/2011
Porto Alegre, Edição N° 16630
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quinta-feira, 3 de março de 2011

DESPEDIDA DA REVISTA CRESCER


Quarenta e duas histórias em quatro anos de colaboração. É o fim de minha coluna Primeiras Intenções na Crescer. Abaixo, a última crônica (março/2011).

A partir de abril, não estarei nas páginas finais da revista. A direção alegou mudança no projeto gráfico e editorial.

Eu me despeço feliz: fui falar de minha família e ganhei toda uma família de leitores.

Agora, mande sugestões para
PPerim@edglobo.com.br


ASSOMBRADO PELA VIDA

Arte de Gerhard Richter


No bairro de minha infância, era obrigatória uma casa mal-assombrada. Com heras cobrindo os muros, portão enferrujado e som envenenado de vento e vidro partindo do quintal.

Se não havia uma candidata, a gente criava. Bastava uma residência estar abandonada, gemendo, fechada, ou para vender.

Assim que a imobiliária colocava a placa do negócio, o ponto passava a servir nossa especulação sobrenatural.

A construção tinha que atender alguns pré-requisitos. O maior deles: ser caminho da escola. Para facilitar o registro dos mínimos movimentos e gerar fofocas: vultos nos arbustos, janelas batendo e papéis voando. E também necessitava de gatos selvagens ou vira-latas raivosos em seu território, que avisariam da presença dos demônios com as pupilas mercúrio cromo. E alguém deveria ter morrido nela recentemente, por velhice ou fatalidade, para justificar a dívida com o além.

Nem sabe o que eu vi' costumava ser a senha de nossa chegada na escola. A curiosidade tomava a maior parte das conversas do recreio e provocava uma enxurrada de bilhetinhos por debaixo das mesas.

O coração acelerava só de passar perto do endereço, ou de tocar no assunto. Montávamos planos para a invasão. Durante a merenda, traçávamos rotas de entrada e de fuga usando pão, colheres e bolacha recheada. Havia uma coragem receosa, misto de excitação e dúvida.

Hoje a turma seria confundida com um bando de assaltantes, terminaria com a cabeça raspada na Fase, fichada na Polícia. Mas na época existia uma tolerância dos vizinhos; perdoavam nossa pouca idade: “ah, são apenas meninos!”. Pisávamos em território alheio com lanternas e mochilas. Invadíamos quartos e salas. Não foi uma casa que entrei sem permissão, mas várias, incontáveis. Ou pelas janelas ou pelos telhados. Com meu batimento na garganta, comum colega me dando cobertura do lado de fora.

Desse tempo, compreendi que adulto não soluciona o medo de criança, por querer terminar logo com o susto, dizer que não é nada, que é uma bobagem, que não vale sofrer à toa. Pai e mãe apenas aumentam o terror desprezando as perguntas e a cumplicidade.

As crianças pretendem curtir o medo primeiro, desenvolver o suspense. O medo não é uma ameaça, é um modo de fazer amizades.

Elas resolvem os pânicos falando deles. A terapia consiste em tão-somente partilhar medos. A gratuidade dos medos. O prazer dos medos. A delícia dos medos.

Um medo coletivo é melhor do que os medos individuais, castrados e reprimidos.

Exercitávamos a ansiedade com minúcia e fantasia. Às vezes contávamos histórias de terror à luz de velas somente para sair gritando. Às vezes alucinávamos em equipe.

Meu pavor sempre teve companhia para amadurecer.

quarta-feira, 2 de março de 2011

A FÓRMULA DE BHÁSKARA

Arte de Cínthya Verri

Carlinhos descobriu a Fórmula de Bháskara do casamento. A resposta resolveria mais do que terapia, do que dança de salão, do que compras num shopping. E não traria custo. Desejou patentear o cálculo, mas não queria lucrar com uma ideia tão pura.

Estava na cara e ninguém teve a coragem de dizer. O óbvio é para os corajosos.

A receita transformaria a convivência numa eterna lua-de-mel. Eis o achado:

Anotar na agenda os compromissos de beleza da esposa.

Traria o alívio depois de vinte anos sendo cobrado por não acertar o que havia de diferente em Consuelo. Só não errava a depilação, o que, convenhamos, não merece elogio.

Teve o estalo quando assistia Caxias e São José, semifinal do Campeonato Gaúcho.

“Quem não consegue observar que aprenda a lembrar.”

A frase surgiu em sua cabeça do nada, não poderia ter sido o locutor. Ele se reconheceu absurdamente inteligente, a ponto de criar outra teoria: quanto pior o jogo, melhor o pensamento.

Com o método em prática, seria eleito o marido do ano. Perguntaria de manhã o que ela programou durante o dia e repassaria tudo ao iPhone: manicure/pedicure/sobrancelhas/cabelos. De noite, usaria a informação privilegiada a seu favor, como se não fosse importante. Todo homem perfeito é, no fundo, uma secretária.

Na cama, tomou a mão dela e disse:

— Que unhas caprichadas, ótima a cor.
— Como você percebeu?
— Não precisa muito, é apenas reparar.

(Quando o homem se diminui é que está se sentindo o máximo.)

No jantar, acariciou a franja dela e disse:

— É uma diferença uma sobrancelha bem feita. Abre o rosto.
— Mesmo? Eu arrumei hoje, incrível que tenha notado.
— Como que não? Olho tudo em você.

(Quando o homem se engrandece é que está enganando).

As observações renderam um aumento de 30% na vida sexual e redução em 50% das implicâncias dentro do carro.

Os dois já programavam viagem para Bariloche; experimentavam, de novo, aquela atenção integral de apaixonados.

Mas Carlinhos acabou traído pela casualidade. Consuelo avisou, logo cedo, que não sobraria tempo para almoçar: “O cabeleireiro tem somente horário ao meio-dia”.

Festivo, registrou em sua plataforma implacável: corte de cabelo!

Enfrentaria o grande exame clínico do amor. Ao voltar do trabalho, encontrou sua mulher no sofá assistindo televisão.

Olhou uma, duas, três vezes, e gritou:

— Que linda!
— O quê?, ela ficou assustada.
— Maravilhosa! Dez anos mais jovem!
— O quê? , ela entrou em aflição.
— Seu cabelo, o chanel perfeito!
— Eu não cortei.

Carlinhos jurava que uma mulher nunca desmarcaria o cabeleireiro. Seria capaz de abandonar noivo no altar, de jeito nenhum deixar cabeleireiro esperando. Não contava com essa infidelidade. Suspirou. Não existiam mais papéis fixos no mundo, nem dentro de casa.



Crônica publicada no site Vida Breve