sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

DEPOIS DOS 40


Depois dos 40 anos, o pensamento feminino muda, desembaraça.

O sexo não é mais performance, exaustão, é fazer o que se gosta e do jeito que gosta. É aproveitar dez minutos com a intensidade de uma noite inteira, é reconhecer o rosto do próprio desejo no primeiro suspiro, é optar pela submissão por puro prazer, sem entrar na neurose da disputa ou do controle.

A mulher de 40 não diminui o ritmo da intimidade. Pode ler um livro com a intensidade de uma transa. Pode assistir um filme com a intensidade de uma transa. Pode conversar com a intensidade de uma transa. Ela não tem um momento para a sensualidade, a sensualidade é todo momento.

Tomar o café da manhã não é apenas um desjejum, tem a sua identidade, o seu ritual, um refinamento da história de seus sabores. Tomar o café da manhã com uma mulher de 40 anos é participar de sua memória, de suas escolhas.

Ela não precisa mais provar nada. Já sofreu separações, e tem consciência de que suporta o sofrimento. Já superou dissidências familiares, e tem consciência de que a oposição é provisória. Já recebeu fora, deu fora, entende que o amor é pontualidade e que não deve decidir pelo outro ou amar pelos dois.

A mulher de 40 anos, cansada das aparências, cometerá excessos perfeitos. É mais louca do que a loucura porque não se recrimina de véspera. É ainda mais sábia do que a sabedoria porque não guarda culpa para o dia seguinte.

A beleza se torna também um estado de espírito, um brilho nos olhos, o temperamento. A beleza é resultado da elegância das ideias, não somente do corpo e dos traços físicos.

Encontrou a suavidade dentro da serenidade. A suavidade que é segurança apaixonada, confiança curiosa.

O riso não é mais bobo, mas atento e misterioso, demonstrando a glória de estar inteira para acolher a alegria improvisada, longe da idealização, dentro das possibilidades.

Não existe roteiro a ser cumprido, mapa de intenções e requisitos.

Há a leveza de não explicar mais a vida. A leveza de perguntar para se descobrir diferente, em vez de questionar para confirmar expectativas.

Ser tia ou mãe, ser solteira ou casada não cria angústia. Os papéis sociais foram queimados com os rascunhos.

A mulher de 40 é a felicidade de não ter sido. É a felicidade daquilo que deixou para trás, daquilo que negou, daquilo que viu que era dispensável, daquilo que percebeu que não trazia esperança.

Seu charme vai decorrer mais da sensibilidade do que de suas roupas. O que ilumina sua pele é o amor a si, sua educação, sua expressividade ao falar.

A beleza está acrescida de caráter. Do destemor que enfrenta os problemas, da facilidade que sai da crise.

A beleza é vaidosa da linguagem, do bom humor. A beleza é vaidosa da inteligência, da gentileza.

Depois dos 40 anos não há depois, é tudo agora.



Publicado na Revista Isto É Gente
Março de 2014 p. 50
Ano 14 Número 706
Colunista

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A MÁQUINA RECEBE CARLOS MACHADO

O dentista e ator Carlos Machado conta que venceu a timidez e aprendeu a ser cara-de-pau para poder trabalhar na televisão.

Em entrevista ao meu programa A Máquina, ele diz que o maior mico na TV foi ser vestido com um espartilho por Renato Aragão.

A exibição aconteceu na terça (18/2) na, TV Gazeta, às 23h30.

Veja o programa completo:

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

PERDA DA VIRGINDADE

Arte de Sonia Delaunay

Eles se encontravam sozinhos pela primeira vez: adolescentes namorando na sala.

Gisele perderia sua virgindade naquela noite. Escolheu muito a quem se entregar. Foi como definir um espelho de corpo inteiro.

Passaria a madrugada no apartamento de Fabiano. Os pais longe. Os pais dele tinham ido passar o final de semana em Gramado.

Havia suavidade. Havia firmeza. Havia carinho. Havia paciência. Havia tempo para se conhecer, desistir, voltar. Havia espaço para querer e não querer. Para não fazer nada se faltasse vontade. Optou por um homem compreensivo acima de tudo, e com ombros largos para desabar quando chegasse o prazer derradeiro.

Decisão difícil depende da liberdade dos adiamentos. Ela não queria forçar, esperava a inspiração da pele. A pele diria quando seria a hora.

Perder a virgindade não era para ser de qualquer jeito. Era para ser de seu jeito. Como se contasse seu sonho a alguém no exato momento em que sonhava.

Depois do sexo, depois de se doar inteira, de descobrir como se geme junto, de ouvir seu grito e acompanhar sua respiração falhada, Gisele tomou longo banho. Não pretendia se limpar, e sim comemorar o ato com a água. Vinha se sentindo diferente, e buscava se entender. A mulher toma banho para se entender – é onde o pensamento se acalma.

Na saída, feliz e amorosa, ela pediu um favor para Fabiano.

– À vontade , disse Fabiano.

– Mesmo?, ela pretendeu confirmar.

– Mesmo!

– Posso levar o sabonete comigo?

– O quê?

– O sabonete!, ela reiterou.

– Sim. Sim. Sim.

Ela foi até a cozinha, pegou um guardanapo, e enrolou o sabonete redondo. Como se fosse uma maçã. Com cuidados de uma fruta. Colocou na bolsa e partiu.

Fabiano talvez nunca tenha compreendido esse gesto.

Mas mulher tem rituais. Rituais são lembranças de lugares especiais.

Mulher guarda toalha bordada, travesseiro de criança, pulseiras, canetas. ingressos. Coisas que simbolizam etapas de seu crescimento. Assim como viajamos a um país diferente e carregamos uma recordação de outra cultura, para fixar nossa passagem, a mulher guarda relíquias das principais fases de sua vida: da infância, dos pais, dos namoros, dos amigos, do casamento, dos filhos, da velhice.

Toda mulher mantém uma caixinha de sapatos ou uma lata de panetone ou um estojo no fundo de seu armário com sua história. É uma arqueóloga de suas descobertas. Quando bater a tristeza no futuro, ela voltará para aquele cofre afetivo para constatar que não viveu à toa.

E o sabonete estará lá. Seco, perfumado, com o gosto intacto da coragem da primeira noite.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 25/2/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17715

domingo, 23 de fevereiro de 2014

DE URUBU A POMBO-CORREIO

Arte de Giorgio De Chirico

Fofoqueiro não tem cura.

Fofoqueiro não tem conversão.

Fofoqueiro não tem saída.

Se um amigo cria uma fofoca, é perda de tempo tentar convencê-lo de que é errado, que prejudica a confiança, que estraga a convivência, que ele não desfruta do direito de sair revelando indiscriminadamente aquilo que é absolutamente confidencial.

Não desperdice sua lábia. Não gaste seu sotaque.

Ao dar um sermão ao fofoqueiro, é bem capaz dele inventar fofoca do sermão. E ainda propagar aos colegas e familiares que você cometeu uma grande injustiça e quebrou a lealdade.

Todo fofoqueiro se faz de vítima, não assume seu problema e joga a culpa no colo dos outros.

Seu tipinho é facilmente reconhecível. Usa expressões como “nunca”, “jamais”, “imagina”. Jura por Deus e pela sua mãe sem nenhum pudor, sem nenhum receio das consequências. Responde uma pergunta com nova pergunta. Costuma se mostrar surpreso e fingir desconcerto quando questionado: “Eu?”.

Aviso aos persistentes e esperançosos: o fofoqueiro não tem conserto.

É pedir segredo que o fofoqueiro abre o bico. Parece gostar de viver perigosamente. Confia apenas em sua impunidade, desprezas as evidências e pistas.

Mesmo calado, espalhará confidências de algum jeito: por indiretas, código morse, telepatia. Arrumará um jeito de contar. Sua incontinência verbal é criativa. Sofre de incompetência para manter a palavra quieta, debaixo das pedras. Pois acredita no tráfico de informações. Atua como um lobista amador, um falso conselheiro. Cria sua importância por aquilo que ficou sabendo.

Eu desisti da salvação de fofoqueiros. É uma igreja infernal.

O que faço é me aproveitar deles. Eu direciono o fofoqueiro para meus objetivos. Profissionalizo o fofoqueiro. Treino o fofoqueiro. Faço do urubu um pombo-correio.

Como não posso dissuadi-lo a abandonar sua natureza, repasso o que desejo que seja conhecido. Ofereço um alvo. Exponho algo com minha clara intenção que vire fofoca, suplicando por reserva e para que não fale para ninguém. Ele não resiste a um cochicho, a uma conversa no pé do ouvido, e logo dissemina a história.

Em vez de trabalhar de graça para a fama do fofoqueiro, o fofoqueiro passa a trabalhar para mim.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 23/02/2014 Edição N° 17713

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

ESTRELA-DO-MAR

Arte de Hannah Höch

Porto Alegre, 40°C. Patrão e patroa acompanhavam a novela das nove na sala, e só reclamavam do calor. Já estavam com aquela tosse alérgica. O ventilador fazia mais barulho do que vento. As janelas abertas apenas carregavam mosquitos. Eles não se concentravam no som das imagens por absoluta apatia. As pálpebras tremiam de cansaço. O véio aproveitou o comercial e pediu licença para sua véia.

– Vou dar um pulo na garagem e já volto.

– Tudo bem, meu véio, não demora, que é tarde.

Quarenta minutos, e nada do véio voltar.

A véia pensou duas vezes antes de levantar da cadeira. A velhice é minimizar os esforços: quando se senta, não se levanta por qualquer coisa.

Mas a preocupação tomou conta, estava virando aflição, terço, coceira de aliança.

O que será que aconteceu? Desceu a pequena escada até a garagem.

Encontrou o véio misteriosamente trancado no carro. Coisa esquisita. Será que foi se matar? Ela se lançou a abrir a porta, com a respiração ofegante.

Então, de olhos fechados, o véio levou um tremendo susto, como que pego em flagrante.

– O que está fazendo aí dentro?

– Não aguentei o calor, e vim descansar com o ar-condicionado.

O véio tinha aquele rosto culpado de cachorro que comeu o osso alheio. Tanto que se encolheu para dar a resposta.

A véia avermelhou as bochechas. Aquela mulher era muito temperamental. Geniosa. Indomável.

Mas em vez de xingá-lo, disse com toda a ternura:

– Mas por que você não me chamou?

Diante do encolhimento de ombros do marido, ela sumiu por instantes e voltou arrastando um edredon e travesseiros.

Entrou ao lado do véio, deitou na cadeira e falou:

– Pode dirigir meus sonhos. Será nossa segunda viagem de lua de mel, nosso segredo.

Passaram a madrugada sob a refrigeração do veículo. Esqueceram a previsão do tempo. Esqueceram o inferno. Esqueceram o terror da insônia. Esqueceram os pijamas empapados de suor. Esqueceram a sede. Esqueceram as lamúrias.

Esticados, cada um em sua poltrona, roncaram com surpreendente tranquilidade.

Não dormiram de conchinha, mas de estrela-do-mar. As pontas dos dedos se tocaram amorosamente ao longo da noite. Não dormiram de conchinha, mas de estrela-do-mar.

PS: Isso é uma peça de ficção para retratar o calor em Porto Alegre. Não vá fazer o mesmo, é perigoso carro ligado em garagem fechada.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 18/2/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17708

AMOR DE MACUMBA

Arte de Takashi Murakami

Quando algum amigo diz que recebeu macumba da ex, fico com ciúme. Com dor de cotovelo.

Isso que é amor grandioso. Amor de verdade. 

Sempre olho na minha esquina para ver se não tem nenhuma encomenda para mim. 

Mas nunca chega esse sedex do amor.

Macumba é sedex 10 do amor.

É muita paixão odiar alguém com tanto zelo. É muito capricho gastar seu tempo e fazer um trabalhinho para prender a pessoa ao seu coração. 

É muita disposição.

É muita energia. 

É muito querer.

É muito desejo. 

É a superação de todos os incômodos, de todos os vexames, de todos os medos.

É muito luxo ter uma amada pagando para os santos mexerem com você, pagando a parcela antecipada da eternidade.

Isso que é amor além da vida. 

Isso que é vontade de permanecer junto. 

Eu aceitaria qualquer prova de doação: amarração, vodu, letras de macarrão, pipoca. 

Nem precisa roubar minha cueca, daria a melhor da minha gaveta.

Ai que inveja. 

No lugar da galinha preta, poderia oferecer o chester que sempre recebo no final do ano. 

Está aqui parado no congelador. Sem uso. 

E as velas na minha esquina ainda ajudariam a iluminação pública.

Amor de macumba é amor para sempre.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (18/2) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A MÁQUINA RECEBE LUCIANA MELLO

Filha de Jair Rodrigues, começou a cantar aos seis anos e até agora tem seis álbuns solo.

Ela foi a entrevistada em A Máquina e conta que a mãe é tudo na sua vida. Ela ainda explica o quanto a família influencia na maneira como encara os problemas.

O programa foi ao ar na terça (4/2), às 23h30 na TV Gazeta.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

CHAVE DO CARRO

Arte de Tom Wesselmann

Ao perguntar para o homem se ele quer dirigir seu carro, a mulher se mostra apaixonada. Perdidamente interessada.

É um pedido implícito de namoro.

Ninguém está bêbado, estão se conhecendo, sóbrios das palavras e sussurros, e ela concretiza esta prova de amor.

Entrega a chave sorrindo, como se fosse um prêmio de loteria federal.

Não é uma artimanha da sedução, um teste para ver se ele dirige bem ou não, para classificar ou desclassificar o sujeito.

O pretendente talvez seja um péssimo motorista, um barbeiro, com mais de 20 pontos na carteira, nada mudará a natureza da declaração.

Ela não se preocupa com o que vai acontecer, porque dentro dela já aconteceu. Não há acidente que interrompa a escolha de seu coração.

Quando uma mulher oferece seu carro — e só a mulher —, é que ela se entregou para a história.

É quando duplica sua alma. É quando se confessa vulnerável. É quando se anuncia disposta a construir uma vida a dois.

É mais do que um “eu te amo”, é um “não tenho mais reservas com você, não tenho mais segredos, não tenho mais medo”.

Ela vem a dizer que aquilo que é dela é também dele. Ela vem a dizer que ele pode guiá-la, que pode cuidá-la, que pode levá-la para o mau caminho, tanto faz o fim, pois chegaram ao destino no momento em que se encontraram.

A chave do carro é mais importante do que a cópia da chave do apartamento.

Porque o carro não é o mundo para a mulher, como é para o homem. Não é aventura para a mulher, como é para o homem. Não é ostentação para a mulher, como é para o homem. Não é um investimento e senha bancária para a mulher, como é para homem.

Na perspectiva feminina, o carro é extensão de sua personalidade, conquista afetiva, intimidade. É seu quarto, seu guarda-roupa, seu salão de beleza móvel.

Ela não tomará a atitude intempestivamente. Foi um gesto pensado, ponderado, maduro.

Alcançará o posto como um convite psicológico para que ele assuma o ponto de vista dela.

É o equivalente a “ponha-se no meu lugar” e “olhe por mim e através de mim”.

Não tem machismo envolvido, não é fraqueza educada. Trata-se de um sinal de confiança.

É um ato de muita coragem, um mergulho consciente nas inconsequências da paixão.

Talvez conte com seguro do veículo, mas dificilmente terá seguro para cobrir o relacionamento. E ela não se importa.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 16/02/2014 Edição N° 17706

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

O IMPONDERÁVEL

Arte de Bryan Charnley

Nunca sei o que pode ocorrer por mais que tenha antecipado situações.

Já me acostumei com a visita do Imponderável em minha vida.

Ele entra sem permissão, sem licença e muda a ordem dos acontecimentos.

Tenho certeza que você também conhece. Ele não deixa nenhum lar desassistido. Não compra ingressos, não paga estacionamento. Para qualquer evento, usa carteiraço. Entra em casamento, em velório, em aniversário com a maior cara-de-pau.

Quando treinamos a realidade, não programamos a sua presença indiscutível.

É ele que manda e decide. Somos coadjuvantes de seus repentes. Você teve que lidar com sua invasão fantasmagórica no vestibular quando se via afiado e surgia o branco, no momento de atravessar uma festa para chamar uma colega para dançar e alguém se antecipava.

O Imponderável tem preferência por quem se prepara antes para um teste emocional. Sua diversão é destruir nossos roteiros e planejamentos, mostrar que não somos onipotentes, que não há como cantar vitória no primeiro tempo.

É uma criança grande e desengonçada, com humor sarcástico de um velho ranzinza. 

Ele não tem amigos. Não tem família. É solitário e ajuda para o bem ou para o mal.

É como uma versão ateísta do Espírito Santo.

Vou me separar, peço a benção aos meus amigos, memorizo o que direi, o tom, o encadeamento das explicações, sinto-me pronto e indestrutível, mas quando me encontro com a esposa, vem também o Imponderável. Ela está cheirosa, linda, suave, nada raivosa como os últimos dias, e cedo aos encantos de sua doçura, fico subitamente excitado e acabo me reconciliando de novo.

Vou pedir uma mulher em namoro, depois de dois meses de saídas e flertes. Compro um par de brincos, ensaio o discurso, escolho o restaurante, encaminho champanhe ao gelo, até que o Imponderável aparece e ela esbarra em seu ex antes de sentar e eles se abraçam de um jeito sensual e duvidoso que amargam os meus planos. Não digo coisa alguma do que sinto e não mais nos revemos.         

Vou participar de uma entrevista de emprego, é meu grande momento profissional, nasci para fazer aquilo, fui aprovado com alta nota no teste de conhecimentos gerais, agora é questão de um detalhe, só não responder nenhuma doideira e se revelar minimamente equilibrado. Mas, ao entrar na sala do RH, o Imponderável caminha ao meu lado. O entrevistador é um colega da infância, o Bola, meu alvo predileto de bullying.

O Imponderável nos devolve à humildade.

Amigo morre precocemente, divórcio é deflagrado na mais alta alegria, paz entre inimigos mortais é sacramentada do acaso: tudo tem o dedo do Imponderável. O impossível se transforma em possível, e o possível se torna um fracasso.

O que nos resta é perceber que a vida é muito curta para ter razão, mas vale é ter amor e perder a razão. Aquele que ama improvisa. 






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 11/2/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17701

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

LIGA DA JUSTIÇA

Arte de Fatturi

Os homens só confessam seus problemas aos amigos quando a casa caiu, quando o casamento desmoronou, quando o fim está sacramentado.

Nada mais pode ser feito, estão oficializando a notícia.

Os amigos são solicitados para socorrer a fossa, não como prevenção da dor; são requisitados para beber as mágoas: dividir o uísque da solidão, a cerveja do desamparo, o conhaque do ressentimento.

Muito distinto do ritmo feminino, que presta uma consultoria permanente às amigas durante os atritos do casamento.

O homem procura seu amigo para esquecer um amor rompido, a mulher procura sua amiga para salvar o amor em apuros.

Sim, por que você acha que sua mulher discute tão bem, tão senhora de si?

Ela está preparada para a DR, recapitulou o que precisava dizer e como dizer com suas amigas, levantou os pontos negativos e os positivos das exigências, assimilou o contraditório com a versão e experiência de suas confidentes.

Na refrega sentimental, ela antecipa suas respostas, não é verdade?

Ela desarma suas opiniões, não é verdade?

Não fica impressionado com o poder e a velocidade do raciocínio dela, o quanto é adulta e equilibrada, enquanto você, do outro lado, espuma raiva, infantilidade e insegurança?

É que ela teve a humildade de pedir opinião para suas colegas, com o objetivo de evitar injustiças. Formou um ibope das diferenças e das dificuldades e carrega as informações privilegiadas para dentro de sua casa.

Não é curioso que antes de uma conversa séria sua esposa ou namorada tenha saído com as melhores amigas na noite anterior?

Elas treinaram o discurso do qual seria vítima. Vírgula por vírgula. Ponto por ponto.

Sua cara-metade chega para o papo com uma oratória de Angela Merkel, uma firmeza de Oprah. É impossível contê-la.

Compreenda que uma mulher jamais toma alguma decisão sozinha. Ela é uma multidão. Ela é um conselho de leitor. Ela é uma reunião ministerial.

São três ou quatro mentalidades pensando ao mesmo tempo em sua cabeça. É como jogar xadrez com um computador. Não tem chance. O que ela fala é absolutamente lindo, honesto, real, comovente, por várias perspectivas. O que resta fazer é pedir desculpa, mesmo que desprovido de culpa.

Já fiquei abobado em várias DRs, exclamando para mim mesmo: – Como ela domina nosso relacionamento, como tem consciência de tudo!

Minha vontade era cumprimentá-la, elogiar o desempenho, assim como um time juvenil leva goleada de uma equipe profissional e ainda quer autógrafos ao final.

Hoje absorvi a lição. Nunca mais o amadorismo. Não brigo com a minha esposa sem antes consultar meus comparsas Éverton e José Klein. Formamos a Liga de Justiça. Meus improvisos são bem ensaiados.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 09/02/2014 Edição N° 17699

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A MÁQUINA RECEBE CARLOS MIRANDA

Carlos Miranda é produtor musical, já foi jurado do programa Ídolos e hoje é de Astros. Lançou e produziu nomes como Skank, Rappa e Raimundos.

Ele foi meu entrevistado em A Máquina, e conta que um dos períodos mais felizes de sua vida foi quando ficou em SP dois anos sem dinheiro para nada.

O programa foi ao ar na terça (28/2), na TV Gazeta, às 23h30.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

MARCO POLO DA LITERATURA

Arte de Victor Meirelles

Meu amigo Luiz Ruffato é o escritor brasileiro mais convidado a fazer palestras no Exterior. Um dos mais traduzidos. Ele é que conduziu a conferência de abertura da Feira de Frankfurt representando o Brasil.

Nos últimos dois anos, realizou mais de 40 viagens. Numa semana está no Japão; na seguinte, está na Índia. Não há grande capital do mundo que não tenha visitado.

Raramente encontro meu parceiro de piadas em casa. É uma loteria quando atende ao telefone. Sofro de saudade de suas largas risadas. Ele passa entrando e saindo de aeroportos, trocando o fuso de seu relógio.

Todos os amigos, sem exceção, acreditam que ele é um felizardo, que desfruta da possibilidade de conhecer culturas exóticas, de frequentar os melhores restaurantes e lugares, que escolheu uma profissão na qual pode exercer o turismo de graça. Já o confundiram com novo-rico e de rotina fácil.

Eu sei que não é real, apenas eu, talvez, entre seus confidentes.

Descobri devagar, como as verdades mais verdadeiras. Quando perguntava como tinha sido uma viagem, ele me respondia afirmativamente com a cabeça. E acabou. E não trazia fotos da Torre Eiffel, do Coliseu, do Monte Fuji, de absolutamente nada. Não carregava lembranças e enfeites para casa, como é comum. Não incrementava seu figurino – permanecia usando sua tradicional camiseta branca e calça de sarja escura.

Não mostrava coisa alguma, não despertava minha curiosidade. Seu laconismo, a princípio, me assustava. Parecia que ele era um mentiroso, que nem sequer embarcara em Guarulhos. Depois parecia que ele não queria menosprezar os demais narrando vantagens e expondo suas alegrias.

Até que ele confessou.

Ruffato viaja para economizar, diferente da grande parte da população que viaja para gastar. Guarda o pró-labore e a ajuda de custo em euros e dólares das palestras como uma poupança.

Durante a estada, finge que não precisa. Praticamente não abandona o hotel, come uma refeição por dia (a do café, que é de graça), cumpre os percursos a pé e de metrô, empreende um rigoroso regime de gastos. Pratica uma completa inexistência, poderia ser caracterizado como um mendigo de luxo.

Mas sua economia não é avareza. Não, longe disso, é o contrário.

Foi dessa forma que sustentou sua filha – criou Helena sozinho, após a morte da esposa, por erro médico.

Foi dessa forma que segurou a barra do apartamento, pagou universidade particular e opções de intercâmbio para sua menina.

Foi dessa forma que amparou seu filho mais velho que mora longe.

Foi dessa forma que mandou recursos para seus parentes em Cataguases, onde vivem a irmã e sobrinhos.

Para quem foi o primeiro a contar com curso superior em sua numerosa família pobre mineira, para quem já trabalhou como pipoqueiro, camelô e torneiro mecânico, para quem superou as expectativas sociais, não é novidade.

Para mim, continua sendo.

Ruffato sempre me impressiona. É meu ídolo, meu Marco Polo literário, meu Cristóvão Colombo da paternidade.

Com seu inglês rudimentar, com seu espanhol ginasial, enfrenta o estrangeiro para garantir a vida dos outros.

Sua renúncia é generosidade.







Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 4/2/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17694

BRANCURA

Arte de Tekkamaki

O primeiro fio de cabelo branco é seu, de mais ninguém. Não é para ficar apontando. Não é para chamar atenção. Não é para sinalizar:

- Olha, você está envelhecendo!

Seja onde for. É um ato solitário e intransferível pinçar aquela visita e refletir sobre o destino. Não deve ter testemunhas, muito menos escândalo dos outros.

O primeiro fio de cabelo branco é pessoal, não é para gerar piadas e chacotas. Respeite o portador. Respeite o momento dele. É um pânico, um medo incomensurável do futuro. Faça vista grossa. Não puxe assunto.

O primeiro fio de cabelo branco é meu: não quero nenhuma alma por perto, não é para tocá-lo, é como peça de museu protegida por vidros.

Posso oferecer toda a minha velhice, mas jamais o primeiro fio de cabelo branco.

Já tenho na barba, no peito. Agora só falta aparecer nos países baixos.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (4/2) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Andressa Xavier:


domingo, 2 de fevereiro de 2014

PORTO ALEGRE A PÉ

Arte de Fatturi

Eu voltava das festas a pé com os amigos.

Não tinha nem dinheiro para bebida, muito menos para o táxi.

Não interessava a distância. A ausência de opção resolvia a vida.

Enfrentávamos o perigo com o destemor da cumplicidade.

Ia caminhando com os amigos. Recapitulando as frustrações ou os namoros das reuniões dançantes.

Porto Alegre não é e nunca será uma cidade grande para o adolescente.

A distância se abreviava na conversa à toa, nas descobertas, na expectativa da opinião de meus confidentes.

Já caminhei de Ipanema a Petrópolis, de Cavalhada a Petrópolis. Se eu fosse um carro na juventude, ultrapassava os quinhentos mil quilômetros rodados.

Meus tênis cediam primeiro pelas solas, furavam nas pontas, marcas da herança dos paralelepípedos.

Era impressionante que não me cansava e não reclamava da lonjura. A amizade oferecia, além do fôlego extra, uma distração dos problemas.

Tomava carona nas vozes de meus amigos.

Avançava por ruelas escuras, por bairros apagados. A algazarra superava o medo do assalto. Quem estava perdido por ali é que ficava com medo da gente.

Não há sensação mais agradável do que percorrer a própria cidade ao clarão da lua, acompanhado da turma de sua confiança.

Ouvia os nossos passos nas calçadas, e os pássaros madrugando com seus piares.

A claridade chegava aos poucos, a fome pedia passagem, a felicidade era esperançosa e aguardava o futuro com cheiro de almoço pronto.

Falávamos sem parar, até entrar em nosso bairro.

Naquele momento, estranhamente nos calávamos.

Quatro quarteirões antes do portão de casa, fechávamos a matraca.

Bastava dobrar na rua Carazinho, que não trocávamos mais nenhuma mensagem.

A avenida representava o marco de nosso laconismo.

Sumiam as palavras. Como um código. Como um princípio ético.

Não é que faltava assunto, ou que acabara o filão dos segredos e dos espantos amorosos para serem repartidos.

O silêncio nos preparava para a despedida.

O silêncio, desde aquela época, diminui a angústia da separação.

O silêncio é quando a cumplicidade vira pensamento. É um respeito pela importância do que foi escutado.

É quando começamos a dormir devagar e atravessar a pé os nossos sonhos.

Já os sonhos precisam de solidão. É um trajeto isolado, por mais que tenhamos bons amigos.

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 02/02/2014 Edição N° 17692

MENDIGO DO AMOR

Arte de Manet

Até que ponto é possível amar sem ser amado?

Quando amamos platonicamente, o amor pode durar muito tempo. Pois não tem ninguém para estragar nossa idealização. Não há convivência para nos desafiar. É uma paixão estanque, feita de sonho e névoa. É uma vontade desligada da realidade. Temos a expectativa intacta, longe de contratempos. Acordamos e dormimos com o mesmo sentimento, longe de interrupção em nossa fantasia.

Mas quando amamos dentro de um casamento e quem nos acompanha não retribui o amor? Quanto tempo dura? Quanto tempo você suporta a secura, o desaforo, a grosseria? Quantos meses, se cada dia é um ano?

Nem estou falando de falta de sexo, mas a falta de beijo, de abraço, da telepatia rumorosa, do colo, de perceber seus cabelos sendo penteados pelas mãos, de ver seu rosto encarado de forma única e brilhante. Nem estou falando da falta de aventura, mas do conforto protetor, da cumplicidade, do afago que é viver com a certeza de que é admirado. Nem estou falando da falta de viagens, mas do mínimo da rotina apaixonada, ser cuidado mesmo quando está distraído. Não estou falando de arroubos e arrebatamentos, mas da vontade boa de morder seus lábios levemente quando suspira e de esperar o final de semana como um feriado.

Quanto tempo dura o amor sem retorno, sem reconhecimento?

Talvez pouco, quase nada. Quem não se sente amado não é capaz de amar. Não é problema de carência, é questão de tortura.

Extravia-se a cintilação dos olhos. Ocorre um bloqueio, uma desesperança, uma resignação violenta. É como dançar valsa sozinho, é como dançar tango sozinho. É abraçar pateticamente o invisível e não ter o outro corpo para garantir seu equilíbrio.

Você se verá um mendigo em sua própria casa, diminuído, triste, desvalorizado, esmolando ternura e atenção. Aquilo que antes parecia natural – a doação, a entrega, a alegria de falar e de se descobrir – será raro e inacessível. Todo o corredor torna-se pedágio da hostilidade. Passará a evitar os cômodos para não brigar, passará a evitar certos horários para se encontrar com sua esposa ou marido, passará a prolongar os períodos na rua, passará apenas a passar. Combaterá as discussões e gritarias anulando sua personalidade. Despovoará a sua herança, assumirá o condomínio do deslugar. Comerá de pé para evitar o silêncio insuportável entre os dois.

Quer um maior mendigo do que aquele que dorme no sofá em sua residência? Com um cobertorzinho emprestado e com a claridade das janelas violentando os segredos?

Por ausência de gentileza, perdemos romances. O que todos desejam é alguém que diga: não vou desperdiçar a chance de lhe amar. Alguém que não canse das promessas, que não sucumba ao egoísmo do pensamento, que tenha mais necessidade do que razão.

A gentileza é tão fácil. É fazer uma comida de surpresa, é convidar a um cinema de imprevisto, é pedir uma conversa séria para apenas se declarar, é comprar uma lembrancinha, é chamar para um banho junto, é oferecer massagem nos pés, é perguntar se está bem e se precisa de alguma coisa, é tentar diminuir a preocupação do outro com frases de incentivo.

Quando o amor para de um dos lados, o relógio intelectual morre. Não se vive desprovido de gentileza. A gentileza é o amor em movimento.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 26/01/2014 Edição N° 17685