quarta-feira, 19 de agosto de 2015

É BIG É HORA

Arte de Eduardo Nasi

Zoeira de adultos é ingênua perto de uma festa infantil. É mais poluição sonora do que visual. O máximo que encontrará depois da farra são alguns copos quebrados, marcas circulares na estante, cervejas nas janelas e guimbas dentro de pratos. Não trará tanto trabalho para limpar. Resolverá a baderna em um único dia.

Já uma festa de crianças… É melhor fazer uma reforma, a faxina não dará conta.

A bebedeira de gente grande produzirá talvez um banheiro sujo porque alguém passou mal. Nada que o detergente não conheça.

Os pequenos é que encarnam os verdadeiros vikings, hunos, bárbaros dos alicerces da casa. Suas distrações e brincadeiras apresentarão alto índice de danos materiais.

Além de vidraças quebradas por bolas, esculturas sem cabeça e varais transformados em cipós de floresta, o cenário destrutivo é altamente criativo. Ninguém destrói com tanta criatividade quanto às crianças. Elas são dotadas de uma curiosidade insaciável, feita de misturas explosivas. Conhecer algo é também destruir. Suas mãos formam tubos de ensaio agregando sempre um produto desconhecido.  Só desistirão de mexer depois de quebrar ou explodir.

Pai de dois filhos, travei longo contato com a horda refinada de invasores.

Dificilmente sua privada funcionará novamente, e não pense que é devido ao inofensivo papel higiênico sujo jogado ao vaso. Alguém colocará uma caneta no canal. Estará muito próximo de ver uma réplica perfeita de Veneza pelos corredores e transformar seus sapatos pretos em mal-humorados gondoleiros.

As instalações infantis não terminam por aí. Haverá refrigerante espalhado pelo chão inteiro — não existe algo mais gosmento do que refrigerante. Pisará com barulho de chiclete durante os próximos meses.

Brigadeiros estarão esmagados na entrada da cozinha. Pela aparência pastosa, terá que se aproximar para definir se não é cocô do seu cachorro.

Paredes receberão desenhos espíritas de Miró e Picasso.

As tomadas guardarão a cobertura de chantilly da torta de aniversário.

Achará ainda salgadinhos mofando debaixo das almofadas do sofá, após longa e exaustiva inspeção do que vem fedendo na sala.

Localizará estranhamente uma meia suja na geladeira, e se perguntará como ela surgiu na gaveta de verduras.

O teto ganhará camadas de pigmentos vermelhos, que não faz a menor ideia do que seja: Gelatina? Suco?

Trate de não pensar para não enlouquecer.  O grande problema da festa infantil é que a sujeira aparecerá em lugares improváveis. Levará muito tempo até solucionar todos os crimes.







Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 19/08/2015

terça-feira, 18 de agosto de 2015

O FIM DEMORA



Quantos términos para o término de um amor?

Quantos “agora acabou!” é necessário dizer para realmente acabar?

Quantas portas a bater até entregar a chave?

Quantos desaforos até calar a boca?

Quantas discussões até conversar com calma?

Quantas gavetas serão esvaziadas até arrumar a mala?

Quantas desistências existem dentro da insistência?

Quantos reavivamentos são possíveis de um fogo morto?

Quantas recaídas até cair de vez?

Porque descobrir o fim ainda não é comunicar o fim.

Porque determinar o fim ainda não é explicar o fim.

Porque sentir o fim ainda não é encaminhar o fim.

É um amigo falar que seu relacionamento não tem mais saída, que eu já sei que ele caminhará muita rua antes de enxergar a parede.

É mais um desabafo do que uma verdade.

É mais uma vontade do que uma realização.

É mais um despacho do que um despejo.

Está no começo do fim, o que não significa fim.

Está elaborando o fim, mas não selando o fim.

Está roteirizando o fim, mas não contracenando o fim.

Está preparando o fim, mas não alterando a vida.

O fim demora. O fim é semelhante a muitos reinícios. O fim é procurar o melhor jeito de contar a notícia. O fim é ouvir o contraponto. O fim é oferecer mais uma chance. O fim é cansar de tanto casar. O fim é exaurir os apelos. O fim é depor as armas e não mais impor mudanças. O fim é esgotar as chantagens e as ameaças. O fim é se perdoar pouco a pouco por quebrar as promessas. O fim é não criar mais desculpas, é não ser mais bonzinho, é não querer repassar a culpa, é assumir a responsabilidade, é não ser o certo e não julgar o errado. O fim é bloquear o coração mais do que o telefone. O fim é longo.

O fim é serenidade que vem depois da adrenalina do desespero. Não é chorar, chorar é o princípio do fim, o fim é quando as lágrimas secaram, é quando os olhos pararam de nadar, é quando não há esperança de resgate.

Encerrar uma relação imita o cartucho de qualquer impressora. O computador indica o término, mas poderá imprimir mais cem páginas: folhas falhadas e com a tinta se esvaindo lentamente.

Cem páginas rendem um livro lindo e triste de poesia, porém jamais terá páginas suficientes para fazer um novo romance.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  18/08/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18265

AMARELA, VERDE, AZUL, VERMELHA E PRETA

Arte de Eduardo Paolozzi

Pega- vareta é uma grande prova para descobrir se a sua namorada ou o seu namorado tem o costume de mentir.

Todo namoro poderia iniciar com este concurso familiar. Chama pais e irmãos para fiscalizar.

É o jogo que mais exige honestidade, concentração, cumplicidade. Um autêntico detector de trapaceiros.

O mal-intencionado logo gritará: - Tremeu!

Ou fará vento para prejudicar a arte de levantar as varetas.

Ou mexerá na mesa discretamente, para produzir um terremoto.

Vareta é uma tentação para quem gosta de enganar.

Poderia também ser psicotécnico de político.

Aliás, como que político não passa por teste psicológico antes de se candidatar?

Ouça meu comentário na manhã desta terça-feira (18/8), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Jocimar Farina e Kelly Matos:


segunda-feira, 17 de agosto de 2015

HIDRATAÇÃO PELAS PALAVRAS


Relacionamento se faz no detalhe, na pronúncia, no modo como nos comportamos longe das datas festivas e das folgas dos finais de semana. Ou se tem uma rotina apaixonada ou se é levado pela agressividade. Não identificamos o quanto perdemos inúmeras chances de delicadeza ao longo do dia. Desperdiçamos a gentileza com quem amamos.

Parece que a educação deve ser usada para os estranhos, aquele que está ao nosso lado é obrigado a aguentar grosseria, irritação, azedume, maus tratos.

Entramos no jogo de compensações: quando tristes, maltratamos; quando felizes, festejamos, e não enxergamos problema nenhum nesta alternância.

É preciso criar um mínimo civilizacional, ainda que nos dias mais trágicos, para não ferir os próximos e não destruirmos os laços com as nossas mágoas. Se seguirmos os nossos impulsos, seremos bichos. Morderemos e atacaremos com as palavras.

Ninguém desperta de bom humor (trata-se de uma lenda), o que existe é um redobrado exercício de concentração para sorrir de manhã cedo. A docilidade é uma ardilosa construção psicológica e temperamental. Maquiamos o caráter para conviver.

Generosidade, portanto, consiste em atenção lapidada, em refinada vigilância, em não ser tomado pelo impulso egoísta de que o outro tem a obrigação de nos servir e nos entender.

Só é acabar a água na geladeira que já podemos antever o temperamento de cada um na relação. É uma frase inofensiva que traduz uma gama variada de sentimentos. Por uma declaração banal e singela, já antevemos se a pessoa pretende discutir, agredir ou nos confortar.

– Você me deixou sem água? (autoritário)

– Nem água tem nesta casa! (apocalíptico)

– Esqueceu de comprar água? (acusatório)

– Esqueci de comprar água! (culpado)

– Temos que comprar água! (solidário)

– Você não presta atenção em nada! (oportunista)

– Acabou a água, vou sair para comprar! (engajado)

– Você deseja que eu morra de sede? (filial)

– Cadê a água? (curto e grosso)

– Não temos mais dinheiro para comprar água? (inseguro)

– Vamos beber água da torneira por enquanto. (conformado)

– Farei uma lista de supermercado para não esquecermos nada. (compreensivo)

Quando acabar a água, cuide também para não acabar o amor.




Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  16/08 /2015 Edição 18263

QUEDA DE BRAÇO COM A ETIQUETA

Arte de Otto Dix

Não vejo colocar o cotovelo na mesa como falta de educação. É atitude de homem, de apoiar os braços para ouvir melhor.

O cotovelo é a afirmação masculina, ele se projeta na conversa, ele se aproxima de quem está em sua frente. Azar da etiqueta.

O cotovelo é o bar que todo homem carrega em sua alma. Sem o cotovelo, ele se sente um fantoche, castrado, preso, sem ação.

Homem fala com os braços mais do que com a voz. Posso usar os talheres certos, colocar guardanapo nos joelhos, segurar o cálice pela base. Mas não me peça para tirar o cotovelo da mesa. O cotovelo é duro, o cotovelo jamais broxa.

Ouça meu comentário na manhã desta sexta-feira (14/8) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antônio Carlos Macedo e Kelly Matos:

INTERESSANTE

Arte de Eduardo Nasi

Namoravam no sofá. Ambos colegas de trabalho que resolveram se dar uma chance. Não havia nada a perder mesmo que errassem, pois um erro em comum já seria intimidade.

Mão para cá, mão para lá, beijos ensandecidos e, de repente, no calor máximo dos toques, ela trava:

- Será que estamos prontos?

Ele prosseguiu beijando e ignorando a questão.

Ela prosseguia cortando e jardinando os dedos e os avanços.

Ele resmungou que aquela pergunta tinha sentido no século XIX, não hoje.

Ela foi mais contundente:

- Vamos com calma! Sou uma mulher séria.

Austeridade e seriedade são duas palavras broxantes.

Ele, então, encolheu a respiração, esticou as calças e buscou algum assunto neutro para enganar a excitação. Perguntou o que significava o imenso quadro da sala.

- É um retrato sobre a ovulação, feito sob encomenda por um artista — meu amigo —Eduardo Nasi.

- Ovulação? Interessante…

Assim como era interessante a coleção de Pais & Filhos e Crescer debaixo da mesa, era interessante o carrinho de bebê desmontado no corredor, era interessante os bichinhos de pelúcia na estante.

A ida ao banheiro tornava-se providencial para se refazer. Quando não há sexo, haverá sempre a discussão por que não houve sexo. Necessitava se preparar para conversar sobre preliminares e formalidades.

- Ei, o toalete é na segunda porta – ela explicou.

Mas ele abriu a porta errada. Deparou-se com um quarto de criança digno de revista de decoração: berço com móbile balançando, abajur de estrelas refletindo no teto, paredes cor de rosa e armário abarrotado de roupinhas. Entretanto, não notou nenhum nenê dormindo.

- Você tem filho? Eu não sabia.

- Não tenho, é que já deixei tudo pronto antes de ficar grávida.

- Interessante…Interessante…

O homem somente emprega eufemismos, a exemplo do “interessante”, quando está em pânico.







Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 12/08/2015

VELHAS NOVIDADES



Tenho sempre a sensação de que não abandonamos a infância.

A mensagem de áudio no WhatsApp virou uma epidemia.

Nem é preciso escrever: é gravar um recado e mandar. É mais um cuspe, do jeito que for.

Não vejo nenhuma diferença do walkie-talkie que empregava quando criança para roubar frutas ou aprontar molecagens com os meus colegas de bairro. Ou do telefone sem fio feito de cordinha e latas.

Há um aspecto de solidão circense na cena. É patético enxergar um adulto andando na rua, com seu celular colado na boca como uma gaita, gravando uma frase quando poderia falar diretamente. Não é natural. É como andar com microfone a tiracolo.

E não entendo como criticamos os pais por ainda privilegiarem recados na secretária, qualificando a atitude como coisa de velho, enquanto o áudio do WhatsApp não passa de uma mensagem de voz ininterrupta.

A tecnologia muda os hábitos para não mudar nada.

Avançamos e estamos regredindo. Caminhamos rapidamente e estamos dando a milésima volta no labirinto.

Vamos assim – talvez involuntariamente – deixando de gostar das pessoas, de estar com as pessoas, de conversar com as pessoas.

Existe uma prática cada vez maior da misantropia, ou seja, da aversão ao gênero humano.

Afundamos no isolamento: nas décadas de 70 e 80, não abríamos mão de visitar os amigos, a preferência vinha pelo contato afetuoso, confidências ao vivo, olho no olho, dente brilhando no riso. Telefone só fixo, enraizado na tomada para urgências. Os bares eram nossas salas de chat.

Com a disseminação do celular nos anos 90, o telefone monopolizou a antena da raça. Não se saía do lugar por qualquer coisa, melhor ligar e falar o que se queria. Horas e horas grudado no aparelho para não precisar se encontrar.

O timbre substituiu o rosto, o abraço, o colo, o cumprimento, o beijo, como forma de manter distância dos problemas e do envolvimento emocional. Os incômodos desapareciam ao recusar as chamadas ou fingir extravio de sinal.

Hoje ocorre um desprezo até por falar ao telefone, tudo piorou. Telefone somente em último caso. Teclar também é perda de tempo. Escrever exige organização do pensamento e capricho, cuidar dos erros de português, dedicar-se para achar a melhor palavra, explicar o que se pretende dizer, armar um tratamento particular e exclusivo. Mas para que desperdiçar atenção? Pensar significa muito trabalho e esforço, e as mensagens escritas são lentas demais.

Atualmente o que se percebe é a preferência por áudios. Colecionamos áudios, mantemos uma fonoteca em nossos números, mergulhamos na sonoplastia da solidão. Todos andam com fone de ouvido para cultivar monólogos e evitar o diálogo. O próximo passo é a mímica e a telepatia.

E nem se pode alegar que as ligações são caras, pois é possível fazer de graça em diversos aplicativos.

É o medo de ouvir a resposta do outro lado, é o medo de ser invadido por emoções, é o medo do imprevisto e da irritação, é o medo de nossas hesitações, é o medo da oscilação do humor, é o medo de se atrasar, é o medo de escutar verdades, é o medo de errar e se comprometer, é o medo do contraponto, é o medo da amizade real e verdadeira, é o medo imenso e absoluto da humanidade.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  11/08/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18256

BOA AÇÃO

Arte de Emil Nolde

Desde pequeno, acreditei na ideia religiosa de fazer uma boa ação por dia, como ceder o assento para quem é mais velho no ônibus, ajudar portador de necessidades especiais atravessar a rua, carregar sacolas de senhoras.

Eu realmente me importava em não passar o dia em branco: bondade era um problema de matemática. Descontava meus pecados com as boas ações.

Pena que deixamos de realizar esta tabuada na relação. Há uma lista de pequenas e singelas ações positivas dentro do romance:

- repor as fôrmas de gelo,

- trocar o papel higiênico,

- não fingir que o sabonete já é uma lasca no box do chuveiro,

- levar o lixo acumulado para a rua,

- arrumar a cama quando for o último a sair,

- dar água para as plantas,

- desovar os potes de comida vencida da geladeira e ter a coragem de lavar.

Não receberá nenhuma medalha, nenhum elogio, nenhuma condecoração por se preocupar com os detalhes mais bobos da vida a dois. Mas já será suficiente para salvar o respeito.

Pois só morre o amor distraído.

Ouça meu comentário na manhã desta terça-feira (11/8) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antônio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

MANIA DE DISCUTIR PELO MOTIVO ERRADO



Não assumimos a real natureza do descontentamento.

Procuramos disfarçar o motivo da reclamação, o que confunde quem está ao nosso lado.

Não ensinamos o que não gostamos. Não nos mostramos óbvios, diretos e acessíveis.

É ficar magoado por uma situação e encontrar uma próxima para procurar briga.

É não dizer na hora o que dói e achar pretextos absolutamente desconexos e posteriores com o que gerou a raiva.

A escola da dissimulação é estabelecida na infância, quando não revelamos as nossas molecagens, fugimos dos castigos, transferimos a culpa para os irmãos e colegas.

Somos educados a trancar as vontades e despistar os desejos.

Camuflamos, omitimos, nos envergonhamos de estar sentindo algo e procuramos enobrecer com outras justificativas.

A maior parte das brigas é por algo que não foi contado, por isso nunca são resolvidas.

Se me bate ciúme da mulher porque ela voltou tarde de uma saída com as amigas, por exemplo, sou capaz de jamais tocar no assunto. Pelo contrário, apresento-me independente e bem resolvido e até inspiro que ela repita os encontros. Mas depois comprarei uma discussão boba pela bagunça do nosso quarto.

Assim não sou honesto com a irritação. Transferi o que me perturbava para um cenário diferente, sem nenhuma correspondência com o verdadeiro.

A esposa me entende distorcido: vê que sou extremamente chato com a arrumação da casa, e não que sou ciumento.

Há uma deslealdade ingênua em curso, involuntária e automática, que trará sérias dificuldades de comunicação.

A mulher enxerga a ansiedade do ciúme, porém as minhas palavras dizem o oposto. Como me encabulo da insegurança amorosa, não comento o que me enervou, e vou catando conflitos falsos para explodir e desabafar.

Ela me interpreta errado pois transmiti a mensagem errada.

Ao esconder a origem da minha angústia, é certo que brigaremos mais vezes.

O que explica o quanto casais estouram do nada em restaurantes, em passeios, em bares. Ninguém compreenderá o estopim da guerra. A motivação parece sempre absurda (falar de boca cheia, rir demais).

Só que o nada não é nada. O nada é um desconforto atrasado, um pequeno ressentimento que não foi desfeito no flagrante.

A gota d’água costuma vir de uma torneira diferente daquela que encheu o copo.




Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  09/08 /2015 Edição 18252

domingo, 16 de agosto de 2015

QUANDO O AMIGO DESAPARECE

Arte de  Otto Mueller

Ele que sempre ficava mais tarde no trabalho volta agora cedo, antes do sol se pôr.

Ele que costumava jantar fora agora somente almoça.

Ele que era figura tarimbada na noite, vip em bares e baladas, pode agora ser encontrado em supermercados e farmácias durante o dia.

Ele que procurava os amigos para sair agora tranca-se em casa no sábado e domingo.

Ele que vivia mostrando suas conquistas para os colegas, só tem fotos de uma única pessoa. Seu
Facebook só mostra o rosto e os gestos de uma única pessoa. Não faz outra coisa senão colecionar imagens de sua nova pessoa favorita.

Meu amigo não está mal, nunca esteve tão bem. Ele mudou e sumiu simplesmente porque é pai.

A paternidade é quando o homem aprende a ser caseiro e romântico.

Ouça meu comentário na manhã dessa sexta-feira (7/8), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

ENCONTRO MARCADO

Arte de Eduardo Nasi


Estava de viagem a trabalho, longe de Porto Alegre. Meu vizinho Ilton, do andar de baixo, me telefona:

- Tem um cheiro estranho no seu apartamento!

Empalideci, ele acendeu um simbólico fósforo em meus atos falhos. Revisei meus últimos movimentos: será que desliguei a cafeteira, girei certo o botão do fogão quando parei de cozinhar, fechei o registro do chuveiro?

- Estranho, como?

Já cogitei fumaça de possível incêndio, vazamento de gás. O vizinho é sempre nosso síndico informal – deve saber tudo de nossa vida, já nos cumprimenta com conhecimento de causa de como foi a nossa vida sexual no dia anterior ou o que andamos fazendo de noite.

- É um cheiro muito intenso, não sei definir. Parte das janelas – explicou, sem explicar nada.

- Pode ser mais exato? Já me deixou preocupado…

- Acho que é um cheiro de flores – ele se esforçou.

- O que há de ruim nisso, Ilton? – suspirei. Tenho cinco vasos com gérberas na sala. Aproveita a lufada do meu jardim.

- Mas é muito forte. Como se estivesse centenas de incensos queimando no mesmo lugar.

- É que sou um homem apaixonado, meu ambiente exala o paraíso – busquei brincar, só que ele persistia preocupado.

- É? Tomara que sejam mesmo suas plantas. Porque parecem rosas…Rosas de cemitério.
- Relaxa, não seja macabro, amanhã estou aí, não é nada urgente.

- É sim urgente.

- Por quê? Desde quando o perfume de flores é urgente?

- Desculpa, hoje é o aniversário de falecimento de minha mãe. Precisava descobrir de onde vem o perfume. Ela adorava rosas brancas. Acho que ela está querendo fazer contato comigo.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 5/08/2015

terça-feira, 4 de agosto de 2015

A MINHA PRIMEIRA CARTEIRA DE MOTORISTA



Tirei a minha primeira carta de motorista dentro de um supermercado.

Tinha cinco anos. Já não entrava mais no banquinho de bebê do carrinho, muito menos me equilibrava na grade de trás, junto com os produtos.

A mãe precisava me ocupar. Queria que não incomodasse para comprar salgadinho, bolacha recheada, sorvete e refrigerante. Ela sabia o perigo que era qualquer criança de pé e sozinha, com a possibilidade de mexer nas prateleiras com liberdade.

Lembro claramente quando, numa tardezinha de sexta-feira, ela me ordenou:

– Hoje, você leva o carrinho. Toma!

– Eu?

O mercado estava lotado, véspera de Carnaval.

Não explicou como se manobrava. Não me deu aula de direção. Não treinou balizas. Não realizei nenhum psicotécnico, exame médico e prova teórica.

Entregou o veículo com displicência, avaliando o ato como fácil e instintivo.

O “toma” me marcou definitivamente. Eu merecia um tutorial. Afinal, o que há de gente que nem consegue pilotar um guarda-chuva e vive batendo em quem está se protegendo nas marquises.

De uma hora para outra, tornei-me o responsável pelas compras da casa. Não lia e nem escrevia, e já dirigia carrinho de supermercado.

Aquilo me envaideceu, meu primeiro grande passo de adulto, e também me enervou, talvez fosse o meu primeiro grande tropeço de adulto.

Assumi o comando da barra com as duas mãos, tremendo, suando barbaridade, mal enxergava um palmo à minha frente.

Cauteloso com a função, comecei devagarinho, a 0,01 km/h, mas ela me pediu que andasse mais rápido pois não contava com a noite inteira.

Foi quando colidi com o enorme traseiro floreado de uma senhora selecionando verduras.

– Uiii!

Também foi a primeira vez que fiz uma mulher gemer na vida.

– Olhe por onde você anda, menino! – ela protestou.

Em vez de me apoiar, a mãe engrossou o coro:

– Mais atenção para não atropelar as pessoas, senão tiro o carrinho de você.

Eu não havia pedido para dirigir, mas a arte materna consistia em transformar suas imposições em nossas escolhas.

Segui por mais quatro corredores, já rezava para que aquilo terminasse logo, que a listinha encurtasse de repente, que a mãe não entendesse mais sua letra.

Na grande quina das bebidas com os itens de higiene, realizei uma curva muito fechada e não vi a pilha de galões de clorofina em promoção.

Dei no meio: garrafas voaram para todos os lados. Criei um lago de água sanitária na entrada dos caixas.

Lavei o súper e instalei um pânico de rodos, panos e vassouras entre os empacotadores.

O cheiro da água sanitária vem junto com a lembrança. Inspiro com força até umedecer os olhos, e recordo de cada detalhe desse entardecer emocionante, em que comprei minha primeira carta de motorista dentro de um supermercado – e não saiu barato para o Zaffari.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  04/08/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18247

DOIS EM UM

 Arte de Gino Severini

Eu fiz faxina em casa e me paguei R$ 120,00.

Eu lavei meu carro e me paguei R$ 40,00.

Eu preparei almoço e janta todo o mês e me paguei R$ 180,00.

Eu lavei, sequei e passei a roupa e me paguei R$ 200,00.

Eu dei banho no cachorro a cada quinze dias e me paguei R$ 60,00.

As coisas andam bem complicadas. Sou o meu próprio patrão e empregado.

Meu medo não é ser demitido, é o patrão falir.

Ouça meu comentário na manhã dessa terça-feira (4/8), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

RATOEIRA DO RELACIONAMENTO


Se você dedicar seu mundo inteiro a uma pessoa, a entrega poderá ser vista como submissão.

Você que está mergulhado no amor não percebe. Para você, é somente amor. Não representa obediência, escravidão, bajulação.

Não mede esforços para agradar sua companhia, para atendê-la, para fazê-la feliz.

É capaz de se endividar em segredo para corresponder suas expectativas. É capaz de omitir suas vontades para privilegiar os desejos dela. É capaz de não respirar alto dentro de casa para não atrapalhar.

Ela sabe que você é todo dela – eis o problema que também deveria ser a solução (afinal, ser todo de alguém é a premissa do amor).

Mas o alimento é a isca do veneno e você foi fisgado pela ratoeira do relacionamento: emparedado, encurralado, dependente, viciado, sem anticorpos, sem imunidade, sem defesa, preso em sua idealização.

Já se declarou ao extremo, eliminou qualquer incerteza de seu coração, assinou o atestado de óbito da solteirice.

Sua doação não impõe mais desafio, não exige a reconquista de outra parte.

Está soterrado pela própria generosidade. De tanto dar, banalizou seu valor. Sua existência ficou barata. É um precatório a perder de vista.

Diante da exposição absoluta dos sentimentos, não é de duvidar que ela esnobe suas ações, conte que você come nas mãos dela, menospreze suas inúmeras gentilezas e deboche de suas constantes delicadezas.

Tornou-se inofensivo e previsível. Assumiu o risco de ser idiota e ingênuo, fragilizado em suas conexões com os amigos e familiares, absolutamente constrangidos com sua mendicância afetiva.

Atravessa um dilema sem saída. Ela jamais entenderá o peso de suas decisões, pois não mostrou seu sacrifício dia a dia, quis fingir uma naturalidade dos presentes, mimou e escondeu o trabalho por detrás de cada gesto, apresentou uma facilidade que não existia. Assim como pode tentar efetuar uma reprise de suas realizações dentro do namoro, apresentar os investimentos feitos, justificar sua abnegação, só que será inútil, não há estorno da espontaneidade, ela dirá que você está jogando na cara o que ofereceu de estorno da espontaneidade, ela dirá que você está jogando na cara o que ofereceu de graça, que vem cobrando os juros de sua falsa bondade.

Esta é a parada mais dura do romance, não vejo conserto da situação.

Ou está numa relação em que os dois entregam tudo ou tudo o que entrega será sempre nada.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  02/08 /2015 Edição 18245

AMAR É MUDAR SEMPRE

Arte de Jorge Castillo

"Você está diferente?" não deveria ser uma pergunta ameaçadora na vida a dois.

Mudar é sinal de sensibilidade, é demonstração de tolerância e de humildade: o pensamento evolui, a opinião se transforma, a convivência influencia o seu comportamento.

Pior seria permanecer igual. Seguir igual é prova da mais absoluta indiferença a tudo o que se viveu dentro da relação.

Ou seja, teve filhos e não mudou nada?  Não ficou nem um pouco bobalhão com seu bebê aprendendo a falar, a caminhar, a rir dos sustos e das cócegas? 

Enfrentou alguma doença familiar e não abandonou a teimosia? Conheceu o arrependimento e não perdeu os preconceitos? Recebeu a dedicação de alguém e não se empenhou em ser mais leal?

O único jeito de não se estranhar depois de longo casamento é quando os dois mudam ao mesmo tempo. Mudar junto é amor.

Ouça comentário na manhã dessa sexta-feira (31/7), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina.


A PAREDE TEM OUVIDOS

 Arte de Eduardo Nasi

Compaixão é um sentimento que não gosto de sentir, evito sentir, me maltrata sentir.

Mas sempre vem à tona quando vejo pessoas que conversam sozinhas nas mensagens. Desenvolvem um diálogo com elas mesmas. Somos o destinatário por uma simples casualidade – elas não aguardam uma resposta. Perguntam algo e retrucam imaginando qual foi a nossa reação e continuam o papo com réplicas e tréplicas de algo que jamais respondemos.

Tenho contatos fantasmas, gente que não cansa de falar comigo não falando comigo. Não digo nada e elas vivem dizendo por mim, decifrando o meu silêncio como satisfação de voyeurismo. “Sei que adora me ver falando e falando sem parar!” E nem conheço a vivente. Surge de um inbox no Facebook. Eu me espanto que, em uma semana, já tem cinquenta blocos de texto de uma pessoa desconhecida agindo com falsa intimidade, com todos os parágrafos dirigidos para mim ora me elogiando, ora me insultando, ora agradecendo a minha mãe pelo meu nascimento, ora encomendando meu vodu. Torno-me endereço platônico de sua vida vazia e de sua falta de amigos.

Não há como acalmar dizendo qualquer coisa ou atendendo alguma das interrogações. São missivas insaciáveis. É ausentar-se um minuto e estão denunciando abandono ou reclamando que “diante da indiferença, não vão mais incomodar”. E logo incomodam com mais empenho e vontade, contrariando suas conclusões anteriores.

Na minha infância, louco era o que falava sozinho nas ruas. Gritava e cantava sem nenhuma interlocução, recitando seus pensamentos desordenados, impondo seus desatinos em voz alta pelas praças e bares. Existe uma outra loucura contemporânea, agora digital, de quem fala sozinho nas redes sociais e aplicativos. Escreve por dois solitariamente, compulsivamente, ansiosamente.

Adoeço de pena. Não sei como ajudar.

Lembro que minha mãe sempre pedia para um dos filhos lavar a louça, todos se disponibilizavam, só que ela jamais esperava dez minutos após a refeição para que um de nós cumprisse a tarefa prometida. Chegávamos na pia e estava tudo lavado e ainda lamentava: – É que demoraram!

Não respeitava o tempo de cada um. Acho que ela queria mesmo contar com o prazer de se elogiar nos usando como paredão.

Assim é que identifico a troca unilateral de mensagens: acabo sendo a parede que escuta. A minha ausência faz com que o outro se perceba mais presente.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 29/07/2015

NÃO DEIXE DE IR

Vejo o enterro como uma majestosa sessão de cinema.

Cada um que entra no velório é um derradeiro espectador de uma vida.

De uma vida que não irá se repetir.

Manteremos o respeito dos trajes negros e dos gestos comedidos para homenagear um idioma que se extingue, um jeito de falar que desaparece, um modo de amar que some do convívio.

Não há como não ser inesquecível. O cenário nos remete às salas antigas de exibição: o tapete vermelho e as cadeiras ao redor do caixão. É sentar e lembrar as principais cenas de uma longa trajetória.

Não se nasce impunemente, assim como não se deve morrer no esquecimento.

A despedida não traz apenas tristeza, mas uma confusão de sentimentos envolvida no olhar profundo. Saímos da pressa do presente, ausentamo-nos das obrigações e dos compromissos para eternizar o que o outro representou em nosso passado. O ritmo lento da recordação encharca os olhos. Não é mais o rosto que carrega a lágrima, é a lágrima que carrega o rosto.

A música composta de soluços, cumprimentos e sussurros ao fundo lembrará o piano dos filmes mudos. O batimento cardíaco é o nosso pianista.

Não há superfície que nos separe da sensibilidade das coisas. Não há pele nas palavras. Não há proteção para os ouvidos.

Ficaremos leves repetindo incessantemente os pêsames.

Apesar da dor, não podemos desperdiçar o momento, não podemos renunciar à chance de falar o que sabemos e abraçar os espectadores. É acrescentar um capítulo inédito ao romance.

Não importa quem conheceu mais ou menos o falecido, quem era mais próximo ou mais distante. O fim torna qualquer um íntimo. Todos têm o ingresso para a saudade.

Trata-se de um momento fundamental, o de montar o copião de uma biografia.

Ouvir as histórias alheias e dar-se conta de que não conhecíamos tudo.

Descobriremos um novo lado, uma nova personalidade daquele que partiu.

Talvez desvendar que um homem sério também era divertido, que uma mulher introspectiva também era apaixonada.

Filhos ganham versões diferentes dos pais, esposas têm a surpresa das palavras ditas aos amigos, maridos recebem recordações antes do namoro.

Os mistérios serão solucionados, os passatempos serão denunciados, os traumas serão desfeitos.

Os familiares emendarão, em ordem cronológica, fotograma por fotograma da infância, da adolescência, da maturidade e da velhice de seu parente findo.

As festas de aniversário de uma pessoa estarão reunidas numa só celebração.

O enterro é uma ilha de edição, onde se juntam fragmentos dos contemporâneos, relatos de interessados, causos dos colegas, com o propósito de resumir e entender o significado de uma alma.

Não deixe de se despedir de um amigo. Será a última e, ao mesmo tempo, a primeira vez que assistirá a uma vida por inteiro.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  28/07/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18240

domingo, 2 de agosto de 2015

CASUALIDADES PREVISÍVEIS

Arte de Dominique Appia

Há casualidades previsíveis, regras imutáveis da natureza. Melhor aceitar.

Para a mulher com medo de barata, o inseto surgirá quando estiver sozinha em casa.

Só faltará gás no meio da preparação da janta. Não dá para terminar a comida e nem jogar fora. Assim como passou da meia-noite e é tarde para chamar um entregador. E também não tem mais como pedir comida por telefone.

O chuveiro apenas quebrará no dia em que você não tomou banho de manhã e retornou tarde da noite.

A fila do seu lado no mercado andará mais rápido.

É só lavar o carro que chove.

Você carregará seu celular em trânsito numa tomada que não funciona.

A entrega do armário, prevista para cinco dias, atrasará um mês.

Sempre que você compra uma roupa muito desejada entrará em liquidação na semana seguinte.

Você gastará numa reforma o valor de seu imóvel.

Se a prova está fácil demais, você tem grandes chances de tirar nota baixa.

Quando estreamos um molho de chaves, a chave certa é a última a ser testada.

Ouça meu comentário na manhã dessa terça-feira (28/7), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

sábado, 1 de agosto de 2015

QUANDO NEVAR EM PORTO ALEGRE


Todos os amigos e familiares me questionam quando voltarei a sair, a aceitar convites, a me alegrar, a oferecer chance e paciência para outras mulheres.

Todos me perguntam quando desistirei de amá-la, que já passou o tempo de luto, que está na hora de encontrar alguém, que venho exagerando na cena e no drama, que é patético sofrer platonicamente na minha meia-idade.

Eles pedem uma resposta, eu dou: somente não vou mais amá-la quando nevar em Porto Alegre.
Antes, nunca. Não mudo de ideia com tempestade de granizos, furacões, tornados.

Porque somos raros como a neve na capital gaúcha.

Deixarei de amá-la só quando Porto Alegre amanhecer coberta de branco. Coberta totalmente. E que não seja a neve granular de 1879, 1910, 1994, 2000 e 2006. E que a geada seja mais longa do que os trinta minutos de 1984, que dure algumas noites e alguns dias, que amplie o nosso entendimento do silêncio e da solidão, que aumente a gramatura da saudade e do suspiro.

Eu desistirei de nosso amor quando enxergar o viaduto da Borges coberto de branco, o Parque Marinha do Brasil coberto de branco, os telhados do Menino Deus cobertos de branco.

Só quando as torres e a cúpula da Catedral Metropolitana trocarem a brancura cinzenta das pombas pela palidez do nevoeiro.

Só quando as cerejeiras e os plátanos penderem folhas de cristal e vidro em seus galhos.

Só quando a dupla Gre-Nal cancelar os jogos no Beira-Rio e na Arena pelo mau tempo.

Só quando suspenderem os passeios de pedalinho no lago da Redenção.

Só quando o Guaíba congelar suas margens. E o crepúsculo pedir emprestado vermelho para as nuvens.

Só quando as crianças escreverem palavrões de gelo nos para-brisas dos carros.

Só quando os pais emprestarem suas mantas para os bonecos de neve dos filhos.

Só quando não decifrar meio palmo em minha frente no momento de sair de casa.

Só quando uma vassoura não for suficiente para limpar a entrada das garagens.

Só quando tiver a obrigação de me segurar nos corrimões das escadas para não escorregar.

Só quando tivermos compaixão do guarda-chuva e das galochas.

Eu abandono o nosso amor quando nevar em Porto Alegre. Antes, nunca.

Só vou deixar de amá-la quando Porto Alegre estiver coberta de branco.

Quando Porto Alegre virar a minha noiva, e daí a minha dor casará para sempre com a minha cidade.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  26/07 /2015 Edição 18238

SEMANCOL

Arte de Hans Arp
 
Mais importante do que definir o nosso talento, é também descobrir o que não devemos fazer.

O que não temos mesmo o dom. O que seria patético tentar e insistir.

Antes que seja tarde. Antes de envergonhar a família e abusar da boa vontade dos amigos.

O pior sujeito é o que pensa que pode tudo. Não tomou um semancol e sifragol na infância. Guarda a impressão de que é capaz de  aprender qualquer coisa.

Não, não é verdade, só existiu um  Leonardo da Vinci.

Há coisas que você não dominará. Precisa aceitar a sua incompetência.

Há homens que nasceram para pilotar um fogão, mas serão péssimos motoristas. Há mulheres que nasceram para interpretar no palco, mas serão péssimas escritoras.

Eu, por exemplo, não tenho condições de cantar. Sou desafinado. Nem em karaokê. Muito menos me arrisco sozinho no chuveiro. Não é porque falo na rádio que desfruto do direito de soltar a voz.

Conhecer os limites é uma vantagem.

Ouça o comentário na manhã dessa sexta-feira (24/7), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


FALSAS AMEAÇAS

Arte de Eduardo Nasi

A imobilidade é um grande passo no relacionamento.

Confie mais no silêncio do que naquilo que você ouviu. Garanto que dá certo.

Estará encrencado na hipótese de realizar ao pé da letra o que escuta.

Desconfie do que vai sendo dito na raiva ou no deboche. Busque descobrir o sentimento por detrás da frase.

Na dúvida, não se mexa.

Quando sua esposa manda “Vá sem mim”, já furiosa ao experimentar a enésima roupa, não invente de atender ao apelo.

Não seja idiota de sair porta afora. Muito menos conforte com aquela sabedoria de maçaneta, apenas sente no sofá e espere.

Não é encenação, mas ela não deseja isso. Vê o delicado paradoxo: é uma verdade somente sentimental.

No instante em que terminar de se arrumar, no seu tempo infinito, no tempo que não levará em conta o horário de um compromisso, ela surgirá silenciosa e segura, como se nada tivesse acontecido.

E nada aconteceu depois que tudo foi posto para fora. E tudo continua acontecendo quando nada é declarado.

Falar elimina a confusão para a mulher. Não falar cria perigosa culpa. Mas precisa falar e sem nenhuma interferência, o que é importante saber.

A mesma reação impassível deve adotar quando ela esbravejar “vá comer uma puta”, diante de sua insistência por transar. Não siga o conselho, é fria, a fidelidade nunca será cafetina.

Ela simplesmente vem pedindo espaço, que não fique perto, por cima, pois a intimidade cansa. Não é falta de amor ou de atração, é irritação momentânea.

Não julgue como uma sentença definitiva. Não comece a fantasiar putarias, por mais que lhe cresça a vontade e queira chamar os amigos para festejar o passe livre.

Ela não aguenta ser pressionada no trabalho, na família, e agora no sexo. Relaxe, assista a tevê, leia um livro, que ela virá despretensiosamente, dona de si.

Tampouco acate se ela ordenar “vá morar com a sua mãe”. Não pense que é uma grande ideia, não prepare as malas, não sinta saudade da superproteção materna, de comida e roupa lavada.

Acreditar em sua mulher é também não acreditar sempre.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 22/07/2015

BANALIDADES ETERNAS


Você esqueceu o tamanho de sua vida? Largue o Facebook e sua linha cronológica. Apague o celular e o laptop, desligue-se da virtualidade e das imagens editadas e com filtro.

Precisa do brilho da poeira voando, da companhia dos ácaros e das traças. A alergia é prova do retorno ao passado. O espirro é o nosso túnel do tempo.

Vá até a garagem ou o quartinho ou o alto de um armário ou debaixo de sua cama, onde esconde as tralhas de seu passado físico. O passado de papel e de objetos, o passado de fotos, canetas coloridas e medalhas de latão. Tem que enfrentar o trabalho de abrir caixas fechadas, romper a fita adesiva com estilete e lamentar o elástico das pastas estourando.

Mexa nos cadernos da escola, acompanhe a mudança de sua letra, o quanto era caprichada no Ensino Fundamental e ganha contornos de euforia, rebeldia e pressa. Começa emendada e submissa, em seguida vira separada e caixa alta, sem respeitar mais nada, nem pai, nem mãe, muito menos vírgula.

Duvido que não se emocione. Soltará uma gargalhada de saudade ao reencontrar o rabisco de algum colega no forro da capa dura. Como existia valor naqueles recados de amizade eterna vencendo o nosso tédio nos dois períodos de matemática na segunda-feira de manhã! Ninguém merecia despertar fazendo cálculos. Lembrará que já foi muito amado. Lembrará as provas difíceis que enfrentou afixando fórmulas pelas paredes do quarto. Achará guardanapos de bares, figurinhas avulsas de álbuns, letras de canções em inglês traduzidas grosseiramente e sinopses de filmes. Observará o mundo em miniatura com atenção extrema, respirando devagar, buscando reconstituir o tempo de suas escolhas e o ineditismo de suas descobertas. Vários rostos dedilhados serão novamente atuais.

Concluirá, estranhamente, que nenhuma lembrança morre na data que aconteceu. Emocionado, quase chorando, não se contém de vergonha e se repreende em voz alta: – Era o que faltava, virar poeta depois de velho.

Do fundo das caixinhas de CDs e fitas cassetes, puxará um envelope perfumado com uma carta de amor. Escrita por namorada da escola, no instante em que ela rompe o namoro de dois anos.

– Por que você conservou esta tristeza?, – pergunta a si mesmo. E logo responde: – Para rir dos próprios dramas, só pode ser.

Você jurava que morreria, que se mataria, que nunca amaria de novo naquela época. E sobreviveu e recuperou o coração e amou tantas e tantas outras vezes.

É bom testemunhar as suas promessas sendo quebradas, as suas opiniões mudando, os gostos se transformando radicalmente, que nada é definitivo e tudo é eterno.

Não perceberá que está há mais de quatro horas sentado no chão e revirando coisas antigas. Não viu o tempo passar. A gente nunca vê o tempo passar. Mas é ele que nos olha e nos guarda.







Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  21/07/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18233

MANIA DE GRANDEZA DO SOFRIMENTO

Arte de James Ensor

Sempre sabemos por que estamos tristes, mas nunca expressamos o motivo de nossa alegria.

Sempre passamos adiante as causas de uma separação, mas nunca as razões do relacionamento.

Sempre temos na ponta da língua o que nos faz odiar alguém, mas nunca conseguimos definir o que nos faz amar alguém.

Somos ótimos para julgar, somos péssimos para elogiar.

Sempre encontramos um culpado pela nossa dor, jamais encontramos um culpado pela nossa felicidade.

É necessário mudar nossa tendência para sofrer. Nossa mania de grandeza do sofrimento e nosso complexo de inferioridade do amor.

Somos um Napoleão para sofrer e um zé-ninguém para amar.

Somos doutores e sábios com as nossas tristezas, e preguiçosos com o amor, não defendemos o amor, não explicamos o que sentimos.

Uma imagem não vale por mil palavras. Toda palavra só aceita em troca outra palavra. É dar a palavra e não voltar atrás.

Ouça meu comentário na manhã desta terça-feira (21/7), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antônio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

MEXENDO NAS FERIDAS


Demoro a me recuperar dos tombos. Não aguento o período de recuperação.

Sempre mexo nas cascas dos machucados. Nunca a minha pele teve a chance de se regenerar naturalmente. Passo do limite, começo retirando as bordas secas e invado o úmido da purgação.
Jamais me controlo, desde a infância.

Na escola, cutucava o pisado debaixo da classe. Ao apressar o seu fim, retomava o seu início. Não me movia pela curiosidade infantil e biológica de entender o processo, e sim para me livrar do incômodo. Óbvio que a calça do uniforme vivia manchada de sangue. Eu mesmo encontrava um jeito de me ferir e ampliar a data de validade da ferida.

Esfolar o joelho representava meses de recuperação. Transformava a expectativa convencional de uma semana em longo martírio de coceira.

Minhas pernas estão depiladas involuntariamente nas canelas. De tanto mexer nas batidas, criei cicatrizes onde não deveria constar nenhum sinal.

Acentuava a gravidade dos escorregões e encontrões do futebol.

Quem me dera se a minha impaciência estivesse reduzida à epiderme dos costumes.
Infelizmente, carreguei a mesma ânsia para dentro de namoros e de casamentos. Não percebia que as piores ofensas acabavam por aparecer no meio da briga (as que desencadeavam a discussão eram simbólicas, de menor gravidade).

Quando surgia uma insatisfação, não deixava esfriar. Não aceitava que cada um se aquietasse em sua solidão para sarar o ruído com silêncio e pensamento.

Não há como evitar acidentes e quedas na vida a dois, mas não realizava o simples curativo perante um revés: limpar a zona infeccionada das palavras, cobrir o assunto por dois dias e aguardar a melhora.

Já coçava com as unhas compridas. Já cavoucava a chaga. Já pretendia resolver na hora. Já pressionava a minha companhia a tomar uma decisão, a explicar seu posicionamento, a emitir uma sentença.

De algo muito tolo (uma piada no contexto errado, uma frase torta, um descontentamento com um gesto), convertia em tudo ou nada, naquele extremismo de exigir desculpa ou terminar a relação.
Não admitia a existência breve de uma pequena ferida. Não guardava as mãos. Não saía de perto.
Fixava-me no desentendimento a ponto de ampliá-lo em impasse.
O que é físico é também emocional.

Assim como no corpo, um ferimento na pele do orgulho, diante da insistência de insultos e acusações, pode dar origem a uma lesão crônica, que persistirá durante anos.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  12/07 /2015 Edição 18231