Arte de Eduardo Nasi
Homem que é homem liga o GPS em último caso.
Só que ninguém liga o GPS para levar alguém no médico.
Então, homem que é homem não liga o GPS nem em urgência.
Sofre da Síndrome da Soberba da Localização (SSL).
Eu tenho realmente dificuldade de usar o guia e pedir informações quando estou perdido. Minha mulher assiste ao apocalipse solitário, sem jamais entrar num posto de gasolina para confirmar um endereço.
Nem sei onde estou, mas continuo procurando uma referência externa para me reaver.
Na ausência de indicativos, aguardo um milagre, um OVNI para me abduzir, o rasgo no céu de uma estrela cadente.
Pedir ajuda é me complicar ainda mais. Não sou bom em gravar trajetos. Eu decoro as duas primeiras frases da explicação e esqueço a continuação do roteiro.
Guardo apenas: “Dobre à esquerda, depois direita….”
O resto já não escuto mais. Abstraio. Deslizo para paragens imaginárias. Desligo. Volto ao assento de trás da infância, nostálgico e sonhador, como se não fosse mais o adulto responsável.
A audição masculina é de alcance curto. Conservo apenas o início de qualquer conversa.
E quando a esposa me acompanha, juro que ela memorizou a explicação do vivente. Que nada. Ela pensou que eu estava prestando atenção e não se importou em memorizar.
Mulher chega atrasada a compromissos porque está demorando a escolher a roupa. Homem chega atrasado porque está demorando a perguntar o destino. Estes dois atrasos formam um casal moderno.
Mas tenho um amigo, Daniel, que me supera de longe.
Ele sempre confirma sua presença em minhas festas. O complicado é ele me encontrar.
Numa delas, errou o número do edifício, inverteu a numeração, não me telefonou, não mandou mensagens, e entrou no condomínio da frente do meu prédio.
Acompanhado da namorada Gabriela, subiu graciosamente no apartamento impostor.
Estava no 301 do edifício errado. Curiosamente, aquele 301 também oferecia um jantar comemorativo, o que prolongou sua confusão.
Como ele não reconheceu ninguém, deduziu que tinha amigos esquisitos e seguiu adiante pegando vinho, dançando, e esperando que eu aparecesse.
Não apareci, ninguém se aproximou para perguntar quem eles eram, e eles terminaram a noite como penetras impunes.
Poderiam nos enxergar do outro lado pela janela da frente, testemunhar a nossa algazarra, mas não duvidaram de coisa alguma.
A última do Daniel é confundir a data da minha nova festa.
Eu estava de abrigo e camiseta, quase indo dormir, estirado, fingindo que não sou noveleiro. De repente, ouço o interfone apitar freneticamente. Daniel surgiu um sábado antes do que combinamos.
O que fazer? Abri a porta e convidei o par para entrar, procurando amenizar o constrangimento. Mas sempre que existe uma televisão em alto volume haverá constrangimento.
Ele e a Gabriela, cheirosos e produzidos, com fome e sede de bagunça, cavaram um lugarzinho no sofá, teceram perguntas genéricas e depois se calaram. Aguentaram trinta minutos. Não suportaram o tédio de minha vida caseira.
Antes de sair, Daniel se aproximou da janela, permaneceu longos minutos olhando ao longe. Pode ser minha impressão, acho que ele estava com saudade do meu vizinho.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
22/10/2014