sexta-feira, 24 de outubro de 2014

QUANDO O PRESENTE TEM A FORÇA DO PASSADO


Eu recebi um presente de aniversário que ninguém entendeu o que significava: um carrinho todo queimado, sem rodas, sem portas. A carcaça de um carrinho de criança. A lataria de um carrinho de criança.

Se houvesse um ferro-velho infantil, morreria abandonado num canto.

Minha mulher, meus filhos, minha mãe olhavam com desprezo o miniveículo carbonizado.

Quem teria feito esta brincadeira de mau-gosto? Só podia ser deboche...

Logo que ganhei o carrinho, engoli o choro. Tossi o choro. Ninguém entendia mesmo o que estava acontecendo.

Era meu carrinho da infância dado pelo irmão Rodrigo.

Era um carrinho amarelo que fazíamos experiências quando pequenos. A gente queimava, jogava do alto do prédio, atropelava com nossas bicicletas, para ver se ele resistia. Para ver se ele continuava vivo. Para ver se ele conseguia superar as adversidades e o peso do tempo.

Mas sabe por que eu me emocionei?

Num gesto simbólico, num pedaço retorcido de ferro, meu irmão Rodrigo me alcançou de volta a minha infância.

E me mostrou que nossa amizade também resiste a tudo.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (24/10) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


PERDIDOS E DESINFORMADOS

Arte de Eduardo Nasi

Homem que é homem liga o GPS em último caso.

Só que ninguém liga o GPS para levar alguém no médico.

Então, homem que é homem não liga o GPS nem em urgência.

Sofre da Síndrome da Soberba da Localização (SSL).

Eu tenho realmente dificuldade de usar o guia e pedir informações quando estou perdido. Minha mulher assiste ao apocalipse solitário, sem jamais entrar num posto de gasolina para confirmar um endereço.

Nem sei onde estou, mas continuo procurando uma referência externa para me reaver.

Na ausência de indicativos, aguardo um milagre, um OVNI para me abduzir, o rasgo no céu de uma estrela cadente.

Pedir ajuda é me complicar ainda mais. Não sou bom em gravar trajetos. Eu decoro as duas primeiras frases da explicação e esqueço a continuação do roteiro.

Guardo apenas: “Dobre à esquerda, depois direita….”

O resto já não escuto mais. Abstraio. Deslizo para paragens imaginárias. Desligo. Volto ao assento de trás da infância, nostálgico e sonhador, como se não fosse mais o adulto responsável.

A audição masculina é de alcance curto. Conservo apenas o início de qualquer conversa.

E quando a esposa me acompanha, juro que ela memorizou a explicação do vivente. Que nada. Ela pensou que eu estava prestando atenção e não se importou em memorizar.

Mulher chega atrasada a compromissos porque está demorando a escolher a roupa. Homem chega atrasado porque está demorando a perguntar o destino. Estes dois atrasos formam um casal moderno.

Mas tenho um amigo, Daniel, que me supera de longe.

Ele sempre confirma sua presença em minhas festas. O complicado é ele me encontrar.

Numa delas, errou o número do edifício, inverteu a numeração, não me telefonou, não mandou mensagens, e entrou no condomínio da frente do meu prédio.

Acompanhado da namorada Gabriela, subiu graciosamente no apartamento impostor.

Estava no 301 do edifício errado. Curiosamente, aquele 301 também oferecia um jantar comemorativo, o que prolongou sua confusão.

Como ele não reconheceu ninguém, deduziu que tinha amigos esquisitos e seguiu adiante pegando vinho, dançando, e esperando que eu aparecesse.

Não apareci, ninguém se aproximou para perguntar quem eles eram, e eles terminaram a noite como penetras impunes.

Poderiam nos enxergar do outro lado pela janela da frente, testemunhar a nossa algazarra, mas não duvidaram de coisa alguma.

A última do Daniel é confundir a data da minha nova festa.

Eu estava de abrigo e camiseta, quase indo dormir, estirado, fingindo que não sou noveleiro. De repente, ouço o interfone apitar freneticamente. Daniel surgiu um sábado antes do que combinamos.

O que fazer? Abri a porta e convidei o par para entrar, procurando amenizar o constrangimento. Mas sempre que existe uma televisão em alto volume haverá constrangimento.

Ele e a Gabriela, cheirosos e produzidos, com fome e sede de bagunça, cavaram um lugarzinho no sofá, teceram perguntas genéricas e depois se calaram. Aguentaram trinta minutos. Não suportaram o tédio de minha vida caseira.

Antes de sair, Daniel se aproximou da janela, permaneceu longos minutos olhando ao longe. Pode ser minha impressão, acho que ele estava com saudade do meu vizinho.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
22/10/2014

terça-feira, 21 de outubro de 2014

TEM A BÊNÇÃO, MEU FILHO!

Arte de Rodolfo Morales

Ele pode ser um publicitário famoso, colecionar vários prêmios no currículo, enfileirar leões de Cannes na estante, conduzir uma agência, mas se não tem o reconhecimento dos pais nunca estará satisfeito. Ele pode ser um arquiteto requisitado, ser chamado de Niemeyer, ganhar convites para idealizar museus no mundo inteiro, mas se não tem o reconhecimento dos pais nunca estará satisfeito.

Em toda profissão, nunca estaremos satisfeitos sem receber o apoio paterno e materno.

É uma sina depender eternamente da atenção dos pais, mas não existe jeito de escapar.

Nenhum filho estará resolvido emocionalmente sem o carinho dos pais.

O sucesso, os troféus, a fama não são nada se não há um pai ou uma mãe para se orgulhar daquilo que a gente faz.

O que deve sofrer um bailarino que nunca teve seus pais na plateia. O que deve sofrer um artista plástico que nunca contou com seus pais numa exposição. O que deve sofrer um escritor que nunca foi folheado pelos seus pais.

Não haverá aplauso que sacie o orfanato do coração de um filho. Não haverá láurea e diploma que cale as paredes de uma casa onde os pais desprezam a vocação do filho.

É preferível ter um auditório vazio com os pais sentados na primeira fila a um auditório lotado sem o rosto daqueles que nos conceberam.

Qualquer filho que me lê concordará comigo.

Impossível amadurecer o nosso sentimento sobre o assunto, é imutável. Não é problema para ser levado para terapia, é angústia incurável. Queremos que eles sempre estejam presentes, concordando ou não. Pois os pais foram a nossa primeira ovação, nossos primeiros cumprimentos, nossa primeira torcida, formam o nosso início. Não tem como excluí-los de nosso final.

Não há maior carência do que adotar uma trajetória profissional com o desdém dos nossos cuidadores, assumir um trajeto com o despeito familiar.

Ainda que seja consagrado, o profissional será amargurado. Doloroso enfrentar o boicote e se virar sozinho.

Sem a compreensão dos pais, ele jamais vai confiar suficientemente em si, jamais será receptivo à felicidade, jamais será agradecido ao que acumulou com seu esforço. Faltará sempre uma mão antiga e conhecida no ombro da glória.

Nenhum filho se perdoará diante do desprezo dos pais. Carregará a culpa insolúvel de ter feito algo errado, de estar cometendo um crime, de não retribuir a educação que recebeu, de desrespeitar os sonhos filiais.

O que um filho deseja é o amparo do ventre bem depois do ventre, a paz que vem da confiança, a bênção na testa quando sair de casa.

Não suportará decepcionar seus pais. Não aguentará frustrá-los em silêncio. Por mais que se arme um exército invencível de amigos, não se vence a oposição do sangue.

A desfeita é realmente incompreensível: aqueles mesmos pais corujas que não deixavam de comparecer nas exibições da creche e da escola, agora incapazes de abrir os braços para um aperto simbólico; aqueles mesmos pais babões que retratavam a infância com fotos e vídeos, agora incapazes de abrir a boca para um simples elogio; aqueles mesmos pais bajuladores que enchiam o pulmão de alegria para falar o nosso nome, agora incapazes de suspirar de saudade.

É uma dor sem idade. Uma ferida sem consolo.

E como existem pais que jogam seus filhos crescidos para a indiferença, somente porque discordam da opção profissional deles. Advogados que não aceitam filhos cabeleireiros, médicos que não aceitam filhos malabaristas, engenheiros que não aceitam filhos DJs. Como se houvesse uma função maior ou uma menor, uma carteira profissional melhor do que a outra.

Pais que erram a medida da força. Ao procurar demonstrar firmeza, desandam em intolerância.

Pais que consideram que o filho desperdiçou sua vida sem ao menos entender o que ele é e o que se tornou. Pais que julgam um disparate a ausência de estabilidade, que lamentam a pouca ambição do herdeiro, que diz que ele foi preguiçoso e decidiu pelo caminho mais fácil.

Pais que abdicam de décadas ao lado do filho só para provar que têm razão, só para dizer ao final que avisaram do fracasso.

Pais que torcem para que tudo falhe e sua criança grande retorne ao lar, humilhada e constrangida, e aprenda assim a dura lição.

A frieza e o distanciamento não são lições, apenas geram preconceito e arrogância.

A única lição que funciona é o amor, e sua aceitação reverenciada da diferença, e seu colo inadiável da ternura.

Se você é pai, se você é mãe, reconheça a profissão do seu filho antes que seja tarde. Ele está ansiosamente esperando.


 



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 21/10/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17957

ASSUMIR O GOSTO É IBOPE

Arte de Mae Cubiles

Ninguém vê televisão e todo mundo vê televisão.

Ninguém vê novela e todo mundo vê novela.

Se pego um amigo acompanhando Império, ele explica:

- Nunca assisto, é que estava trocando de canal.

Estranho que a troca de canal demora todo o capítulo. Estranho que ele conhece o nome de todas as personagens.

Minha mãe nunca assiste à novela e sempre está assistindo às novelas.  Diz que é para esperar o Jornal Nacional.  Faz isso há mais de trinta anos e não assume.  Fica braba quando digo que ele não perde uma novela.

Se eu apareço no Jô Soares, as pessoas logo justificam:

- Nunca assisto, mas deu sorte.

Se eu apareço na Ana Maria Braga, amigos já se desculpam:

- Não tenho o costume de acompanhar, estava passando os olhos e fiquei te vendo. 

Incrível como todo mundo vê televisão e sempre alega que foi um acidente ou uma exceção.  Há um medo de aceitar a própria vontade, de se declarar fã de programas populares. 

É uma mania metida a besta.

Saudade da sinceridade do escritor Caio Fernando Abreu, que era um grande intelectual e afirmava descaradamente que adorava novela, não perdia uma cena e mandava carta para os roteiristas para sugerir um final feliz.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (21/10) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

DA BOCA PARA FORA, DE FORA PARA A BOCA

Arte de Giacomo Balla

Quem quebra a promessa de viver junto para sempre quebrará a promessa de ficar separado.

É uma questão de coerência.

Aquela pessoa que diz que nunca mais vai lhe procurar,  que vai sumir, que vai desaparecer, é a mesma pessoa que disse que jamais lhe abandonaria, que estaria para sempre ao seu lado.

Como ela não cumpriu a primeira promessa, é certo que não cumprirá a segunda.

Ela perdeu a longevidade da palavra. Suas palavras ora são ameaças ora são convites e tem a mesma tendência de persuasão.

As frases morrem: o que resta é o sentimento que elas escondem.

Não dá para acreditar na maldição da separação se o voto de amor eterno não foi respeitado.

Ela não conseguirá ficar longe, assim como fracassou para se manter perto.

Nem precisa sofrer por antecedência. Ela voltará.

Como a eternidade do relacionamento não vingou, a eternidade da separação seguirá idêntico caminho: logo estará diante dela de novo.

Não tem como confiar em alguém que afirma que abandonará o passado se antes ela já assegurou todo o futuro.

As casualidades são maiores do que a nossa consciência. O amor é maior do que as nossas ordens, o amor é um desmando.

O curioso é que, rompendo a jura de nunca mais se ver, ela termina regenerando o juramento de sempre ficar junto.

A vida é estranha. Não tem como consertar, que é somente piorá-la.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (17/10) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Leandro Staudt e Jocimar Farina: 

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

MÃO PELUDA

Arte de Eduardo Nasi

O homem pode ser definido pela natureza de sua punheta.

Há o que recorre a punheta nostálgica, aquela dirigida a alguém do passado, a um caso tórrido, a repetição de uma cena antológica. Chega ao extremo patético de alimentar fantasias com a ex (enquanto esteve casado, pensava em outras). Ele não inventa nenhum enredo, é fiel à memória e às sensações vividas. A excitação surge da memória, da absorção dos detalhes, das descrições de cheiro e de som. É um fetichista, busca repetir rituais e sensações experimentadas.

E há outro tipo que faz a punheta esperançosa. É o menos romântico. Joga o enredo ao futuro mais próximo. Junta pedaços do seu dia a dia e personagens reais para compor seu orgasmo particular. Seu prazer é a projeção, o que pode acontecer. O sexo vem da imaginação, do inesperado, do imprevisto, da colagem aleatória de seu cotidiano.

Não sou muito de me masturbar. Uso a mão em último, último caso. Tenho uma visão machista e simplista de que, ao me masturbar, estou perdendo de transar. Ninguém me convencerá do contrário: a punheta é o fracasso da noite.  

De qualquer modo, sou um sequelado. Vim de uma infância que não se falava abertamente sobre o assunto, permeada de ameaças bíblicas.

O mundo inteiro ficava com medo de se masturbar para que não crescesse pelos nas mãos.

A escola era um laboratório de lobisomens, de macacos de proveta.

O padre Alfredo avisava: saberemos quem está se tocando, não adianta disfarçar.

Já me enxergava amaldiçoado, um primata pulando em galhos, subindo nos telhados.

Ainda existia a revista das unhas e dos cabelos (prevenindo piolhos), para apavorar a gurizada. A professora examinava nossa higiene antes do início das aulas.

Eu escondia minhas mãos nas mangas ao máximo possível. Vá que aparecessem tufos indesejados e fosse arremessado para as caldeiras gigantescas dos demônios.

Num esforço exagerado, escrevia com o dorso deitado na superfície da classe. O lápis esticado quase como um pincel.

Mesmo em manhãs quentes, não me furtava de vir de luvas, defendendo que era um estilo, que gostaria de ser pugilista. Disposto a justificar a extravagância, imitava a dança do Rock Balboa, de um lado para o outro, como se estivesse batendo em carnes no frigorífico.

Deixei de sofrer por mim quando Anselmo entrou na escola, um guri dois anos mais velho, já com algumas repetências no currículo.

Quando ele me estendeu o braço para me cumprimentar, gelei, levei um susto. O novo colega tinha uma longa penugem cobrindo os dedos.

A turma espalhou que ele se masturbava trinta vezes por dia. Sem parar. Quando ia ao banheiro, aproveitava para aumentar a média.

Todos o olhavam com reverência e receio.

O que ninguém entendeu é que logo ele foi escolhido para ser coroinha do padre Alfredo.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
15/10/2014

COMO VOCÊ FALA

Arte de Francis Picabia

Mulher é uma ouvinte fatal.

Ela mantém uma biblioteca de sons, um arquivo de escalas musicais em seus ouvidos.

Nasceu com um detector de mentiras nos tímpanos.

Você pode dizer as palavras certas, mas ainda será pouco.

Você pode escolher os termos mais apropriados, a ordem mais harmoniosa, as frases mais cristalinas, e ainda será pouco.

Você pode decorar o discurso, mas ainda será pouco.

Não significa que terá o respeito dela. Não assegura a compreensão dela.

Ela é capaz de implicar com você.

O homem não entende que não basta falar para a mulher o que ela quer, tem que falar do jeito que ela quer.

Quantas vezes você, para superar a insensibilidade e o laconismo do macho, finalmente expressou o que ela ansiava ouvir e ela não ficou satisfeita?

Esperava a libertação, o elogio, a recompensa e aguentará uma nova e inesperada crítica da esposa:

– Não foi o que você disse, mas como disse.

Você suspira amém, e ela entende que está sendo cínico.

Você concorda com os argumentos dela, e ela entende que somente deseja fugir da briga.

Você pede desculpa, e ela entende que é da boca para fora.

Você concorda, e ela entende que está resmungando.

O “como” feminino é mais importante do que o conteúdo da fala.

O “como” é a própria fala.

Ela valoriza o sentimento da pronúncia. A pronúncia é a porta do paraíso ou a do inferno.

Você poderá se declarar com “Eu te amo”, e ela insistir em problematizar.

– Ai, que eu te amo sem entusiasmo, sem vontade, eu não quero ser amada assim.

Será obrigado a fazer um teste vocal do “eu te amo” nesse momento. Um gargarejo do “eu te amo” até convencê-la.

Quando acertar o timbre ideal, a equalização apropriada, ela, então, num gesto de absoluto desdém, vai encontrar motivo para revidar:

– Agora não adianta, não foi espontâneo.

Está enrascado. Sempre estará enrascado mesmo empregando os diálogos perfeitos.

Além de compositor, o homem precisa ser intérprete, saber cantar, assumir o microfone da confissão.

Não basta acertar a letra, é necessário transmitir a emoção adequada pela voz.

Terá que ser um Caetano Veloso da discussão de relacionamento, um Chico Buarque do corredor de casa, um Ney Matogrosso da cozinha.

Vá treinando no chuveiro.

Ser marido é uma carreira difícil e de público muito exigente e sensível.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 14/10/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17952

terça-feira, 14 de outubro de 2014

HOSANA NAS ALTURAS

Arte de Emil Nolde

- Mãe, realmente precisa ir na missa hoje? Não pode deixar para semana que vem?  Ninguém está doente, ninguém está morrendo na família, está exagerando.

- Mãe, é perigoso ir sozinha. Chama alguma amiga, por favor!

- Mãe, escolhe um lugar bem iluminado para sentar, tá?

- Mãe, não leva o celular, sabe que não é bom andar com celular na missa.

- Mãe, não empresta tua Bíblia a estranhos. Nunca se sabe quem está ao lado. Não inventa também de ser generosa e partilhar o terço. O que é teu é teu, não puxa assunto.

- Mãe, volta antes do sermão, nada de esperar a eucaristia.

- Mãe, olhe para os lados na missa. Não fica rezando de olhos fechados que é dar bobeira.

- Mãe, se aparecer alguém suspeito mexendo nos bolsos, procure a saída lateral.

- Mãe, cuidado ao abrir a bolsa para oferecer o dízimo. Já leva o dinheiro separado e contado de casa.

- Mãe, me avisa quando voltar.

O diálogo parece absurdo, Macedo, mas agora não é mais possível mais rezar sem ter medo da violência. A Igreja São Sebastião, no meu bairro Petrópolis, onde fiz a primeira comunhão, foi assaltada no último domingo, às 21h, no meio de uma missa. Ladrão hoje não respeita nem Deus.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (14/10) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina: 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

ANJO JUSTICEIRO

Arte de Vlaho Bukovac

O que mais adorava na biblioteca de minha escola eram as fichas ao final do livro.

Tinha que assinar o nome enquanto a bibliotecária colocava a data de devolução. A leitura costumava vencer em sete dias.

Até hoje, adulto e independente, levo sete dias para ler um livro, mesmo que seja meu, com medo de pagar multa na minha escola. Internalizei o hábito. Não me desvencilhei do medo de atrasar.

Admirava o capricho do canto de leitura. Todos os livros mostravam a história dos seus leitores: quem leu, o período de quem se interessou por aquela obra. Com o registro dos hóspedes colado com um envelope na contracapa, pelo lado de dentro.

Poderia descobrir aqueles colegas que partilhavam de iguais afinidades, igual paixão, igual inclinação pelos enredos de amor.

Só que me entristecia quando puxava um volume qualquer da prateleira da Imperatriz Leopoldina e ninguém ainda o havia retirado. Ninguém!

Um livro que poderia estar havia anos no acervo e jamais fora procurado, jamais fora levado para casa. A ficha vazia. O coração vazio de tinta. Os andares das linhas em branco. Como um hotel de letras imenso, falido; quartos de histórias vagos e fechados.

Como nenhum aluno se interessou? Como nenhum aluno sequer o pegou por engano?

O livro sem pai nem mãe, no orfanato das horas, imaculado, virgem, sem nenhum farelo de pão entre as páginas, sem nenhuma digital, sem nenhuma marcação de lápis.

O livro longe de uma família. Longe de um braço. Longe de um cuidado. Longe do cheiro achocolatado da térmica das mochilas.

Tão triste. Eu pegava para ler de propósito. Só para pôr um nome na fichinha e ele não morrer sozinho.

Eu me sentia um anjo justiceiro. Não queria deixar nenhum livro não lido. Nenhum livro parado, sem ter sido amado ou odiado.

Não lia o que gostava, lia para aprender a gostar.

A bibliotecária Noeli já conhecia minha mania, meu projeto de salvação.

Aparecia no intervalo do recreio e pedia sua força:

– Me ajuda a encontrar um livro que nunca foi lido?

Ela deixava sua mesa, não questionava meu hábito estranho e se levantava para catar comigo nas estantes uma capa ainda intacta, ainda inexplorada pelas turmas.

Podia ser romance, poesia, crônica, ensaio, adulto, infantil, de menino, de menina, de bicho, de biologia, de física. Não me assustava com o tema.

O que desejava era registrar meu nome na aba e acabar com a maldição de pó e abandono.

Tornei-me leitor puramente por compaixão, somente para estrear livros na biblioteca.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS),  12/10/2014 Edição N°17950

BEM QUE TENTAMOS

Arte de Victor Vasarely

Não conseguimos nos separar.

Fracassamos ao nos separar.

Somos incompetentes para a despedida.

Tem gente que não dá certo junto, a gente não dá certo separado.

A vida fica muito pior quando isolados.

Em nossa combinação, tempo é distância, distância é saudade, saudade é amor urgente.

Eu, que adoro miolo de pão, tiro o excesso para lhe imitar. Não compreendo se é imitação ou influência, percebo que, em sua ausência, você continua ao meu lado, eu é que desapareço. Vivo reproduzindo suas atitudes e gestos. Sou um mímico de seu rosto. Sou um intérprete de sua risada.

Intriga-me este mistério que não nos permite o fim da relação. Qual a fatalidade? Será maldição? Carma? Dívidas de vidas passadas? Macumba? Reza?

Por que não nos desamamos?

De onde vem essa obsessão, essa vontade louca de estar sempre colado?

Nem a diferença de idade nos aparta, nem as personalidades diferentes nos distanciam, coisa alguma, problema algum.

É como se descobrisse que somos vampiros do amor: não há morte em nossa entrega.

Já tentamos de tudo para nos separar – e não funciona. Já abusamos dos desaforos, das ofensas, das discussões, do ciúme, das brigas, dos barracos. Já falamos mal um do outro, já rifamos o passado, já criamos atritos, inventamos o inferno, metemos a família no meio, chamamos os amigos para complicar o final. E só fortalecemos ainda mais os laços.

Cá estamos, mais apaixonados do que no primeiro dia. E ninguém entende nada, muito menos nós. Geramos crises em nossos terapeutas.

Nosso amor não morre! Nosso amor não acaba!

Eu me assusto com a promessa de longevidade, talvez tenhamos que envelhecer juntos, talvez seja necessário aceitar os fatos, talvez a mala não seja nossa porta, talvez o aceno seja para os outros, talvez nosso sangue sonhe filhos.

De tanto criar hipóteses, investigar nossa convivência, explorar nossas confusões, eu acredito que não iremos nos separar por um simples motivo: fizemos algo de errado no início. Cometemos uma grande gafe. Uma falha imperdoável.

Não sabemos quem disse o primeiro eu te amo.

Não assinalamos o autor da declaração fundadora. Não anotamos o nome do corajoso.

Lembramos de tudo, menos de quem disse o primeiro eu te amo.

Recordamos de nossas viagens, dos aniversários de cada passo, dos detalhes microscópicos de nossos hábitos, menos quem falou primeiro. Quem declarou primeiro. Quem transformou o endereço em destino.

Se não sabemos quem falou o primeiro eu te amo, resta-me crer que já nascemos nos amando. E eu, muito antes, privilégio de quem é mais velho.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS),  05/10/2014 Edição N°17943

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

ESTOU CONFUSO

Arte de Jean Auguste Dominique Ingres

Há uma frase que não é um bom sinal no relacionamento:

- Estou confuso!

É pior do que dar o tempo, é pior do que sumir e não falar nada, é pior do que inventar um intercâmbio porque não aguenta o namoro.

Estar confuso não é estar pensando, não é estar em dúvida, é um atestado de incompetência diante de uma enrascada.

Quem está confuso está indeciso entre duas histórias. Entre dois amores.

Quem está confuso já traiu ou está muito perto de trair.

Quem está confuso não decidiu que direção tomar, mas acabou de se entregar, acabou de sugerir que conheceu alguém, que se envolveu com alguém.

Não se pode ficar confuso se não há uma escolha. A confusão é própria do dilema, da indefinição entre dois caminhos.

Quando sua companhia está confusa, ela só está tentando dizer, da melhor maneira possível, que você é um corno manso.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (10/10) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

O MAIOR PRÊMIO DO AMOR

Arte de Eduardo Nasi

O que é mais complicado: uma entrevista de emprego ou uma conversa de reconciliação?

Em ambas, temos que cuidar de cada palavra, conter a prepotência, esconder o ressentimento, é preciso ter esperança e fé na medida certa, e apresentar sobriedade e segurança nos gestos e nas atitudes.

O correto é responder somente o que foi perguntado, com clareza e convicção. Não é recomendado falar demais, o que pode despertar assuntos incômodos, e tampouco falar de menos, capaz de transmitir indiferença.

As duas situações são muito idênticas, paradoxalmente semelhantes. São avaliações de nosso temperamento. Um lapso pode indicar a perda da vaga ou o desmoronamento do sonho.

No recrutamento profissional, é abusar do riso que entregamos o nervosismo e caímos no terreno do deboche. Na reconquista amorosa, é uma frase equivocada e todas as brigas e desentendimentos voltam com força total.

São negociações de alto risco, mas considero a reconciliação como a mais tensa e delicada.

Porque na entrevista de emprego, seremos contratados pela primeira vez. Existe um desconhecimento otimista de nosso passado, um voto de confiança. Contamos com cartas de recomendação e um currículo resumido. O que prevalece é a vontade de trabalhar.

Já na volta afetiva estamos sendo recontratados. Não há nenhuma indicação de terceiros, nem a mínima possibilidade de mentir. O outro nos conhece e não tem como enganar. Não há modo de disfarçar nossos problemas e defeitos. Não somos flores perfumadas. O único caminho viável é o da sinceridade. Convencer nossa companhia de que, na soma de erros e acertos, acertamos mais. É uma avaliação do legado, acima dos prognósticos.

Se o motivo da separação foi infidelidade e deslealdade, não tente dividir a culpa. Assuma sozinho o peso das falhas. Se o motivo da separação é estresse e desgaste, o ideal é usar o nós no discurso e repartir a responsabilidade.

Quem busca ter vantagem na discussão acaba reabrindo as feridas e pisando em ovos. Procurar culpados não adianta nada, ainda é se omitir. O que desarma a raiva é se importar com o sofrimento de nossa companhia e valorizar a construção a dois (os fracassos e sucessos).

É o momento de humildade generosa: eu também errei, fui imaturo, desculpa por tudo o que magoei.

Há duas operações fundamentais que não podem faltar: ouvir sem interromper e falar pausadamente não fazendo brincadeiras.

Preparar-se para reatar os laços deve ser levada a sério como uma seleção de Recursos Humanos. É o equivalente a um concurso público. Preocupados em resolver logo a pendência sentimental, esquecemos nossas condições físicas e psicológicas.

Antes do acerto de contas, durma oito horas, converse com os amigos, alimente-se direito. Marque em um lugar neutro para conter a passionalidade e o extremismo e evitar os gritos e as ofensas. Vista roupas leves e confortáveis, leve a garrafinha d’água e esteja disposto a atravessar longas horas quebrando a cabeça e resolvendo cálculos metafísicos. Não dá para chegar cansado e com fome, que somente trará intolerância, imposição e impaciência. O desastre é resultado do descuido. Na grande parte das vezes, o conflito vem da exaustão emocional: a vontade de acabar o sofrimento de qualquer jeito, mesmo que seja do pior jeito.

O esforço compensa. Ser chamado de volta é o maior prêmio do amor. Maior do que a sedução.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
08/10/2014

terça-feira, 7 de outubro de 2014

AINDA CONFUNDO AMOR COM APEGO

Arte de Edward Hopper

Os amigos são minha família para meus familiares.

É meu temperamento de gringo, herdado dos pais.

Penso que o pior pode acontecer. Penso em sequestro, assalto, violência, quadrilhas, máfia.

Os pesadelos mais terríveis nascem da imaginação, não dos sonhos.

Não me perdoaria só de supor que um ente amado de casa pode ser machucado e não agi para defendê-lo com antecedência.

Para um italiano da colônia, a covardia está no pensamento, não acontece na reação aos fatos: é simplesmente não se antecipar.

Sou chato para a esposa e filhos. Mas não tem jeito. Quando um deles viaja, sempre digo que conheço alguém onde eles estão indo e alcanço o endereço e o telefone em caligrafia caprichada.

É uma regra de meu paternalismo: cuidar excessivamente daqueles que amo, a ponto de sufocar.

Tenho tendência de Google Maps.

Entendo que estou sendo prevenido, eles entendem que estou sendo paranoico.

Se a minha mulher parte para a Argentina, logo saco de minha caderneta de contatos quem eu conheço de lá.

– Olha, tenho esses amigos argentinos. Quando precisar de qualquer coisa, não deixe de procurá-los.

Entrego o papel com os endereços e um mapinha. Chego a avisar os hermanos de que ela está indo e para ficarem a postos. Converto uma situação eventual (último caso) em prioridade.

É óbvio que ela jamais vai telefonar. Não há esperança. Não há sentido na proposta.

Ela não pediu nada, sabe se virar sozinha, tem seus próprios amigos e conexões. Mas não canso de repetir o rito a cada viagem.

Ela decidiu aceitar para gerar menos trabalho. Dobra o papel para nunca mais encontrar em sua bolsa. Eu, louco de pedra, tento ver em que zíper colocou o recado para lembrá-la mais adiante. Vá que me diga que perdeu a folhinha...

Minha filha vai para o Chile, faço um rastreamento dos conterrâneos no país de Neruda e já providencio uma lista de retaguarda.

Ela se ofende com razão, transmito a impressão de que não confio nela, concedo tratamento de menor de idade, instauro um clima de suspeita que não fortalece o relacionamento.

Eu atropelo a confiança com o controle que vem do meu medo. Eu retiro a independência de qualquer um com meu protecionismo. Porque confundo ainda amor com apego. Apego é não sair de perto, amor é estar por perto.

Todo gringo tem células espalhadas pelo mundo.

Não me dou conta, mas sou o pior que pode acontecer para minha família.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 07/10/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17945

TODO PRESENTE PIORA COM A IDADE

Arte de Juan Carlos Boveri

Quando somos crianças, adoramos o suspense na hora de receber presente.

Sonhamos, aproveitamos a véspera, a fantasia somente melhora a festa.

Perguntamos com curiosidade, na expectativa de resolver a charada, de entender o que será dado.

Abrimos o pacote com surpresa. Soltamos gargalhadas, susto, gritos.

Os pais narram os nossos movimentos, descrevem a nossa emoção:

- O que será, ai meu Deus? O que é isso?

E o coração dispara.

Pode avisar a criança de presente com antecedência de um mês e ela enlouquecerá todo dia.

Já, quando adultos, o suspense somente piora o presente.

É alguém adiantar que ganharemos algo e esperamos o melhor do melhor.

E nunca é.

E nos decepcionamos.

Superfaturamos a imaginação.

Quando criança, valorizamos o gesto. Quando crescemos, valorizamos o resultado.

Quando criança, qualquer coisa serve. Quando crescemos, esperamos demais.

Esperamos um terno e recebemos um cinto.

Esperamos um perfume e recebemos um desodorante.

Esperamos um tênis e recebemos um par de meias.

Não vale a pena avisar o aniversariante que comprou algo, que é a sua cara, que vai adorar.

Não diz nada antes, apenas entrega sem falar.

Adulto não sabe brincar de ser feliz.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (07/10) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A CAMA QUE SUBIU AOS CÉUS

Arte de Eduardo Nasi

— Vamos visitar o tio Juvenal no hospital?

Todos os meus irmãos franziam a testa para a mãe, alegavam que tinham prova amanhã para escapar dessa fria.

Menos eu, que levantava o braço e gritava: — Eu, eu, eu! Não havia convite melhor, nem a praça com algodão doce me atraía mais.

Hospital significava um cheiro diferente, pessoas diferentes e imprevistos.

Juvenal não era tio, era amigo da mãe. Recebia a nomeação porque já era velho e estava morrendo.

Não conseguia enxergar sua morte, pois já o conheci morrendo: magro, ossudo, com os olhos grandes de caveira. Não podia comparar com sua fisionomia de antes. Nasceu moribundo em minha memória.

Gostava de Juvenal, mas gostava mais da falta do que fazer e falar dentro do quarto.

O silêncio constrangedor gerava brincadeiras.

Como não se comentava nada sobre seu estado atual, assumia o centro da atenção da enfermeira e do paciente.

Buscavam me distrair, convencer da alegria daquele espaço branco e luminoso, coberto de tosses e palavras cortadas.

Queria adoecer para deitar naquela cama. Queria pneumonia, tuberculose, doença de adulto.

Enquanto caminhava pelos corredores de mãos dadas com a mãe, respirava fundo para ver se não contraía algum vírus nadando no ar. Com a boca escancarada, mentalizava para as partículas invisíveis: — Vem para mim, vem para mim!

A cama tinha uma manivela que levantava o encosto. Uma cama que virava sofá, uma cama que virava torradeira de gente, uma cama que subia suas paredes sem parar.

Para uma criança com uma televisão preto e branco em casa, sem nenhuma tecnologia, aquilo representava mágica.

Para uma criança que dormia num beliche, identificava poderes sobrenaturais na cama que regulava a altura.

Ao perceber Juvenal deitado, eu perguntava se ele não desejava sentar para conversar.

Ao perceber Juvenal sentado, eu perguntava se ele não desejava deitar para descansar.

Ele agradecia o carinho, e solicitava o favor de girar a chave.

E lá ia eu rodar minha roda-gigante particular.

O colchão subia aos trancos, numa sequência sucessiva de freadas.

Cada barulho da parada produzia um susto, e meu coração se alegrava. Eu ria alto, naquela gargalhada sincera e ansiosa que vem da mais profunda atenção.

Nunca me diverti tanto. Guardo a certeza de que o hospital foi meu principal brinquedo.

Quando Juvenal morreu, meus três irmãos foram no enterro. Menos eu, que precisava estudar para prova no dia seguinte. Não suportaria estar presente no enterro de minha infância.

No fundo, não falei para ninguém, fiquei magoado com Juvenal, que subiu sozinho sua cama aos céus, sem pedir a minha ajuda.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
01/10/2014

ESTAVA CURADO ATÉ VOCÊ APARECER

Arte de Oskar Kokoschka

Tudo tão bem guardado, eu jurava que tinha esquecido, controlado o nosso passado.

Eu já sorria com os amigos, já me divertia, já trabalhava com afinco, viajava leve, flertava livre.

Eu já contava com uma outra vida.

Já não resmungava seu nome em cada ligação, já não rezava pelo seu retorno, já não esperava que o celular fosse tocar, já passava pelos nossos lugares favoritos como se fossem ruas desconhecidas do GPS.

Até que vi você em minha frente.

Até que abracei você.

Até que seu perfume voltou a se misturar à minha barba.

Até que sua boca se aproximou do meu pescoço, macia e fria, como a gola de uma camisa recém estreando.

E aquela atração que julgava desaparecida e morta ressurgiu como se fosse o nosso primeiro dia, o nosso primeiro dia com a memória do último dia.

Você me reabriu muito rápido. Quanta facilidade, quanta naturalidade. Precisou de pouco, quase nada. Eu me senti inútil, despreparado, decepcionado com a fraca resistência.

Você reabriu a caixa cardíaca que destruí e não acabou, a caixa cardíaca que enterrei e continua mandando em mim.

Você precisou só me olhar como se estivesse com fome, sem dizer nada, para que eu colocasse dois pratos na mesa.

Você só precisou ameaçar abrir o botão, sem dizer nada, para que lhe ajudasse a tirar o casaco.

O que sofri não me protegeu de você. A angústia não me protegeu de você. A raiva não me protegeu de você.

E me desesperei porque poderia sofrer tudo de novo e ainda assim não me protegeria de você.

Todo esforço foi em vão. Todo o domínio foi em vão. Toda a reabilitação foi à toa.

Tanta dor para erguer paredes, que apenas serviram para não ter saída.

Deveria saber que a dor não imagina portas, a dor não cria portas, a dor unicamente levanta paredes.

A dor me facilitou para você, estava preso em minhas palavras enquanto se aproximava.

Vejo hoje que, durante o tempo distanciado, enfrentava sua lembrança, jamais sua pele roçando a minha, jamais sua voz a um passo de meu rosto, jamais suas pernas entrelaçadas.

Não me preveni contra sua presença, e sim contra sua imagem.

Eu treinei me separar com você longe, não perto, não rente, não soluçando beijo. Este seu beijo que fica soluçado quando aumenta o desejo.

Bastou uma centelha para a esperança queimar a casa inteira. Bastou o fósforo apagado para recobrar o fogo.

Antes seguro, tranquilo, confiante, agora tremia, balbuciava, perdia o discurso, agradecia o abismo.

Meses de ressurreição desmoronados em segundos.

Você se escondeu de mim dentro de mim.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 30/9/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17938