Arte de Otto Müller
O trabalho é insaciável. Todo emprego. Não terá trégua, folga, desconto.
Desde que comecei a trabalhar, aos 15 anos, não obtive nenhuma moleza. Nenhuma compreensão.
Apesar do excelente desempenho, é faltar por atestado médico, é se atrasar por engarrafamento ou greve de transporte, que estarei enforcado.
No trabalho, corda no pescoço é colar.
Não aceitamos desculpas e justificativas, a única coisa que vale é baixar a cabeça e se puxar.
O currículo só conta para contratação, depois o passado é abolido. A desmemória é valorizada. Render o máximo possível sempre, até quebrar. Se quebrar, não era tão bom assim.
E todos quebram. E todos cansam. E todos pedem um colo e um corrimão das escadas.
Não receberá intervalo para se restabelecer, período para se recuperar. É quebrar e suportar a troca imediata.
Ter feito milagres antes não é recomendação. Somos amplamente descartáveis.
Carreiras são jogadas fora num piscar de olhos, trajetórias consolidadas são dissolvidas num rearranjo de forças.
Pode ser um super-herói, um mago, um santo, um Hércules, um samurai, e não encontrará imunidade.
Demoramos um tempo imenso para adquirir credibilidade e facilmente extraviamos a confiança.
O trabalho é implacável. Não queira ser reconhecido, o reconhecimento dura 24 horas. A prática é se desconhecer ininterruptamente e recomeçar.
Você poderá ser o melhor vendedor de uma loja por seis meses consecutivos, mas é arcar com um dia ruim, somente um dia ruim, e será cobrado. Você pode ser o melhor corretor de imóveis, acumular vendas irreais, mas é enfrentar uma semana de deserto, que será criticado. Você poderá ser o melhor negociador agropecuário, mas é assistir a um mês de vacas magras, que perderá seu chão.
O trabalho é voraz, o que explica o quanto somos substituíveis.
Saudade não existe no mundo corporativo. Saudade é um sentimento proibido. Saudade é um luxo.
O trabalho não respeita ausência. Ausência é vaga. Ausência é lugar a ser preenchido, é alegria dos outros.
Quem já saiu de um emprego e jurou que nada mais funcionaria e se frustrou porque tudo continuou igual? Quem já largou um emprego de décadas, onde construiu a maior parte de suas amizades, organizou surpresas e amigo-secreto, e acreditou que ganharia um abaixo-assinado dos colegas para sua volta e não obteve um e-mail sequer de solidariedade? Quem já foi o primeiro a entrar e o último a sair no negócio e sua disciplina não rendeu ponto extra e bonificação na crise?
O trabalho é um alfaiate ao contrário. Um alfaiate ao avesso.
Não é a roupa que deve ser ajustada ao nosso corpo, é o corpo que deve ser ajustado para a roupa.
Não é o caso de cortar o tecido ou fazer bainha, nós é que temos que cortar mãos e pés e emagrecer e nos adaptarmos de qualquer jeito.
Não existe justiça no trabalho, talvez nem mais na família.
Nossa esperança agora é não ser demitido dentro de casa.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 25/3/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 17743