domingo, 31 de janeiro de 2016

ROUBAVA A PRÓPRIA CASA



Na infância, não sei bem o motivo, mas não tinha direito a cópia da chave de casa. Vinha do colégio desfalcado de medos.

Só os adultos recebiam a honra do molho com chaveiro. Era outro tempo: menos assalto, menos violência, sem cercas eletrônicas, mais crianças brincando na rua. A mãe ou o pai ou um dos três irmãos sempre estava na residência para abrir a porta. Não me preocupava com segurança.

Mas enfrentava momentos de azar quando não havia ninguém, tarde de passeio no supermercado e de reivindicação das preferências de cada um no rancho. Ansioso e hiperativo, não esperava obediente no banco de madeira. Fui um ladrão do próprio lar. O meu tipo físico ajudava: magrinho, ágil, de pernas longas.

Conhecia quais as janelas que poderiam estar destrancadas e forçava as venezianas, experiente dos pontos fracos e os hábitos dos moradores. Não me encabulava de saltar o portão do pátio. Escalava as paredes para me esgueirar em uma fresta e pular para dentro da sala. Com arame de um cabide quebrado, puxava a chave reserva do gancho da parede. A minha maior façanha foi um dia em que subi o telhado, apoiando-me no muro, e desci pelo alçapão do banheiro. Eu me sentia um herói da ilegalidade. Festeja as minhas transgressões.

Dessa experiência, desenvolvi o meu olhar de fora, estrangeiro sobre a rotina. Enxergava a minha casa como se não fosse minha, para aprender a entrar sem a chave. A brincadeira me preparou a manter um distanciamento dos laços de sangue, com facilidade para inventar e me transformar em personagem. Admirava observar os pais e irmãos pelas vidraças da rua, com o talento de um fantasma. A minha alegria era não existir, era me ausentar por completo, era ser um anônimo observando aquelas pessoas pela primeira vez.

Acabei sendo o único que não seguiu Direito. Numa família de defensores, promotores e juízes, escolhi ser um marginal da palavra. O escritor é aquele que nunca se vê inteiramente adaptado e sempre assalta a intimidade e o passado dos próximos. Tenho pena de meus irmãos, até hoje roubo as memórias deles e jamais devolvo. Nunca teve graça apertar a campainha e avisar da minha chegada.

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p. 28
Porto Alegre (RS), 31/01/2016
Edição N°18433

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

SIMPLES, CHIQUE E METIDA



Pessoa simples diz que está com dor de cabeça. Pessoa chique diz que está com enxaqueca. Pessoa metida diz que está com cefaleia.

Pessoa simples diz que está cansada. Pessoa chique diz que está exausta. Pessoa metida diz que está fatigada.

Pessoa simples diz que está podre de sono. Pessoa chique diz que está morta de sono. Pessoa metida diz que está encantada de sono.

Pessoa simples diz que está com dor de barriga. Pessoa chique diz que está com gases. Pessoa metida diz que está com cólica.

Pessoa simples transa. Pessoa chique diz que faz amor. Pessoa metida fornica.

Pessoa simples broxa. Pessoa chique falha. Pessoa metida experimenta disfunção erétil.

Pessoa simples tem crédito. Pessoa chique tem dinheiro. Pessoa metida tem investimentos.

Pessoa simples almoça. Pessoa chique faz refeição. Pessoa metida degusta.

Pessoa simples come mocotó. Pessoa chique come dobradinha. Pessoa metida come cassoulet.

Pessoa simples descansa. Pessoa chique mergulha em ócio criativo. Pessoa metida procrastina.

Pessoa simples elogia o sol. Pessoa chique elogia o céu de brigadeiro. Pessoa metida elogia a velocidade do vento.

Pessoa simples explode. Pessoa chique surta. Pessoa metida toma banho de loja.

Pessoa simples fica louca. Pessoa chique fica estressada. Pessoa afetada fica sobrecarregada.

Pessoa simples é barraqueira. Pessoa chique tem atitude. Pessoa metida tem personalidade forte.

Pessoa simples procura cartomante. Pessoa chique procura terapeuta. Pessoa metida recebe os dois em casa.

Pessoa simples trabalha. Pessoa chique atende compromissos. Pessoa metida vai verificar a agenda.

Pessoa simples chama os amigos. Pessoa chique organiza evento. Pessoa metida realiza open house.

Pessoa simples termina a relação. Pessoa chique pede um tempo. Pessoa metida viaja para a Tailândia.

Pessoa simples enche a cara. Pessoa chique bebe socialmente. Pessoa metida não lembra de nada.

Pessoa simples dá um presente. Pessoa chique dá uma lembrança. Pessoa metida dá um agrado.

Pessoa simples pede desculpa porque peidou. Pessoa chique comenta que está com flatulência. Pessoa metida avisa que não foi ela.

Pessoa simples esquece o encontro. Pessoa chique desmarca o encontro. Pessoa metida coloca a culpa na secretária.

Pessoa simples relaxa com uma chuveirada. Pessoa chique relaxa com uma ducha. Pessoa metida relaxa com imersão no ofurô.

Pessoa simples migra. Pessoa chique viaja. Pessoa metida realiza turnê.

Pessoa simples usa Bom Ar. Pessoa chique usa incenso. Pessoa metida usa aromatizante.

Pessoa simples assiste novela. Pessoa chique assiste séries. Pessoa metida assiste quedas da bolsa de valores.

Pessoa simples abre a porta com chave. Pessoa chique abre a porta com senha. Pessoa metida abre a porta com impressão digital.

Pessoa simples é demitida. Pessoa chique é remanejada. Pessoa metida passa por reposicionamento de carreira.

Pessoa simples anuncia que está feliz. Pessoa chique confessa que está realizada. Pessoa metida jamais entrega a sua alegria.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 26/01/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°18424

domingo, 24 de janeiro de 2016

QUANDO A ALEGRIA CHORA



Faz tempo que não choro de alegria.

Aquele choro que é melhor do que uma risada, que é uma gargalhada com lágrimas, que mistura o passado com o presente.

Não o choro da tristeza, não o choro envergonhado, não o choro sozinho trancado no quarto, não o choro disfarçado do chuveiro, não o choro de um filme ou de um livro, não o choro induzido por uma cena ou uma frase, não o choro da saudade ou da promessa, não o choro emprestado, não o choro agudo e vertical do luto, não o choro do sofrimento da separação ou da doença - estes choros são comuns.

Mas o choro da surpresa, da gratidão, do reconhecimento. O choro que não escondemos o rosto com as mãos. O choro em que os braços ficam descansados, só o peito geme. O choro em que a água não escorre pelas faces, e sim jorra das pálpebras - a lágrima começa a voar. O choro em que inchamos as bochechas tal criança que roubou brigadeiro antes do parabéns e colocou inteiro na boca.

O choro em que somos elogiados. O choro em que somos vingados de ternura. O choro em que somos finalmente vistos e destacados. O choro acompanhado, público, com direito a abraço e desconcerto da companhia, que não saberá o que falar diante da comoção.

Faz tempo que não choro assim: com soluços inacreditáveis e os olhos avermelhados de crepúsculo.

Choro da Nona Sinfonia de Beethoven, da cegueira enxergando.

Choro absurdo de felicidade, quando alguém arma uma homenagem imprevisível, quando recebe uma gentileza após suportar um longo tempo de indiferença, quando ganha um presente que não acreditava, quando vem uma notícia que muda a sua vida para o bem, quando diz sim para o casamento, quando sela as pazes com um amigo brigado, quando seu filho passa no vestibular ou lança o canudo para cima, quando abre uma carta e reconhece a letra, quando supera um desafio difícil, quando escuta uma declaração que esperava ardentemente em segredo.

Como desejava chorar de alegria outra vez, quando descubro que eu me amo e vejo também que sou amado.

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p. 28
Porto Alegre (RS), 24/1/2016 Edição N°18426

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

APAIXONADO



Se estou apaixonado, eu aparo a barba, ajeito o cabelo, dobro as borrifadas do perfume, visto roupa nova, engraxo os sapatos, escolho a melhor cueca, reviso as meias para não usar nenhuma com furo, escovo os dentes seis vezes ao dia, volto à academia, largo o terapeuta.

Se estou apaixonado, não basta me arrumar, eu tenho que deixar a casa prendada. Pago faxineira, retiro as tralhas dos fundos, conserto a maçaneta frouxa há um ano, troco o chuveiro frio, compro incenso e aromatizador, seleciono velas com cheiro, gasto em ridículos sabonetes coloridos, descarto toalhas velhas e esfarrapadas, seleciono novos lençóis e roupa de cama, passo na feira para escolher as melhores frutas, forro a geladeira de cerveja.

Limparei ainda o carro coberto da poeira da estrada, esvaziarei o lixo do chão, aplicarei cera na carcaça para renovar o brilho.

Se estou apaixonado, não basta me arrumar e arrumar a casa e arrumar o carro, eu me preocupo com o interfone do prédio que não funciona direito, com as luzes apagadas do corredor, com a porta emperrada da saída da garagem. Peço providência pessoalmente ao zelador e por escrito ao condomínio. Posso virar síndico somente para dar um jeito logo e impressionar quem desejo. Eu me antecipo a contratempos e adversidades. Não pretendo que nada atrapalhe o que estou sentindo. Serei jardineiro, mecânico, pedreiro, todas as profissões de muque. Buscarei também sofisticação em tutoriais do YouTube: aprenderei receita de risoto siciliano, decorarei passos de forró, assistirei a degustações de vinhos.

Se estou apaixonado mesmo, não basta me arrumar e arrumar a casa e arrumar o carro e arrumar o edifício onde moro, eu começo a escrever ao Dmae para corrigir vazamento na rua, telefono para a Secretaria de Obras para melhorar a iluminação da praça, peço que cortem a grama dos canteiros em meu bairro, incomodo para que seja pintado o meio-fio apagado. Eu me transformo em vereador voluntário, em prefeito de graça. Não me importo em suar, trabalhar, penar, cansar. A vadiagem acabou. Quero deixar tudo bonito para o meu amor passar.

Se estou apaixonado de verdade, sou capaz de fazer em uma semana tudo o que adiei a vida inteira.

Deus já deveria estar apaixonado pela mulher quando criou o mundo em sete dias.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 19/01/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°18419

domingo, 17 de janeiro de 2016

DIFERENÇA ENTRE APOIAR E APROVAR NO CASAMENTO


No casamento, um dos grandes equívocos é aguardar aprovação enquanto o correto é esperar o apoio. 

Aprovação é paternal ou maternal, não pode ser ritual de casados, porque cria a dependência e a submissão. Alguém se anulará pela carência. Alguém se arrependerá de sua iniciativa e de suas ideias. Alguém agirá pela ansiedade do aplauso. Alguém será permanentemente avaliado. Alguém deixará de viver as suas opiniões em nome do aval de um dos lados.

Não é agradável sofrer com a oposição, é desgastante, às vezes cansa e traz o divórcio, porém é desesperador adotar o que não se acredita só para não brigar.

Mulher e marido devem apoiar, jamais aprovar. Apoiar é respeitar a diferença. Apoiar é reconhecer o valor da posição contrária. Apoiar não é submissão, é estar junto concordando ou discordando. Apoiar é admitir o contraponto e não sonhar com o consenso entre duas personalidades diferentes.

Consenso entre dois é um disparate, o termo democrático funciona com mais envolvidos. Consenso entre dois corresponde a uma miragem de paz, é quando o primeiro manda e o segundo obedece. Consenso entre dois não é liberdade, é poder. E poder restringe a ação, não ilumina todos os caminhos. Quem tem poder tem menos liberdade. Quem tem liberdade não precisa do poder.

Há gente que não faz nada na relação se não obtém aprovação. Depende da aprovação do que vestir, depende da aprovação para receber amigos em casa, depende da aprovação para o que comer e o que beber, depende da aprovação para dormir e mexer no celular. São escravos silenciosos do amém. O sim que começou como agrado, avançou como hábito e recrudesceu em abandono do próprio pensamento.

Na simbiose da aprovação, o amor é perigosamente infantilizado e abre a guarda para o surgimento de um tirano dentro de casa. Sempre existe aquele que se beneficia da fragilidade, explora os bem-intencionados e manda e desmanda no casamento.

O desejo de agradar de qualquer jeito desemboca na obediência cega. No fim, terminará não determinando o que é realmente seu da rotina, apagará a sua identidade, não saberá escolher um canal de televisão ou uma roupa ou uma comida, de tanto que ficou sujeita ao que a sua companhia considera adequado.

Apoie, que é um gesto de igualdade, não aprove. Ninguém é melhor do que o outro para aprovar.

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p. 32
Porto Alegre (RS), 17/1/2016
Edição N°18419

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

#MUITOAMOR



Os cachorros não são como filhos, por mais que as pessoas repitam essa máxima.

Repreendemos os filhos diante de qualquer desordem. Filhos são o nosso sangue e têm uma ligação direta com as nossas emoções à flor da pele. Não temos uma paciência ensaiada, uma moderação construída. É a intuição agindo, fervilhando de pressentimentos. Somos severos quando correm perigo e renovam os nossos medos.

Amamos mais os filhos quando atendem às nossas expectativas – pois estão nos ouvindo. Amamos mais os cachorros quando eles fazem o contrário do que pedimos – exaltamos a vida própria deles.

Filho comportado e cachorro desrespeitoso são estranhamente sinônimos de orgulho.

O filho é educação, o cachorro é transgressão afetuosa.

O filho é o nosso exemplo, o cachorro é a nossa oposição divertida.

Com os filhos, somos capitalistas e materialistas. Com os cachorros, somos comunistas e desapegados.

Vejo donos postando fotos no Facebook de seu cachorro arruinando o sofá. As almofadas mordidas, estraçalhadas, pano convertido em cordas. Só que eles não ficam brabos, pelo contrário, parecem orgulhosos e colocam a hashtag MUITOAMOR. Se a devastação tivesse sido praticada por um filho, não seria tolerada, muito menos enquadrada como um gesto fofo. Ele terminaria chorando de castigo.

Vejo donos publicando imagens no Instagram de seus sapatos de mais de R$ 300 transformados em pantufas pelos seus cachorros, sempre com a hashtag MUITOAMOR. Sugerem felicidade e entendimento. Demonstram um descompromisso com o par caro arrebentado pelo seu animal de estimação. Se o ato fosse de autoria do filho, não teria o mesmo destino generoso, nem a cena seria alardeada na internet com juras de paixão.

Eu também testemunhei donos postando fotos de seu cachorro mijando na cama, roendo o pé das mesas, arranhando portas fechadas, rasgando o estofado do carro, comendo flores, sequências de filme de terror doméstico exaltadas como uma lição de muito envolvimento. Quando destrói, o cachorro está brincando, sob o pretexto de não conseguir controlar a sua força e medir a sua vontade. Quando destrói, o filho está implicando e provocando, sabe o que faz e apresenta sérios problemas psicológicos.

Não me fale, então, que os cachorros são como filhos. Não tem nenhuma conexão.

Os cachorros são como os netos, assistimos ao seu crescimento com admiração, sem neurose, com a ternura desobrigada.

Perdoamos os seus erros como fazem os avós, que não sofrem diretamente com as suas atitudes.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 12/01/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°18412

domingo, 10 de janeiro de 2016

NÃO FAÇA O OUTRO SOFRER O QUE VOCÊ SOFREU




Você queria que o outro sofresse o mesmo que sofreu, que ele entendesse o que renunciou, o erro que cometeu, o que deixou de viver ao seu lado, a escolha enganada. Queria que ele engolisse de volta tudo o que ficou engasgado em sua garganta: toda a distância, toda a indiferença, todo o desprezo. Parou de atender o telefone, bloqueou as redes sociais, não garantiu o direito a uma conversa redentora, virou as costas como mais uma porta fechada de casa, recusou as apelações por cartas e a esperança da retratação rápida.

Você pode comemorar, atingiu o seu objetivo, ele hoje é um caco, um restolho, um trapo do homem que foi. Pode espalhar para as suas amigas de que se vingou perfeitamente, envaidecer-se das estratégias de guerra, pode mostrar com orgulho o quanto ele resta perdido, desorientado, solitário, que o rosto dele não esboça um riso há tempo, que as olheiras fundas são desenho a carvão, que a sua barba é de um náufrago dos ansiolíticos. Pode se vangloriar do fim da fé do sujeito, de sua exaustão mental, de quem acorda como quem dorme, de quem dorme como quem desmaia. Pode exibir que você conseguiu o que desejava: ele sofreu tanto como você.

Estão quites. Mas infelizmente a sua falha é devolver o que houve de ruim na relação, e não recuperar o que havia de bom. Vingança não é justiça. Vingança é pisar mais o que estava machucado. Retribuiu as feridas, as chagas, a inclemência. São duas vítimas, não mais uma: você antes, ele agora. Executou a retaliação com astúcia de xadrez. A razão é um jogo para vencer, já o amor é a arte de ceder. Não há como ganhar na razão sem sacrificar o coração.

Não previu que sofrer é perigoso. As pessoas desamam na dor. As pessoas não voltam mais a ser o que eram. Exagerou na dose, pois a raiva não segue nenhuma posologia. Ele não tem nem mais uma ponta de orgulho para voltar a lhe admirar.

O sofrimento não produz saudade, e sim mata a saudade. A saudade é cria da alegria. O sofrimento apenas traz ressentimento. Você trocou o eu te amo dele por um pedido de desculpa. Ele irá pedir perdão um dia, porém nunca será capaz de uma reconciliação. Não foi um grande negócio.

Dar o troco é perder a fortuna do amor.

Publicado no jornal Zero hORA
Revista Donna, p.28
Porto Alegre (RS), 10/1/2016
Edição N°18412

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

PATO OU CAMARÃO: O ENIGMA MASCULINO DO FILTRO SOLAR



Homem confunde filtro solar com pomada. O que tem de pato, ganso, cisne na praia, com camadas e camadas mal espalhadas. Ou ele passa demais, ou passa de menos. Ou exagera, ou se omite. Não existe meio-termo (e nem menciono o spray, no qual as borrifadas são engolidas pelo vento). Ou exibe uma plumagem branca, ou aparece camarão-rosa, escandalosa carne viva em alguns trechos do corpo que exigem maior elasticidade, como as costas e atrás das axilas.

O mais cômico é o macho peludo, onde o creme fica eriçado na capa do peito, dê-lhe a cantar Roberto Carlos: debaixo dos caracóis dos seus cabelos.

Há uma incompetência inata masculina que deveria ser estudada. Metade do protetor permanece entre os dedos da rapaziada. Certo que o que não queima é a palma da mão.

O problema é a má vontade que vem da infância. Não conheço amigo que comemore o uso do protetor solar – faz obrigado, contrariado, de qualquer jeito, tateando a pele às pressas, longe do espelho. A mulher já considera o ato familiar e natural, está acostumada aos mais variados cremes de pequena: antes do banho, no banho, após o banho, desde as unhas até a raiz do penteado. Não há região de que ela não cuide com perseverança e afinco.

O modo desengonçado do varão começa na pouca intimidade que tem com a retirada do produto do pote, feito na base das cuspidas esporádicas, violentas e esforçadas. O creme é espirrado no chão, na cama, nas paredes e, inclusive, no teto.

A mulher, diferentemente, vira antes o pote fechado, dá umas palmadas na bunda e retira o volume que deseja com a maior tranquilidade do mundo. Diante da facilidade, a impressão é de que trapaceou e desenroscou a tampa do furo para pegar uma quantidade generosa.

As explicações no rótulo também terminam desprezadas pelos marmanjos, escolhem o número do filtro como se fosse jogo do bicho. Não se fixam em detalhes tais UVA e UVB, essenciais na prevenção de rugas e manchas solares.

Homem é genérico, mulher é farmácia de manipulação. Homem é remédio vencido, mulher é projeto de dermatologista.

Com uma resistência ancestral, o homem coloca uma vez protetor e pensa que está protegido por todo o veraneio. Não compreende que o protetor precisa ser renovado seguidamente, que sai com o mergulho no mar e na piscina, que dura duas horas em média. Botou de manhã e confia que estará valendo no dia inteiro. Não é que confie na infalibilidade dos laboratórios farmacêuticos, é preguiça mesmo, infantilidade irreversível.

O homem é uma criança grande, imediatista, na expectativa da reprimenda materna, que não quer perder o sol lá fora e, ao mesmo tempo, vive reclamando de que não consegue dormir com as queimaduras.

No juízo final, que as esposas perdoem a nossa chatice no verão.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 05/01/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°18405

domingo, 3 de janeiro de 2016

CORNO MANSO, MANSINHO



Contar ou não contar que o seu xará de trago e ressaca está sendo traído? - eis o maior dilema da amizade. Antecipar o pior ou deixar o pior acontecer? Melhor ser um corno pontual ou um corno retardatário? Há diferença em desvendar a infidelidade antes ou depois? A antecipação diminui o estrago? O colega que não fala que viu a traição estará quebrando o voto de lealdade?

Quantas dúvidas numa só questão.

Meu amigo telefonou desesperado:

- Você está com a sua mulher aí ao seu lado?
- Não, ela está viajando. Por quê?
- Pois é, difícil a situação, não sei se deveria contar. Mas não posso lhe ver sofrer e ser enganado. Pensei duas vezes antes de ligar...
- O que foi?
- Acabei de passar pela calçada da fama em Gramado. Ah..deixa pra lá!
- Desembucha meu!
- Vi a tua esposa abraçada a um cara, andando abraçada a um cara, em plena luz do sol, nem aí para a multidão! Muito descaramento. Desculpa, meu velho, não queria ser o portador desta notícia.
- Não precisa se desculpar.
- Uma vaca, cara, não merece isto!
- Calma, calma, como era ele?
- Sua altura, barba cerrada, cerca de 50 anos, cabelos pretos...
- Ele está de jaqueta de couro, jeans e bota?
- Sim.
- Previsível. A minha mulher se amarra no estilo selvagem da motocicleta.
- Bah, que m.! Não fala assim que choro.
- Ele não vive rindo?
- Sim, parece muito feliz.
- Ele não está com Ray Ban?
- Como que descobriu?
- Cara, imagino quem seja...
- Você já estava desconfiado?
- Faço terapia, tem coisas que não tem como suportar sozinho.
- Você aceita que ela saia com um outro?
- Meu irmão, o que posso fazer? Impossível competir com ele. É batalha perdida. Ele é o homem da vida dela, serei sempre o segundo.
- Como assim, velho? Enlouqueceu? Agora deu para ser corno manso?
- Nada a ver, é que conheço as minhas limitações!
- Não vai fazer nada? Nenhum barraco, não mandará a vadia embora?
- Ela não é vadia, é a mulher que amo.
- Recebe um par de chifres e ainda defende a traidora? Não estou lhe reconhecendo, velho, precisa ser internado. Pirou na batatinha.
- Estou conformado. Há coisas que não há como mudar na vida.
- Não acredito que tem sangue de barata.
- Faz um favor, então, para mim?
- Faço!
- Volta lá, cumprimenta a minha mulher e dá um recado para ela.
- Pode deixar comigo! Ela vai ver com quem se meteu...O que falo?
- Diz para ela aproveitar o passeio com o seu pai e avisa que venho morrendo de saudade.

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p. 28
Porto Alegre (RS), 3/01/2016 Edição N°18405