Ninguém foi condenado por matar uma samambaia. Nenhum solteiro, nenhum casado em crise. Sempre ela é vista como suicida. É ela que desistiu, nunca é culpa da falta de cuidados.
A família sai de férias, não é carregada junto, não inspira instruções para quem fica.
Ela é abandonada, como um zelador dos objetos.
Não se compra uma samambaia, recebe-se de presente. Como veio de graça, assim ela é ainda mais esquecida.
Sua aparência de mato engana, confundida com um arranjo de buquê sem as rosas.
A samambaia termina com alma de flor de plástico.
Como não oferece sementes, como não floresce, tem o preconceito dos românticos.
A samambaia poderia andar nua pela casa e não chamaria atenção. Nasceu camuflada, camuflada de si mesma. É apenas percebida com a chegada das borboletas. As borboletas são as suas roupas.
A samambaia não mete medo como uma lagartixa. Ela existe, mas não existe. Tem uma desvantagem em relação à lagartixa: não tem paredes para correr.
O fato de ocupar o alto faz com que não seja valorizada. Parece que não é dali, parece que está voando, de passagem.
A samambaia é uma pipa que foi montada e jamais ganhou o céu de uma criança.
Não se conhece o desejo de uma samambaia, a sua felicidade, o seu esporângio.
Escora-se nos lamentos do vento, uma planta triste de unhas compridas. Talvez uma manicure resolvesse o seu dilema.
A samambaia sofre de complexo de inferioridade, mas não consegue encolher. Ela cresce, inclusive, quando falece.
A samambaia é confundida com o cacto. Só que o cacto sobrevive, a samambaia não. O cacto bebe mais pedra do que água.
Lembra um cachorro, pula em cima dos móveis, abana o rabo, lambe o rosto e se esfrega em quem se aproxima. Pena que o dono não compreende as suas folhas como uma língua para fora.
Morre de sede porque todo mundo pensa que alguém já deu água para ela.
quarta-feira, 28 de dezembro de 2016
DÊ UM DESCONTO AO AMIGO QUE VIVE UM MOMENTO DIFÍCIL
Não estrague a amizade porque o seu amigo anda chato. É uma fase. Pode ser falta de dinheiro, problemas familiares, um amor doente que ele fracassa em desatar.
Mas cuidado para não tornar definitivo o que é provisório. Ele está chato, não é chato. Rememore o quanto vocês se conhecem, o quanto viveram de cumplicidade e segredos, o quanto superaram adversidades e desilusões.
Não vale a pena sacrificar uma história inteira feliz por um dia ruim. Uma indiscrição, uma grosseria e uma aspereza não significam que tudo foi em vão. Pondere, todo amigo tem o direito de errar e explodir, de incomodar e se desculpar.
Não converta a falta de sintonia passageira em distanciamento permanente. Desfazemos grandes lealdades por bobagens. Transformamos desentendimentos, resultantes de uma crise pessoal, em divergências irreversíveis da relação.
Com uma propensão imediatista, enxergamos somente o período turbulento e desagradável, e esquecemos de reconhecer o companheirismo anterior. Falta-nos paciência para encarar as lamúrias e contextualizar os ataques. No lugar de respirar um pouco e oferecer um desconto, tratamos de responder as agressões com violência.
Dê um tempo para o amigo, afaste-se por uma semana, crie saudade de um mês, porém não destrua os laços em função de uma implicância. Às vezes ele não quer ser ajudado, às vezes não há como socorrer aflições, às vezes ele não desfruta de condições para escutar seus conselhos, às vezes ele ofende jurando que vem sendo apenas sincero.
Deixe estar. Não fique perto, abra espaço para que ele reflita e se acalme, não se apoie na raiva que aumenta o desconforto e intensifica as retaliações. Evite desligar o telefone na cara, controle-se para não cobrar a devolução dos presentes e afetos, silencie antes de estabelecer ultimatos, contenha-se para não misturar medos antigos com os novos e realizar chantagens emocionais, recue no bate-boca, fuja da conta da culpa e, concordando ou discordando, diga que vai pensar e que retornará depois. Por enquanto, feche as janelas e conserve a porta aberta.
Entenda que as melhores companhias nem sempre são boas companhias. A simbiose que existe numa amizade, de um espelhar o outro, de um ser o outro, é perigosa. Quando alguém pretende se destruir, leva junto quem vive próximo. Os confidentes são os primeiros a sofrer maus-tratos.
Amizade é também prever o momento de se retirar para voltar com mais força e amor redobrado.
Mas cuidado para não tornar definitivo o que é provisório. Ele está chato, não é chato. Rememore o quanto vocês se conhecem, o quanto viveram de cumplicidade e segredos, o quanto superaram adversidades e desilusões.
Não vale a pena sacrificar uma história inteira feliz por um dia ruim. Uma indiscrição, uma grosseria e uma aspereza não significam que tudo foi em vão. Pondere, todo amigo tem o direito de errar e explodir, de incomodar e se desculpar.
Não converta a falta de sintonia passageira em distanciamento permanente. Desfazemos grandes lealdades por bobagens. Transformamos desentendimentos, resultantes de uma crise pessoal, em divergências irreversíveis da relação.
Com uma propensão imediatista, enxergamos somente o período turbulento e desagradável, e esquecemos de reconhecer o companheirismo anterior. Falta-nos paciência para encarar as lamúrias e contextualizar os ataques. No lugar de respirar um pouco e oferecer um desconto, tratamos de responder as agressões com violência.
Dê um tempo para o amigo, afaste-se por uma semana, crie saudade de um mês, porém não destrua os laços em função de uma implicância. Às vezes ele não quer ser ajudado, às vezes não há como socorrer aflições, às vezes ele não desfruta de condições para escutar seus conselhos, às vezes ele ofende jurando que vem sendo apenas sincero.
Deixe estar. Não fique perto, abra espaço para que ele reflita e se acalme, não se apoie na raiva que aumenta o desconforto e intensifica as retaliações. Evite desligar o telefone na cara, controle-se para não cobrar a devolução dos presentes e afetos, silencie antes de estabelecer ultimatos, contenha-se para não misturar medos antigos com os novos e realizar chantagens emocionais, recue no bate-boca, fuja da conta da culpa e, concordando ou discordando, diga que vai pensar e que retornará depois. Por enquanto, feche as janelas e conserve a porta aberta.
Entenda que as melhores companhias nem sempre são boas companhias. A simbiose que existe numa amizade, de um espelhar o outro, de um ser o outro, é perigosa. Quando alguém pretende se destruir, leva junto quem vive próximo. Os confidentes são os primeiros a sofrer maus-tratos.
Amizade é também prever o momento de se retirar para voltar com mais força e amor redobrado.
SENSAÇÃO TÉRMICA DA PERSONALIDADE
Emoções são fatos. Não dá para desprezar como alguém sente uma experiência, ainda que esteja aumentando a importância do ocorrido.
A versão é a verdade de cada um. É o jeito que a pessoa percebeu emocionalmente uma cena. É o que ela pode entender ou aceitar, de acordo com a sua formação, os seus tabus e preconceitos.
Para alguns, mentir sobre a demora na entrega de um trabalho é motivo de demissão. Para outros, é educação. Para alguns, a deslealdade é motivo de separação. Para outros, é sinal de imaturidade e merece o perdão.
Tem gente que desculpa a infidelidade, tem gente que vira as costas e nunca mais oferece uma segunda chance.
Eu parei de provocar a minha irmã com berros fantasmagóricos de surpresa quando notei que ela começava a chorar, exatamente os mesmos sustos que produziam risos consecutivos em meu irmão. O contentamento de um é a tristeza do próximo.
Não há como antever como os outros vão reagir sobre os dilemas e impasses da vida. É o que chamo de sensação térmica da personalidade.
Assim como a temperatura pode registrar 30 graus e a sensação térmica ser de 40 graus, o sofrimento de um amigo ou familiar pode ser bem maior do que o tamanho da realidade, o que não invalida o desabafo.
O nordestino pode se cobrir de casacos em passagem pela Serra no verão enquanto os moradores desfilam de camiseta, a impressão é que manda.
Uma tentativa frustrada de assalto talvez renda mais desespero do que alguém que sofreu um sequestro.
Há a ciência do tempo, há a meteorologia, mas também as alterações sentimentais do cotidiano.
Toda pessoa é um idioma à parte.
Temos que nos preocupar com os efeitos da dor mais do que com a precisão dos acontecimentos.
Não se deve desmerecer a conversa porque o assunto não nos interessa. Ou julgar com os nossos próprios referenciais.
Para quem sabe nadar, o medo da água é ridículo. Para quem gosta de show, o medo da multidão é patético. Para quem dança, as coreografias da micareta são fáceis.
Esquecemos de ponderar sobre a sensação térmica do coração.
Não me incomodo com os passionais, os dramáticos e os operísticos. Respeito os efeitos especiais da linguagem. O exagero é uma forma de dizer o que está incomodando e de diminuir a angústia com as palavras.
AQUELE QUE SOFRE MENOS
Foto de Gilberto Perin
Quem não tenta fixar o último beijo, reprisar a última frase, recuperar a derradeira mensagem, sofre menos com a separação.
Quem não colecionava fotos, não se preocupava em guardar pasta do casal nos meus documentos, sofre menos com a separação.
Quem não tinha fé quando faltava compreensão sofre menos com a separação.
Quem não comemorava os meses quebrados, depois os anos inteiros de relacionamento, não fazia a ordem cronológica dos diálogos, não recuperava as grandes piadas, não conservava os maiores encantos, sofre menos com a separação.
Quem não trazia as alegrias para as brigas, mesmo as minúsculas, para suavizar a raiva, sofre menos com a separação.
Quem não desenvolvia dialetos, expressões, não dava apelidos carinhosos, não infantilizava e envelhecia o outro para recuar e avançar em todos os tempos da vida, sofre menos com a separação.
Quem não abria a agenda para preparar jantar em casa, regado a vinho e músicas prediletas, quem não telefonava para avisar da lua cheia no céu, sofre menos com a separação.
Quem não criava presentes, não escrevia cartões e cartinhas antes de sair em viagem, quem não preparava declarações públicas nas redes sociais, sofre menos com a separação.
A dor é memória multiplicada, do que aconteceu e, em especial, do que não aconteceu.
Só sofre quem se comprometia a lembrar de tudo porque nada era insignificante.
Homens e mulheres de pouca memória estão salvos, não conhecem a angústia do amor.
FESTA DA FIRMA
Arte de Eduardo Nasi
Como você ficará à vontade sabendo que não pode beber, não pode dançar loucamente, não pode contar piadas, não pode falar mal de ninguém, em especial de seu chefe? Carregue um “Google tradutor” embutido em sua boca para converter o gordo, o careca, o idiota e o imbecil em colaborador, integrante do time e parte da família.
Para que largar o conforto do lar? Não tem sentido, o equivalente a dizer que cocô de passarinho na cabeça traz sorte.
Mas, se não aparecer, o povo comentará que é azeite, prepotente, não quer se comprometer e que dispensa as relações interpessoais.
O que é obrigação nunca será diversão. A risada precisa ser cínica e controlada, pois a gargalhada já indicará alto teor alcoólico. É recomendável que seu figurino não chame a atenção. Não use combinação extravagante, muito menos formal em demasia. Em suma, irá com a mesma roupa que costuma trabalhar.
Bajulação é desagradável, assim como a honestidade. Cumprimente a todos, não puxe assuntos a fundo. Jamais traga problemas pendentes do ambiente corporativo, e igualmente não abra a sua vida. O correto seria não existir marcando presença.
Como não há meio-termo na descontração, é mexer o tronco dentro de uma camisa-de-força.
Tocará funk e não descerá ao chão. Tocará sertanejo universitário e não levantará os braços. Nem “Lepo lepo”, nem “Paredão metralhadora” serão capazes de abrir a pista para coreografia, qual a graça?
Você deverá recusar tudo o que é bom. Não deve comer em excesso para não ser morto de fome, não deve se envolver com a colega para não misturar amor e emprego. Em hipótese alguma, não ser o primeiro a chegar e também não inventar de ser o último a sair (nenhuma festa é inesquecível se saímos cedo, não é verdade?).
Encontro da firma não é lazer, e sim hora-extra no final de semana e adicional noturno. Só os estagiários não entenderam isso e brindam ao futuro, ingenuamente alegres, com seus copos de plástico.
BRIQUE DO AMOR
A campanha de agasalho era dentro de casa. Eu recebia as roupas do irmão mais velho e o irmão mais novo recebia as minhas roupas. Não havia banho de loja. Fui do tempo em que não existia shopping center.
Herdei calças e camisas do Rodrigo. Por sua vez, Miguel herdou as minhas calças e camisas.
A mãe ajeitava as bainhas e as mangas e me moldava ao corpo das roupas (nunca as roupas se moldavam ao meu corpo). Tanto que até hoje, quando vou provar algo, eu não me importo quando está um pouquinho curto ou largo demais, perdoo a imperfeição.
Na infância, vestir significava somente não passar frio. Não correspondia a se embelezar. Calças e casacos ostentavam, sem nenhuma vergonha, remendos de couros e cicatrizes. Cuecas e meias viviam costuradas.
O sapato gozava da importância inexplicável de um carro. Trocava-se a sua sola frequentemente para que continuasse sendo usado. O sapateiro emergia como uma referência insubstituível do bairro, assim como o padeiro, o padre e o médico. Desfrutava da responsabilidade de passar na sapataria depois da aula para buscar as encomendas familiares.
Ocorria dentro de casa a antecipação do testamento em vida. Não se esperava o inventário para partilhar os pertences. Firmávamos uma estranha hereditariedade do vestuário.
Disputávamos a pasta e a carteira velha do pai, brincávamos do faz de conta financeiro com os carnês vencidos. Nada se perdia, tudo trocava de mão, de braço e de perna.
Os agasalhos duravam três gerações. O conteúdo das gavetas mudava de dono e jamais ia fora.
Acho que temos que recuperar, diante da atual crise financeira, o valor emocional dos objetos. Não me importo em ganhar presentes usados, pois serão lembranças com alta carga simbólica. Desde pequeno, aprendi a reaproveitar o amor e valorizar cartas de agradecimento.
Quando não tínhamos dinheiro, na escola, preparávamos cartões para o dia dos pais e das mães, por que não recuperar este artesanato da letra e do desenho no mundo adulto?
Dê seu moletom preferido para alguém do seu círculo de amigos, ou passe adiante um livro de seu gosto ou um CD que harmonizou os seus ouvidos para a saudade. Não se envergonhe de sua pobreza, que seja uma pobreza alegre, repartindo o santuário de sua sobrevivência.
Não sofra com o que não tem, ofereça aquilo que você é.
Herdei calças e camisas do Rodrigo. Por sua vez, Miguel herdou as minhas calças e camisas.
A mãe ajeitava as bainhas e as mangas e me moldava ao corpo das roupas (nunca as roupas se moldavam ao meu corpo). Tanto que até hoje, quando vou provar algo, eu não me importo quando está um pouquinho curto ou largo demais, perdoo a imperfeição.
Na infância, vestir significava somente não passar frio. Não correspondia a se embelezar. Calças e casacos ostentavam, sem nenhuma vergonha, remendos de couros e cicatrizes. Cuecas e meias viviam costuradas.
O sapato gozava da importância inexplicável de um carro. Trocava-se a sua sola frequentemente para que continuasse sendo usado. O sapateiro emergia como uma referência insubstituível do bairro, assim como o padeiro, o padre e o médico. Desfrutava da responsabilidade de passar na sapataria depois da aula para buscar as encomendas familiares.
Ocorria dentro de casa a antecipação do testamento em vida. Não se esperava o inventário para partilhar os pertences. Firmávamos uma estranha hereditariedade do vestuário.
Disputávamos a pasta e a carteira velha do pai, brincávamos do faz de conta financeiro com os carnês vencidos. Nada se perdia, tudo trocava de mão, de braço e de perna.
Os agasalhos duravam três gerações. O conteúdo das gavetas mudava de dono e jamais ia fora.
Acho que temos que recuperar, diante da atual crise financeira, o valor emocional dos objetos. Não me importo em ganhar presentes usados, pois serão lembranças com alta carga simbólica. Desde pequeno, aprendi a reaproveitar o amor e valorizar cartas de agradecimento.
Quando não tínhamos dinheiro, na escola, preparávamos cartões para o dia dos pais e das mães, por que não recuperar este artesanato da letra e do desenho no mundo adulto?
Dê seu moletom preferido para alguém do seu círculo de amigos, ou passe adiante um livro de seu gosto ou um CD que harmonizou os seus ouvidos para a saudade. Não se envergonhe de sua pobreza, que seja uma pobreza alegre, repartindo o santuário de sua sobrevivência.
Não sofra com o que não tem, ofereça aquilo que você é.
ESPECULAÇÃO
O solteiro tem um olhar de especulação imobiliária.
Assim como quem procura um apartamento sempre está mirando o alto dos prédios, o solteiro não deixa ninguém passar sem investigar de cima a baixo. Chega a ser pornográfico, mas ele fica com o radar inteiramente ligado para flertes e romances. O sensor está ativado para anúncios. Encara os passantes, de frente e de costas, não se intimidando com nada. Faz as perguntas mais diretas e não desperdiça chance de aproximação. Pede o telefone mesmo antes de revelar o seu nome.
A cara-de-pau do solteiro é assustadora. Corre atrás de portas e de espaços para alojar a sua vida. Transforma beleza em metros quadrados, estuda a geografia da paixão com a ciência dos números. Muito diferente do casado, que tem preguiça até para descer de elevador e buscar a sua tele-entrega e se contenta em deitar no sofá de roupas velhas.
O solteiro é incansável. A mesma determinação de alguém caçando imóvel. Pula de uma festa para outra desprezando o cansaço. Emenda saídas e não diz “não” nunca. Dorme pouco respondendo aos amigos e dando conta das ofertas do WhatsApp. Fala com metade da cidade em duas horas.
Já o casado sofre para responder aos mais chegados e vive arrumando desculpas para não frequentar baladas, ou é a fila ou é o tempo feio ou é a música.
O solteiro frequenta academia e tira selfies de perto. O casado se vangloria da panela de brigadeiro e permite apenas fotos de corpo inteiro e de longe.
O solteiro economiza na semana para gastar no final de semana. É pobre de segunda a quinta, e um milionário de sexta a domingo. Por sua vez, o casado prefere gastar numa churrascaria do que em consumação.
O solteiro quer camarote, o casado quer desaparecer. O solteiro quer isenção, o casado quer promoção. O solteiro é amigo dos porteiros e dos garçons, o casado conhece os atendentes do supermercado e da farmácia.
Se o solteiro come na frente do computador, o casado come na frente da televisão.
Se o solteiro persegue a casa dos sonhos, o casado imagina a reforma dos sonhos.
O casado critica o solteiro, o solteiro critica o casado.
O solteiro deseja se aquietar depois de experimentar muito, o casado não deseja sofrer com o excesso de opções.
O PECADO MAIOR
O orgulho não é apenas um pecado, é uma tirania. É alguém que falsifica a memória para atender ao capricho de seus desejos.
É um pecado invisível, imperceptível na aparência, já que traz confiança e combatividade.
O orgulhoso parece que está bem, mas unicamente não para quieto um minuto para descobrir o quanto está mal.
O orgulho não escuta, não tem a humildade do engano. Vem de pessoas apressadas de certezas, que já buscam convencer o outro antes mesmo de terminar a conversa e acolher o contraponto.
O orgulho ferido sangra a esperança, até desaparecer o futuro.
O orgulho é quando o espelho manda na vidraça, o reflexo vence a reflexão.
O orgulho é mais vaidade do que verdade.
O orgulho nasce do medo e desemboca na intolerância. O medo de perder emprego estimula o preconceito contra os imigrantes, assim como o medo da própria sexualidade arma ataques à homoafetividade.
No orgulho, você odeia quem é diferente, com receio de perder a sua influência.
O orgulho é coisa de gente pequena bancando a grande.
O orgulho transforma a fraqueza em vício.
O orgulhoso converte impressões em fatos e desacredita os fatos com impressões.
O orgulhoso dedica o seu tempo integral aos inimigos.
O orgulho não tem amigos, tem álibis.
O orgulho é previamente a favor ou contra.
No orgulho, não existe senso de humor, pois rir é igualdade social. Quem ri junto jamais se acha melhor que o outro.
A alegria do orgulho é escárnio, uma gargalhada sem mostrar os dentes, articulada no canto da boca.
O orgulhoso se explica ou se justifica em vez de pedir desculpa, não volta atrás para reconsiderar a opinião.
O orgulhoso condena antes de julgar, vinga-se antes de entender o que aconteceu.
O orgulhoso não acha o caminho porque se envergonhou de perguntar.
No orgulho, você se delicia roubando a felicidade do próximo. Ao contrário da tolerância, onde você só é feliz dividindo a felicidade.
O orgulho é a riqueza esmolando, é a fome oferecendo comida, é a sede na chuva, é a penúria na abundância.
O orgulho é avareza. Você esconde o que sente para não ter o trabalho de falar.
O orgulho é saudade engasgada.
O orgulho não conhece a paz depois do perdão. Ou seja, no orgulho você jamais é livre.
O orgulho prepara vinganças reais para dores imaginárias. Sofrerá por aquilo que não aconteceu, e que somente acontece em sua cabeça.
O orgulhoso repete o seu pior dia eternamente para decorar as dores.
O orgulhoso ocupa-se em fingir que está ocupado e fecha as portas de palavras vazias.
O orgulhoso coloca a mão na consciência enquanto os pés chutam o inconsciente.
O orgulhoso vibra mais com o fracasso dos colegas do que com os seus sucessos.
O orgulho é o otimismo da destruição.
O orgulho desafia pela frente e cria a discórdia pela fofoca.
O orgulhoso ganha o poder sem mérito e mantém o poder não se importando com os meios.
O orgulhoso diz que sabe para nunca precisar saber.
O orgulho é egoísmo, você convive com os demais para falar de si.
No orgulho, você corre atrás de um não e foge de todo o sim.
Orgulho é insistir num relacionamento errado para provar que tinha razão.
Orgulho é rastejar com as asas.
Por orgulho, desperdiçamos uma vida (já por amor, multiplicamos a nossa vida).
Quando é orgulho, vivemos a vida do outro. Quando é amor, jamais deixamos de ser.
O amor não precisa de provas, demonstrações, jogos e disputas, isso é coisa do orgulho.
No orgulho, nunca está satisfeito. No amor, você transborda.
O orgulho é um capricho, o amor é destino.
O orgulho é ego, o amor é generosidade.
O orgulho é mágoa, o amor é reconciliação.
O orgulho é ressentimento, o amor é fé.
O orgulho é se prender ao passado, o amor é escolha.
O orgulho é impor o seu projeto, o amor é alterar o seu projeto de acordo com a necessidade.
O orgulho se veste de amor, finge que é amor, é o clone do amor, é o sósia do amor, mas não é amor, é o fracasso do amor.
O orgulho é tão somente um ódio frio.
Poeta e cronista, autor de "Felicidade Incurável" (Bertrand Brasil)
Publicado na revista da Livraria Cultura, dezembro de 2016, edição 107, dossiê Sete Pecados, ps 52-53.
HINO DA DESPEDIDA
Foto de Gilberto Perin
Para Roberta Campos
O altar está arruinado, não há recompensa depois de amar, todas as palavras foram usadas e as mentiras já são velhas, não me venha com promessas, só me deixe passar, com licença, só me deixe passar, quero ir sozinho assim como nasci. Nascerei de novo até cansar de morrer.
Seu olhar perdido não me trará a vontade de lembrar. Seu riso desajeitado não me despertará a ansiedade do abraço. Sou agora insensível às chantagens. Só me deixe passar, quero ir, com licença. Teve várias chances dentro de mim e pensou que eu não iria quebrar. Não tem problema, sou mais leve aos pedaços, não pagarei excesso de bagagem.
Deixe-me passar. Não é ficando na minha frente que mudará qualquer desejo. Não é retornando ao passado que consertará os erros.
O que não percebeu: o perdão era fácil e bastava a sinceridade, o perdão era simples e bastava a verdade, o perdão sempre esteve guardado no sotaque ingênuo da infância.
Não há curiosidade, não há esperança, não enxergo vontade de tentar em seu lugar fingindo que eu sou você. Não somos dois, não seremos um.
Cansei de explicar o que você jamais fez. Cansei de justificar sua ausência. Cansei de estar em dobro quando vinha pela metade. Deixe-me. Nem o sol é educado, a luz vive atravessando a chuva.
Com licença, rir é também chorar, rir é quando a boca chora. Apanhei do amor, mas fui eu que apanhei o amor.
PREGO E PARAFUSO
Arte de Eduardo Nasi
Homem decide e pronto. Não olha para trás. Não faz repescagem. Pode ter vacilado, mas quando define uma posição assume e dificilmente entra em parafuso. Homem é prego, não fica girando nos mesmos temas. Óbvio que se arrepende, mas transforma o erro em silenciosa culpa e resignação. O orgulho não permite que se transforme em caranguejo. Voltar em suas considerações tem um preço alto demais para quem foi criado a não pedir ajuda.
Já a mulher, mesmo quando decide, não termina a dúvida. Continua com o dilema. Diz sim ou não, porém prolonga o plenário com as amigas. Sua resposta é provisória e apenas o início de uma longa conscientização. Acredita que pode pensar com calma, não se prendendo ao tempo. A data de validade de suas opções é eterna.
A preferência pela comédia romântica, recheada de vaivéns, desencontros e lacunas amorosas, é a prova de sua alma irresoluta. Não gosta de histórias fáceis e lineares – prioriza a superação de tabus e preconceitos.
A questão é que ela não encerra qualquer coisa que já foi discutida, o que enlouquece a ala masculina. Voltará com aquele ciúme explicado ou aquela cisma esclarecida.
Ela compra uma roupa e demora um mês para tirar a etiqueta mantendo intacta a possibilidade de troca. Cria uma ronda para ouvir diferentes contrapontos após o seu ultimato. Por isso nunca tem o rosto tranquilo de um destino convicto, mas sempre a intensidade febril de quem está optando. Pode ser uma incerteza de um mês ou de um ano, não apaga jamais o potencial de escolha. Deixa a porta entreaberta para liminares e mandados de segurança.
A cabeça feminina é um julgamento perpétuo do que deve ser. Não há o descanso da derrota e a comemoração definitiva da vitória. Está sempre reabrindo dilemas e cavando encruzilhadas.
Nunca confie que ganhou alguma causa com ela. O balbucio afirmativo do casamento será posto à prova na convivência, assim como uma viagem ou uma proposta de trabalho. Não há questões fechadas. Aceita primeiro para depois pensar melhor com os seus grupos. Coloca a esperança em xeque em nome do realismo.
Pensamento do homem quando morre é enterrado, tem velório e missa de sétimo dia. Pensamento da mulher quando morre ressuscita e tira as pedras do caminho.
Homem é ponto final, mulher é reticência.
Homem diz amém, a mulher diz “pois é”. São religiões diferentes.
INIMIGO SECRETO
Amigo Secreto merecia se chamar de Sofrimento Secreto.
Não tem como se divertir numa brincadeira onde seu principal desafeto pode lhe dar um presente. Ou você pode estar nas mãos do sujeito mais pão-duro do serviço. Como ficar à vontade se tirou o nome do seu chefe?
Nunca vi ninguém pulando de alegria, vibrando por participar da confraternização.
Amigo Secreto é uma praga do Natal, que saiu das empresas para estragar a ceia das famílias.
Amigo Secreto é trocar o presente espontâneo por um brinde. É trocar a loja pelo quiosque.
Amigo Secreto é ir a um rodízio de pizza para comer somente uma fatia.
A pior coisa do Amigo Secreto é quem faz suspense demais, pois aumenta a expectativa para diminuir a recompensa.
A pior coisa do Amigo Secreto é também quem não faz suspense nenhum, preguiçoso e sem vontade.
Todos erram as características na hora do anúncio. É um festival de constrangimentos.
Amigo Secreto oferece chance para os tarados cantarem suas colegas. É um karaokê aberto para péssimos poetas e piadistas.
A Lei de Murphy criou o Amigo Secreto. A lembrança que você recebe consegue ser muito menor do que o limite estabelecido. Você sempre será prejudicado. Terminará com um CD muquirana ou um pacote de meias.
Amigo Secreto é uma rifa sonhando ser Mega-Sena.
Amigo Secreto é fingir que você é feliz.
SOU A PRÓPRIA SESSÃO DA TARDE
Os hábitos da infância repercutem na vida adulta, desenham as nossas ambições.
O que poderia acontecer com a minha cabeça se passei a minha meninice inteira com os mesmos filmes?
Teria que surgir alguma consequência.
Fui vítima de uma divertida lavagem cerebral.
Não importa se o filme é ruim, vou até o fim. Não importa se já vi, continuo assistindo. A minha resiliência audiovisual é exemplar.
Posso virar madrugadas acompanhando uma história reprisada infinitamente, vacilo ao parar, fracasso ao apagar, simplesmente não durmo. O controle não é remoto para mim.
Sofri o efeito colateral da Sessão da Tarde. Atravessei um exaustivo treinamento militar.
Engraçado é que os dubladores se revezavam. Eddie Murphy e John Travolta dividiam igual voz, por exemplo, e jamais me prendi a esse detalhe.
Voltava da escola e, depois do almoço, o lazer consistia em acompanhar a programação da Rede Globo.
Como fica uma criança exposta excessivamente a uma única radiação mental? Só podia formar um zumbi.
Não era uma época de canais fechados, somente tinha cinco opções da rede aberta e ainda dependente do bom humor do sinal externo e do bombril na antena em cima do aparelho.
Acho que devo ter visto oito vezes As sete faces de dr. Lao, dez vezes A Lagoa Azul e umas quinhentas vezes Karatê Kid.
O que sou hoje é resultado disso. O que o circo do dr. Lao pode ensinar a um guri a não ser nunca subestimar o diferente? Já Lagoa Azul me infundiu o romantismo pegajoso. Karatê Kid fez com que enxergasse a faxina como um modo de fazer atividades físicas e marciais, coisa que nem a minha mãe conseguiu.
Não me esqueço de Splash uma sereia em minha vida, Curtindo a vida adoidado e Mulher nota mil. Sei de cor. Muito além do ocaso da carreira, os meus ídolos eternos permanecem sendo Daryl Hannah, Matthew Broderick e Kelly Le Brock.
Não havia escolha. Acompanhei a saga da cadela Lassie e sua sabedoria silenciosa. Atravessei os meus aniversários sucessivamente pedindo uma collie.
Lassie transformou-se em meu Harry Potter: A força do coração, A coragem de Lassie, Lassie de volta para casa e A magia de Lassie.
Venho de uma linhagem da previsibilidade e da reincidência.
Não duvide de mim, jamais deixo pela metade uma dor ou uma alegria porque é repetida. Sou capaz de me emocionar de novo apesar de conhecer o final.
O que poderia acontecer com a minha cabeça se passei a minha meninice inteira com os mesmos filmes?
Teria que surgir alguma consequência.
Fui vítima de uma divertida lavagem cerebral.
Não importa se o filme é ruim, vou até o fim. Não importa se já vi, continuo assistindo. A minha resiliência audiovisual é exemplar.
Posso virar madrugadas acompanhando uma história reprisada infinitamente, vacilo ao parar, fracasso ao apagar, simplesmente não durmo. O controle não é remoto para mim.
Sofri o efeito colateral da Sessão da Tarde. Atravessei um exaustivo treinamento militar.
Engraçado é que os dubladores se revezavam. Eddie Murphy e John Travolta dividiam igual voz, por exemplo, e jamais me prendi a esse detalhe.
Voltava da escola e, depois do almoço, o lazer consistia em acompanhar a programação da Rede Globo.
Como fica uma criança exposta excessivamente a uma única radiação mental? Só podia formar um zumbi.
Não era uma época de canais fechados, somente tinha cinco opções da rede aberta e ainda dependente do bom humor do sinal externo e do bombril na antena em cima do aparelho.
Acho que devo ter visto oito vezes As sete faces de dr. Lao, dez vezes A Lagoa Azul e umas quinhentas vezes Karatê Kid.
O que sou hoje é resultado disso. O que o circo do dr. Lao pode ensinar a um guri a não ser nunca subestimar o diferente? Já Lagoa Azul me infundiu o romantismo pegajoso. Karatê Kid fez com que enxergasse a faxina como um modo de fazer atividades físicas e marciais, coisa que nem a minha mãe conseguiu.
Não me esqueço de Splash uma sereia em minha vida, Curtindo a vida adoidado e Mulher nota mil. Sei de cor. Muito além do ocaso da carreira, os meus ídolos eternos permanecem sendo Daryl Hannah, Matthew Broderick e Kelly Le Brock.
Não havia escolha. Acompanhei a saga da cadela Lassie e sua sabedoria silenciosa. Atravessei os meus aniversários sucessivamente pedindo uma collie.
Lassie transformou-se em meu Harry Potter: A força do coração, A coragem de Lassie, Lassie de volta para casa e A magia de Lassie.
Venho de uma linhagem da previsibilidade e da reincidência.
Não duvide de mim, jamais deixo pela metade uma dor ou uma alegria porque é repetida. Sou capaz de me emocionar de novo apesar de conhecer o final.
DEPENDE DO PONTO DE VISTA
Ele já tinha sido um cantor de sucesso, tocado para ginásios com mais de 50 mil pessoas, fugido de fãs pelas saídas laterais, conhecido a fama de perto, a ponto de interromper selfies e autógrafos para não ser esmagado pelo público, aparecido no Faustão e no Jô Soares, agora ele mergulhara no anonimato. Ninguém mais comentava sobre seu trabalho, suas músicas não rodavam nas rádios, seus CDs não vendiam como antes, os seus bajuladores haviam desaparecido sob alcunha de falsos amigos.
Quando chegou para dar um show em restaurante no litoral gaúcho, só tinha três mesas ocupadas. Circulavam mais garçons que espectadores. Havia uma melancolia de circo desmontado, uma tristeza de cachorro manco, um dó de tempestade de verão, tanto que o seu assessor estava disposto a cancelar o evento.
O dono do local, prevendo que não contaria com lucro e antevendo o prejuízo com o pagamento do cachê, aproximou-se do artista e debochou: – É o fim de carreira, hein?
O músico não julgou o comentário, bateu afavelmente nas costas do sujeito e respondeu: – Pode ser fim de carreira ou reinício, depende do ponto de vista, eu comecei tocando para três mesas quando jovem.
Ele pegou seu violão, ajustou o microfone e fez a melhor apresentação de sua trajetória. Cantou com vontade, não se desanimou com a ausência de eco da multidão, pôs os braços para cima a chamar aplausos coreografados e lembrou letras prediletas e melodias antigas que não vinham à tona há muito tempo.
Quem o via não compreendia a performance entusiasmada, o turbilhão interno, a gana de vencer. Talvez até ficasse constrangido com o escândalo da alegria, absolutamente fora de um contexto vitorioso. Mas o cantor não foi prepotente com a vida, não tingiu um ponto final na fé, não confundiu vocação com ambição, não estacionou a voz na vaidade, não se apequenou com as adversidades, entendeu a escassa procura como uma reestreia.
Você pode encarar o problema como um fim ou como uma oportunidade, pode aceitar a solidão como um fracasso ou um novo nascimento, pode precipitar o fiasco ou transformá-lo em esperança.
Humildade é e sempre será otimismo.
O FIM DO SECADOR
Foto de Gilberto Perin
Quando a situação está tão ruim que nem torcer contra o rival funciona. Você não tem como debochar e somente se cala. Você não tem como zoar e passa a ser repentinamente educado e ainda diz para o inimigo que ele mereceu ganhar. Não encontra mais nenhum motivo para galhofa. A CBF vira STJD e fica refém mais da atuação dos advogados e do tapetão do que aquilo que acontece no tapete verde do campo.
Ausenta-se do debate, pois a distância entre o triunfo e o abismo se mostra inalcançável. As piadas de secação tornam-se velhas e não existe uma argumentação razoável para fazer gozação.
O fim do secador dentro do torcedor é o desinteresse completo pelo futebol. Você perde com o próprio time e também perde com qualquer time que enfrente o adversário direto de sua cidade. Está órfão da sorte e descrente dos deuses da bola.
Como colorado, a depressão me espera. Já cansei de torcer para o meu time e também para o Atlético, o Coritiba, o Figueirense, o América... Só acumulo derrotas. Dependo mais de resultados paralelos do que do próprio desempenho do meu clube. Eu sou obrigado a assistir três partidas ao mesmo tempo para rezar contra o descenso. Não há superstição que vingue. Não há concentração que se mantenha firme diante de tantos focos. É necessário acertar a loteria esportiva todo o final de semana.
E ainda sofro o extremo da aflição de testemunhar o Grêmio campeão da Copa do Brasil enquanto corro o sério risco de jogar a Série B pela primeira vez. É o ano de pesadelo dos colorados. O Apocalipse do manto vermelho. O Juízo Final dos sacis. Já estou deixando de beber porque não vejo pretexto para comemorar, já estou me enfurnando nos assuntos familiares e domésticos porque não tenho com o que vibrar no estádio, a minha mulher e os meus filhos já me perguntam se não vou dar uma volta e sair um pouco de casa, não me aguentam colado 24h.
Saudade da flauta gremista. O silêncio dos outros é puro escárnio. Não encontram sequer motivo para brincar com o meu coração morto. O respeito é apenas pena.
quarta-feira, 7 de dezembro de 2016
DESEJO, DESPEJO
Arte de Eduardo Nasi
Não suporto mais ouvir a sua voz. Não suporto mais que me olhe. Não suporto mais que segure a minha mão.
Não suporto que mexa no meu cabelo quando recém ajeitei a franja.
Você me irrita profundamente, insanamente.
Você me deixa louca, possessa, como ninguém jamais me tornou assim.
Não me reconheço mais.
Não suporto mais que concorde comigo por preguiça.
Não suporto mais que coloque suas músicas alto.
Não suporto que largue as roupas no chão.
Não suporto que finja arrumar a cama esticando o edredom até o travesseiro.
Não suporto que compre o que não precisava no mercado e esqueça o que realmente pedi.
Não suporto mais lhe ver sentado no sofá trocando de canal sem escolher um único programa.
Não suporto a sua falta de iniciativa para sair.
Não suporto você andando de cueca pela sala.
Não suporto a sua indecisão para definir o almoço e a janta.
Não suporto as suas promessas em aberto.
Não suporto lembrar de suas promessas vencidas.
Não suporto mais conversar com a sua mãe sempre me pedindo paciência.
Não suporto ter paciência.
Não suporto mais explicar o que estou fazendo.
Não suporto mais interromper a leitura para comentar se o livro é bom.
Não suporto mais dividir os meus amigos e repartir a felicidade que era unicamente minha.
Não suporto mais você cortando as unhas em cima da mesa.
Não suporto os frascos abertos no banheiro, a pasta espremida no meio, a gilete suja na pia.
Não suporto mais a sua generosidade quando tem culpa, o seu orgulho quando erra.
Não suporto mais a sua mania de perder o celular dentro de casa, pondo-me a ligar para achá-lo.
Não suporto mais a sua educação na briga; soa falsa, soa cínica.
Não suporto mais você em minha frente, falando em minhas costas, dormindo ao meu lado.
A implicância é uma atenção extrema. Eu lhe desejava tanto, e hoje eu pretendo somente desaparecer, não existir mais em você, sumir dentro da caixinha do nome.
Quero gritar, socar seu rosto, bater em seu peito até cansar os braços e despertar a vontade de abraçar, beijar chorando, pedindo desculpa pela paixão desajeitada da nossa convivência.
Talvez a aversão seja uma outra versão do amor. Talvez eu entenda só agora o que é o casamento para tentar de novo.
terça-feira, 6 de dezembro de 2016
TEMPO EMOCIONAL
Quantas décadas passaram entre 29 de novembro, madrugada da tragédia da Chapecoense, e 30 de novembro? Em uma única data, correram quantas semanas?
Foi um pesar violento, que 24 horas e 365 dias não fizeram mais nenhum sentido para abarcar o que transcorreu na intimidade da existência de cada um.
Tudo o que aconteceu em outubro e setembro parece que está longe demais. Eu tenho que me esforçar para lembrar. Sinto que troquei de ano várias vezes em um ano, que me despedi das folhas do calendário em solitária noite.
O choque, o susto, a calamidade inspiram a reprisar o mesmo ato, de tal modo que você vive uma lembrança eternamente. Você recua e avança na recordação sem força para alterar o imponderável. O destino impacta a sua estabilidade, destrói o seu romantismo e nada mais é fixo e imutável.
O sofrimento nos deixa antigos. A dor nos envelhece rapidamente.
O tempo emocional se sobrepõe ao tempo físico. O tempo emocional é o que vigora nas palavras e na realidade sensível. É um fim de uma crença que chega antes do fim do ano, é o Réveillon silencioso de um ideal sem espocar de fogos nem brindes.
Não mudamos de idade, não mudamos a aparência, mas somos outros por dentro, amadurecemos forçosamente. É quando somos abalados por uma tristeza tão grande que a sensação é de que atravessamos a metade de um século em um piscar de olhos. Pode ser um desemprego ou um término de um romance, é algo que não esperávamos e que consome a nossa paz e rotina, que devora a nossa tranquilidade e não tem como fingir indiferença.
Choramos, acumulamos insônia e nos encolhemos no sofá em posição fetal assistindo ao noticiário, com os olhos parados naquilo que é passado e que também não se esgotou como futuro.
Quem já não perdeu um familiar e não acordou como se estivesse sonhando, não crendo, com a impressão do impossível experimentado?
Quem já não se separou de alguém que amava muito e não atravessou a mais funda desilusão? Toda renúncia entorta os relógios e adoece a solidão.
O tempo emocional sempre manda quando transformamos a nossa maneira de pensar a vida, quando a ingenuidade é assassinada, quando o nosso riso é mais difícil de sair dos dentes para os lábios.
Com a morte de Tancredo Neves abandonei a infância, com a morte de Ayrton Senna deixei a adolescência, com a morte dos Mamonas Assassinas ingressei na maturidade. A queda do avião com o time da Chapecoense talvez seja o meu portal para a velhice. Já seguro o guarda-chuva como uma bengala, apoiando o peso do país em meus ombros.
Publicada no jornal Zero Hora
Coluna p.4
6/12/2016
segunda-feira, 5 de dezembro de 2016
DOCE LAQUÊ
Nunca entendi a minha atração por salão de beleza.
Havia um mistério na neblina das escovas e dos secadores trabalhando, no adocicado do vento daquele refúgio de beleza.
Desde pequeno, quando acompanhava minha mãe, vinha a vontade irresistível de rondar as cadeiras na frente do espelho, onde as senhoras esperavam alegremente com seus bobes e revistas de fofocas. Não me entediava como a maioria das crianças, não queria retornar rapidamente aos brinquedos de casa. Agradecia a demora e o atraso do almoço. Nem a fome me incomodava.
O ambiente me hipnotizava, acreditava que fosse pelo brilho das tranças e pela altura surpreendente dos andares das cabeças femininas, mas abandonei a lembrança na caixinha de incompreensões da vida e segui em frente.
Quando a minha mulher apertou o spray fixador em seus cabelos antes de sairmos para uma formatura, eu quase tive um colapso de felicidade.
Discerni o feitiço: laquê. O que me inebriava no espaço dos cabeleireiros era o olor do laquê. As borrifadas de 15 centímetros de distância criavam uma aurora boreal em minha respiração.
Sou apaixonado por laquê. Melhor que incenso e aromatizador. Melhor que os toldos dos jacarandás na primavera porto-alegrense.
Por que não trocaram o nebulizador pelo laquê para curar a minha asma? Por que não me dispensaram das aulas de natação e das maçãs diárias?
Gastaria um laquê para perfumar a residência. Jogaria um laquê em cima de minhas roupas.
A vontade é ser um traficante de laquê. Viajar para a fronteira de Uruguaiana ou Santana do Livramento contrabandear laquê. Desviar todo o salário na compra de caixas de laquê. Forrar as prateleiras do banheiro de laquê.
Escrevo compulsivamente laquê, repito laquê freneticamente, em pleno turbilhão de viciado.
No salão, o laquê paralisava os penteados das mulheres e também o meu olfato. Eu planava no ar como um beija-flor ou Dadá Maravilha.
Pena que descobri tarde demais para um reposicionamento de carreira. Eu me daria bem salvando as tranças e os coques das clientes. Imagine o que seriam os meus penteados?
BASE OU TAMPA
Arte de Eduardo Nasi
No relacionamento temos pressa. A ânsia de acertar e ser compreendido. A ânsia do encaixe e de apaziguar as diferenças. A ânsia de espantar antigos problemas de convivência e afugentar implicâncias. A ânsia de ser feliz e não pensar mais no assunto. Às vezes o namoro e o casamento são compreendidos equivocadamente como abandono dos problemas amorosos e não são admitidas as divergências naturais de quem precisa se completar devagar.
Uma imagem interessante é o modo como a pessoa se movimenta pela casa.
Há aqueles que pegam o pote pela tampa, nem sempre a tampa está devidamente fechada, e o risco de cair e quebrar é imenso. O impulso é condenar o parceiro ou parceira por não ter enroscado com cuidado o frasco, não percebendo que a fragilidade vem do próprio costume de impor pressa na rotina.
Há um segundo grupo, temerário, que antevê a queda e segura o pote pela base, jamais dependendo dos demais. Não repassa a responsabilidade, muito menos gera discussões indevidas. Perde tempo olhando e manuseando o objeto com firmeza.
Diferente daquele que alça pela tampa e que, no afã de economizar tempo, perde grande parte do seu dia procurando culpados pelos seus atos.
A tampa é também aparência. Entra-se num romance sem uma base de amor próprio e calma para oferecer. Tudo é julgado instantaneamente e executado sumariamente, no atropelo do presente. Quebra-se o laço com muita facilidade já que não há a perícia da independência e da solidão para desembaraçar o que é de si daquilo que é da companhia. Ocorre uma simbiose prejudicial de identidades, longe de uma reserva emocional e de uma poupança que deve se levar para um relacionamento para não sobrecarregar o outro.
Casamento e namoro não são feitos somente daquilo que você vive com quem ama, mas tudo o que soube viver antes de amar e carregou para dentro da relação.
terça-feira, 29 de novembro de 2016
SOMOS TODOS CHAPECOENSE
Divulgação
Quando uma cidade some e o sangue se transforma em vento?
Quando os relâmpagos emudecem. Quando as estrelas ficam envergonhadas de brilhar e o sol de aparecer.
Quando uma cidade perde as suas residências dentro de um avião? Porque cada homem era uma casa, uma família, uma esperança.
A queda da aeronave na Colômbia que levava o time do Chapecoense matou toda Chapecó na madrugada desta terça-feira (29/11). Porque Chapecó era o Chapecoense. Nunca vi uma torcida como aquela: pais, mães e filhos levantando bandeiras na Arena Condá.
As ruas se esvaziavam para ouvir melhor o coração do estádio.
Uma equipe movida pela alegria dos moradores que incentivaram com a loucura infantil do bairrismo e da gincana. Um viveiro de vozes, uma caixa de ressonância de gritos.
Uma equipe que veio de baixo, da mais simples e monocromática chuteira, da pobreza da grama em 43 anos de história, que subiu da série D para A em apenas seis anos em 2013, campeão catarinense por cinco vezes, que se manteve com prestígio na elite do futebol brasileiro e que disputaria a final da Copa Sul Americana na próxima quarta, o que seria seu maior título. Novatos no triunfo, mas veteranos na resiliência.
22 mil pessoas nas arquibancadas eram 210 mil pessoas na cidade. 74 mortos são 210 mil chapecoenses.
Não duvido que um país inteiro não tenha definhado junto em Rionegro, perto de Medellín, na Colômbia.
Jamais contaremos os mortos da tragédia. Jamais saberemos ao certo o número de mortos. Somos hoje todos desaparecidos.
PASTA DE COURO
É cada vez mais comum executivos com mochila. Homens engravatados carregando uma mochila, como se estivessem indo ou voltando da escola. Adultos feitos, mas com um toque infantil atrás das costas, tal asas de querubins.
Não levam nada nos bolsos da calça e do casaco, tudo segue nos ombros: documentos, celular, garrafinha d'água e algum agasalho na hipótese de uma esticada do emprego para a noite.
A mochila é o equivalente à bolsa feminina. Os varões se renderam à prevenção de um dia fora de casa.
E também é a herança de uma adolescência que não termina mais.
São outros homens de outros tempos. Não mais como os antigos funcionários de bancos, empresários e corretores que andavam com uma pasta de couro e precisavam de uma mesa inteira para abrir as suas verdades.
A pasta de couro está extinta, esta que já foi um grande símbolo da virilidade financeira. Quem tinha emprego importante exibia a sua pasta preta ou marrom. Ela era um cofre com senha e chave, havia espaço para papéis e canetas especiais. Muitas continham um fundo falso para ocultar documentos preciosos.
Os filhos esperavam o momento para espiar o seu conteúdo. Ficavam às voltas da chegada paterna para ver se ele abriria distraidamente a pasta. Sempre foi emocionante ouvir o claque da abertura dos dois lados. O suspense alterava o meu batimento cardíaco.
Lembro da seriedade do meu paizinho. Ele largava o pacote dos pãezinhos em cima do sofá para nos abraçar e eu me esforçava para me livrar dos beijos dele e acompanhar os movimentos da pequena maleta.
Além da pasta, ele pertencia ao time das carteiras de mão. Quando não estava a trabalho, caminhava segurando uma carteira imensa, algo como uma pochete longe do cinto. Naquela época, o cheque mandava no pagamento das contas.
Ninguém circulava com cartões de crédito, o que vigorava era o talão com espaço nobre na carteira, que permanecia esticado com duas tiras prendendo as suas pontas.
Não acho que o passado fosse melhor, eu apenas não consigo olhar qualquer coisa sem comparar. Ver é automaticamente retornar ao passado. Talvez esteja sempre comparando o que sou e não sou.
Ou comprei todas as lembranças de minha infância no fiado e só agora, depois dos 40 anos, vou pagando.
Não levam nada nos bolsos da calça e do casaco, tudo segue nos ombros: documentos, celular, garrafinha d'água e algum agasalho na hipótese de uma esticada do emprego para a noite.
A mochila é o equivalente à bolsa feminina. Os varões se renderam à prevenção de um dia fora de casa.
E também é a herança de uma adolescência que não termina mais.
São outros homens de outros tempos. Não mais como os antigos funcionários de bancos, empresários e corretores que andavam com uma pasta de couro e precisavam de uma mesa inteira para abrir as suas verdades.
A pasta de couro está extinta, esta que já foi um grande símbolo da virilidade financeira. Quem tinha emprego importante exibia a sua pasta preta ou marrom. Ela era um cofre com senha e chave, havia espaço para papéis e canetas especiais. Muitas continham um fundo falso para ocultar documentos preciosos.
Os filhos esperavam o momento para espiar o seu conteúdo. Ficavam às voltas da chegada paterna para ver se ele abriria distraidamente a pasta. Sempre foi emocionante ouvir o claque da abertura dos dois lados. O suspense alterava o meu batimento cardíaco.
Lembro da seriedade do meu paizinho. Ele largava o pacote dos pãezinhos em cima do sofá para nos abraçar e eu me esforçava para me livrar dos beijos dele e acompanhar os movimentos da pequena maleta.
Além da pasta, ele pertencia ao time das carteiras de mão. Quando não estava a trabalho, caminhava segurando uma carteira imensa, algo como uma pochete longe do cinto. Naquela época, o cheque mandava no pagamento das contas.
Ninguém circulava com cartões de crédito, o que vigorava era o talão com espaço nobre na carteira, que permanecia esticado com duas tiras prendendo as suas pontas.
Não acho que o passado fosse melhor, eu apenas não consigo olhar qualquer coisa sem comparar. Ver é automaticamente retornar ao passado. Talvez esteja sempre comparando o que sou e não sou.
Ou comprei todas as lembranças de minha infância no fiado e só agora, depois dos 40 anos, vou pagando.
segunda-feira, 28 de novembro de 2016
O QUÊ?
A velhice vem aos goles. Nunca se bebe o tempo num único sorvo.
A visão é a primeira a não corresponder inteiramente aos seus comandos. Você enxerga com dificuldade, mas não aceita e adivinha mais do que reconhece com rapidez. Assim tem os seus primeiros constrangimentos sociais. O neto exibe as fotos da visita ao
zoológico e você comenta: “Que araras azuis bonitas!”.
E o neto retruca que não são araras, mas macacos. Você acabou de demonstrar que é um analfabeto ecológico para a nova geração da família.
Sua teimosia em deduzir no lugar de enxergar vai lhe colocando em situações incômodas, como a de embarcar no ônibus errado, estacionar em vagas de portadores de necessidades especiais ou de realizar perguntas óbvias.
Depois é a memória que fraqueja e rasteja com esforço. Começa a brincar do jogo da forca com as lembranças.
O bonequinho recebe contornos a cada lapso e sempre termina com a cabeça a prêmio.
As palavras são apenas figuras. Ou seja, aparece a figura sem a palavra, o raciocínio é próprio de livro colorido para bebês.
O que lembrava instantaneamente custa a vir à tona. Sem wi-fi das ideias, retrocede à internet discada do pensamento. Esquece primeiro o nome das pessoas, os filhos são as cobaias prediletas. Troca os nomes dos guris, Pedro chama de Felipe, Felipe de Pedro e não acerta mais quem se aproxima. No início, dedica horas se explicando, argumenta que o filho confundido deve estar pensando em você, mas a
recorrência faz com que perca a credibilidade.
Em seguida, erra o nome trocando o sexo dos filhos, Felipe chama de Gabriela, Gabriela chama de Pedro, a confusão está instalada. Resta rir e levar os acidentes de gênero na brincadeira.
A caduquice cobra os juros. O pior se avizinha. Após falhar o nome das pessoas e não conciliar rosto com legenda, passa a tropeçar na identificação dos objetos. Liquidificador chama de secador, micro-ondas de máquina de lavar, televisão de aspirador de pó, até se contentar com o genérico Coisa: – “Liga a coisa!”, “Alcança a coisa!”, “Onde está a coisa?”.
Por fim, apaga o nome das ruas, das praças, das cidades, do país, até se tornar um cidadão do mundo. Do outro lado do mundo.
Publicado no Caderno Donna de Zero Hora
27.11.2016
Coluna Semanal
A visão é a primeira a não corresponder inteiramente aos seus comandos. Você enxerga com dificuldade, mas não aceita e adivinha mais do que reconhece com rapidez. Assim tem os seus primeiros constrangimentos sociais. O neto exibe as fotos da visita ao
zoológico e você comenta: “Que araras azuis bonitas!”.
E o neto retruca que não são araras, mas macacos. Você acabou de demonstrar que é um analfabeto ecológico para a nova geração da família.
Sua teimosia em deduzir no lugar de enxergar vai lhe colocando em situações incômodas, como a de embarcar no ônibus errado, estacionar em vagas de portadores de necessidades especiais ou de realizar perguntas óbvias.
Depois é a memória que fraqueja e rasteja com esforço. Começa a brincar do jogo da forca com as lembranças.
O bonequinho recebe contornos a cada lapso e sempre termina com a cabeça a prêmio.
As palavras são apenas figuras. Ou seja, aparece a figura sem a palavra, o raciocínio é próprio de livro colorido para bebês.
O que lembrava instantaneamente custa a vir à tona. Sem wi-fi das ideias, retrocede à internet discada do pensamento. Esquece primeiro o nome das pessoas, os filhos são as cobaias prediletas. Troca os nomes dos guris, Pedro chama de Felipe, Felipe de Pedro e não acerta mais quem se aproxima. No início, dedica horas se explicando, argumenta que o filho confundido deve estar pensando em você, mas a
recorrência faz com que perca a credibilidade.
Em seguida, erra o nome trocando o sexo dos filhos, Felipe chama de Gabriela, Gabriela chama de Pedro, a confusão está instalada. Resta rir e levar os acidentes de gênero na brincadeira.
A caduquice cobra os juros. O pior se avizinha. Após falhar o nome das pessoas e não conciliar rosto com legenda, passa a tropeçar na identificação dos objetos. Liquidificador chama de secador, micro-ondas de máquina de lavar, televisão de aspirador de pó, até se contentar com o genérico Coisa: – “Liga a coisa!”, “Alcança a coisa!”, “Onde está a coisa?”.
Por fim, apaga o nome das ruas, das praças, das cidades, do país, até se tornar um cidadão do mundo. Do outro lado do mundo.
Publicado no Caderno Donna de Zero Hora
27.11.2016
Coluna Semanal
sábado, 26 de novembro de 2016
AMOR NÃO TEM DUAS CARAS
Texto Fabrício Carpinejar
Foto de Gilberto Perin
Amor virtual é também real.
Se você passa das fronteiras do verbo está traindo. Cantadas são traições. Não há desconto. Deslealdade é a infidelidade da palavra.
O que você imagina é o que você pensa e é o que você acredita. Insinuar é suspender o poder dos limites, profanar os segredos do casal e pagar o preço da confusão. Quem não se declara comprometido imediatamente está interessado em mentir.
Não existe ingenuidade retroativa.
Quem explica depois é que não foi intencionalmente claro antes.
Ninguém se apaixona no primeiro contato. Se aconteceu uma paixão fora do casamento é que permitiu inúmeras oportunidades de aproximação e sabia o que estava fazendo. Quantas chances teve de dizer não e ficou no talvez? Quantas cenas para recusar o envolvimento e seguiu adiante?
A casualidade é premeditada.
Por isso, diante da facilidade para estabelecer contatos, o romance moderno não tem mais o privilégio de duas caras.
De nada adianta sussurrar as palavras mais doces e surpreendentes a sós e não repeti-las nas redes sociais. Jurar casamento e descrever projetos dependem, ao mesmo tempo, da visibilidade cotidiana e do olhar de testemunhas.
O que você confessa a dois também precisa ser cantado. É a única garantia de autenticidade que se tem para não esbarrar em cafajestes e mitômanos.
Atualmente o amor se desdobra em dois movimentos simultâneos e complementares: amar para si e não se envergonhar de amar em nenhuma situação pública.
Nem é questão de preferir a privacidade. A defesa da relação está acima da retração e da timidez.
De nada adianta prometer dedicação eterna frente a frente e não mudar o status do facebook. É falso se comprometer privadamente e não contar com a capacidade de repetir a frase para os outros. Posts de amor devem conviver com os bilhetes dentro de casa.
Aquele que não se revela nos meios virtuais quer manter uma vida dupla. Cultiva paixões silenciosas, não se entrega de verdade e deixa a porta aberta para pendências e flertes.
Amor hoje ou é inteiro ou é falso.
Coluna Semanal
O Globo
25.11.2016
quarta-feira, 23 de novembro de 2016
INFELICIDADE É
Texto Fabrício Carpinejar
Arte de Eduardo Nasi
Para ser infeliz, faça somente o que faz você feliz.
Se não tem nada no seu dia que não gosta será uma criança mimada, será um adolescente tirano, será um adulto estupidamente autoritário.
É preciso realizar aquilo que também não ama para ser diferente e abrir espaço dentro de si à compaixão e à tolerância.
Exercer unicamente o prazer consolida o egoísmo.
Guarde um pouco de antipatia em suas obrigações. Mantenha tarefas desagradáveis no trabalho e em casa. Assim não banalizará os momentos bons. Assim valorizará a resiliência diante dos momentos ruins.
Só suspira quem atravessa o desgosto. O suspiro é o riso do esforço.
O que seria do final de semana se estivesse de folga também de segunda a sexta? Como louvaria o domingo se não houvesse uma segunda-feira para detestar?
Arrume a cama mesmo sem nenhuma vontade, lave a louça mesmo bufando, estenda a roupa mesmo detestando a ordem dos prendedores.
Atenda aos chatos com simpatia, suporte os lentos com generosidade. A humildade depende do silêncio da superação.
Não gostar de algo é ter ainda algo para aprender, é uma reserva de sabedoria. Não deixe de fazer. Pode mudar e apreciar no futuro. Pode acabar transformado pela sinceridade da saudade.
Prove tudo o que não lhe agrada para não se privar de viver. Adore os defeitos para não se envaidecer das virtudes.
Repetir a felicidade é empobrecê-la. Felicidade é para ser uma exceção, não a regra. Quem só é feliz no fim é triste, pois não muda de estado de espírito para reconhecer o contentamento.
Publicado em Portal vida Breve
Coluna Semanal
23.11
terça-feira, 22 de novembro de 2016
MARAVILHAMENTO
Jurava que era um exagero romântico, uma idealização, uma declaração simpática e educada: aqueles que casavam e apregoavam que sofreram um baque olhando a noiva chegando.
Mas eu estava no altar e testemunhei. Eu casei no religioso e percebi a corrente sanguínea virando corrente elétrica. Deixei de ser homem por um momento para ser um relâmpago.
Quando a porta alta da igreja se abriu e enxerguei Beatriz de noiva, lindamente de branco, fui hipnotizado. Empalideci. Experimentava aquilo que os santos chamam de transcendência.
Nunca vi nada mais belo. Nunca. Não estava preparado e não tinha como pedir ajuda para ninguém. Era mais do que a emoção de uma criança mirando o mar pela primeira vez ou de um adolescente com a residência só para si, sem os pais durante o final de semana. Vinha, aos borbotões, todas as emoções inéditas juntas de independência correndo pela boca e eu balbuciava, não emitia nenhum som legível.
Beatriz caminhava, exuberante, o longo corredor vermelho. Eu a desposava lentamente, passo a passo miúdo que ela dava. Eu me fixava em seu rosto como quem se posiciona diante de um quadro do pintor holandês Johannes Vermeer e não encontra ângulo que diminua a beleza.
Eu ia entregando para ela o que fui e o que poderia ser. Senti tanta devoção por alguém que as minhas pernas tremiam e os meus braços paralisaram. O arrepio passava da pele para as roupas.
Felicidade não é ter controle, é perder o controle a dois. Não sorria para os outros, não fingia felicidade e segurança, eu ria de honesto maravilhamento, como um louco conversando com a lua.
Beatriz estonteante com o busto cravejado de pedras, com o véu deposto, arrastando a longa cauda de ondas. Uma sereia cantando em silêncio. Uma sereia voando. A mulher de todos os meus dias e todas as minhas noites.
Não acreditava acreditando, atingido plenamente pela fé. Eu olhava com os olhos da fé, não com os olhos do cotidiano e da objetividade. Abriu-se uma janela emperrada da alma naquele instante e pude colher os frutos dos galhos mais altos da árvore da vida.
Havia casado com ela no civil, mas nada se compara a casar diante de Deus. Desculpe os céticos e os ateus, é uma comoção tão violenta que não suportaria experimentá-la duas vezes.
Se quem morre tem um flashback do que viveu, quem casa recorda em minutos tudo o que amou na existência.
Eu dizia sim sim sim sim sim a cada movimento de proximidade da noiva. Jamais gritei tanto sim dentro de mim.
Publicado no Jornal Zero Hora
22.11.2016
Coluna Semanal
domingo, 20 de novembro de 2016
MÁFIA SICILIANA
Pretende se defender de um canalha?
Simples, elementar, ele aparenta ser um homem do lar, que cultiva temperos em horta e cheira rolhas de vinho, mas vive na rua, não distingue a rúcula do radici e apenas come fora.
A propaganda do primeiro encontro é redondamente enganosa.
Receberá você no apartamento espaçoso, brilhando, com amplo sofá e vista para o oceano de prédios, entretanto o local de orgulho doméstico é um matadouro higienizado, acabou de se livrar dos resquícios da última conquista. Tudo está arrumado e nos trinques como se fosse um maníaco por limpeza, porém não se engane, pagou faxineira para fingir status de rapaz sério e dedicado.
Ele fará questão de abrir a porta de avental e mangas dobradas da camisa xadrez, testa suada e cabelo caprichosamente desleixado.
Estará ocupado em lhe agradar e demonstrar os dotes no fogão. Fechará a porta da cozinha para intensificar os segredos e a surpresa. Dirá que é uma receita familiar, que não expõe para qualquer um, que realmente é uma homenagem. Colocará jazz de música ambiente, apesar de vibrar e conhecer de cor as letras do sertanejo universitário.
Os livros de arte em cima da mesa são de fachada, não vê diferença em Jackson Pollock e no desenho de seu sobrinho.
Só que todos os canalhas cometem um erro. Preparam um único prato: risoto de limão siciliano. Fica como um padrão de psicopatia amorosa. É uma marca da maldade, talvez um pré-requisito do sindicato.
Sugerem que cozinham bem mais do que aquele arroz empapado, a questão é que não avançam no livro de receitas.
Não entendo o motivo: todo canalha faz risoto de limão siciliano. Por que não estrogonofe? Por que não uma massa de camarão? Por que não um salmão?
Sempre risoto de limão siciliano. Como uma assinatura, um código da cafajestada.
Levam em consideração que a mulher não resiste, que a combinação não agride o regime, além de servir como preliminar para o sexo (não provoca mau hálito).
Cheiro de alecrim fresco e limão no ar é cheiro de crime, saia correndo. Não espere o dia seguinte para descobrir que ele não telefonará.
Publicado no Caderno Donna de Zero Hora
20.11.2016
Coluna Semanal
Simples, elementar, ele aparenta ser um homem do lar, que cultiva temperos em horta e cheira rolhas de vinho, mas vive na rua, não distingue a rúcula do radici e apenas come fora.
A propaganda do primeiro encontro é redondamente enganosa.
Receberá você no apartamento espaçoso, brilhando, com amplo sofá e vista para o oceano de prédios, entretanto o local de orgulho doméstico é um matadouro higienizado, acabou de se livrar dos resquícios da última conquista. Tudo está arrumado e nos trinques como se fosse um maníaco por limpeza, porém não se engane, pagou faxineira para fingir status de rapaz sério e dedicado.
Ele fará questão de abrir a porta de avental e mangas dobradas da camisa xadrez, testa suada e cabelo caprichosamente desleixado.
Estará ocupado em lhe agradar e demonstrar os dotes no fogão. Fechará a porta da cozinha para intensificar os segredos e a surpresa. Dirá que é uma receita familiar, que não expõe para qualquer um, que realmente é uma homenagem. Colocará jazz de música ambiente, apesar de vibrar e conhecer de cor as letras do sertanejo universitário.
Os livros de arte em cima da mesa são de fachada, não vê diferença em Jackson Pollock e no desenho de seu sobrinho.
Só que todos os canalhas cometem um erro. Preparam um único prato: risoto de limão siciliano. Fica como um padrão de psicopatia amorosa. É uma marca da maldade, talvez um pré-requisito do sindicato.
Sugerem que cozinham bem mais do que aquele arroz empapado, a questão é que não avançam no livro de receitas.
Não entendo o motivo: todo canalha faz risoto de limão siciliano. Por que não estrogonofe? Por que não uma massa de camarão? Por que não um salmão?
Sempre risoto de limão siciliano. Como uma assinatura, um código da cafajestada.
Levam em consideração que a mulher não resiste, que a combinação não agride o regime, além de servir como preliminar para o sexo (não provoca mau hálito).
Cheiro de alecrim fresco e limão no ar é cheiro de crime, saia correndo. Não espere o dia seguinte para descobrir que ele não telefonará.
Publicado no Caderno Donna de Zero Hora
20.11.2016
Coluna Semanal
sexta-feira, 18 de novembro de 2016
A ALEGRIA DA NOIVA É CATASTRÓFICA
Texto Fabrício Carpinejar
Foto Gilberto Perin
Se nascer uma espinha, se quebrar a unha, se trincar um dente, se gripar de repente, se não parar de tossir, se não dormir a noite inteira, se terminar enjoada, se começar a cair o cabelo, se inchar o dedo da aliança, se chorar e borrar a maquiagem, se rasgar o véu, se derrubarem algo em meu vestido, se o salto quebrar, se tropeçar no altar, se ninguém vier, se extrapolar a cota de convidados, se chover no casamento, se o noivo beber demais, se eu falar bobagem, se os fornecedores atrasarem a entrega, se a família brigar no dia, se a música não vingar, se me atrasar, se as palavras falharam, se esquecer os nomes dos amigos, se o nervosismo não me abandonar, se tiver um ataque de riso, se enlouquecer, se a palpitação atrapalhar os passos; e se for feliz pela vida inteira, imagina!, o que farei de mim?
A felicidade dói muito mais do que qualquer tristeza. A felicidade dói por todo o corpo.
O medo é felicidade chegando, o medo é felicidade ficando para sempre.
Publicado no Blog do Jornal O Globo
Coluna Semanal
18.11.2016
quarta-feira, 16 de novembro de 2016
FIM DA RELAÇÃO NAS REDES SOCIAIS
Texto Fabrício Carpinejar
Arte Eduardo Nasi
O namoro tem leis cibernéticas, menos explícitas do que alterar o status no Facebook.
Se você recebe um e-mail de seu namorado ou namorada sem assunto é término da relação. Lascou. É tanto ódio que a pessoa nem colocou um tema para a mensagem. A raiva sofre de pressa e indecisão.
Ou como intitular uma mensagem nesta hora sem desestimular a leitura? Ao pôr “Separação” ou “Idiota” ou “Não me procure mais”, o destinatário nem precisa ler para definir o conteúdo. Está literalmente excluído. Pode apenas descobrir o motivo, e nada mais.
Cartas sem nenhum aviso são as mais perigosas.
O WhatsApp não foge à regra. Destinado à peça teatral ou ao roteiro de cinema da vida real, quando carece de travessão, algo trágico aconteceu. Textão é sinônimo de ruptura. É alguém mandar um texto imenso e ininterrupto num lugar feito para conversas miúdas significa testamento. Você nem vê o outro digitando, de repente surge um calhamaço explicando por a e mais b o motivo do término do romance. Óbvio que a enxurrada de ofensas saiu do bloco de notas e foi copiada, recortada e colada ali. Toda a passionalidade escrita é premeditada. Tentará responder, mas será bloqueado. A foto do interlocutor desaparecerá antes de entender o que está acontecendo, para aumentar o drama e o castigo.
Monólogo é o bilhete de suicida do casal. Mais de duas páginas é um caminho sem volta. Não terá como reverter o quadro e buscar a reconciliação. O ressentimento transformou o desencanto em peça de inquérito.
Quem se se separa tampouco usa emojis. Não está disposto a brincar. É letra sobre letra, desprovida de recreios e distrações, como bula de remédio. Não há intenção de descontrair com um revólver ou uma mão rezando.
Publicado no Portal Vida Breve
Coluna Semanal
16.11.2016
domingo, 13 de novembro de 2016
FRIORENTA
Tem gente que fica irritada com fome ou com sono. Sei que está ligado a flutuações dos níveis de serotonina no cérebro, fenômeno que ocorre frequentemente quando você está de estômago vazio ou sem dormir.
A minha mulher tem um problema particular com queda de temperatura. Mineira, solar, primaveril, acostumada a tempos amenos, muda de temperamento se sofre com o frio. Fica estressada. Baixa a resistência. Enfraquece com ares juninos.
É um arrepio que cresce em calafrio que desemboca em friagem.
Sério! É encrespar o vento que ela torna-se ranzinza.
Fui percebendo aos poucos. Demorei para registrar a sua transformação.
É Porto Alegre atingir 12 graus que começa o sufoco. Ela que é doce e compreensiva passa a demonstrar uma impaciência incomum. Seus olhos congelam.
Ela não admite mais nenhuma brincadeira, nenhuma selfie, nenhuma palavra amorosa. Endurece como uma déspota. Dita regras, censura os meus hábitos, não quer ninguém perto.
Nem adianta fingir calor com camiseta de física e bermuda. Também não serve como atenuante tomar banho frio e reclamar do suor. Ela não cai mais em meus truques baratos de ilusionismo climático.
A gentileza tampouco sensibiliza. Procuro agradá-la oferecendo um casaco nos ombros ou uma coberta nas pernas e ela se irrita ainda mais com o excesso de ternura.
O problema de quem quer ajudar alguém irritado é que, ao temer a reação, perde a pose natural, exagera no carinho e bajula. Eu sinto que ela está nervosa e me aproximo com veemência quando o certo era me afastar e respeitar. Vejo que acontece o medo da contrariedade, que me impele a intensificar o meu esforço de ajudá-la e também a minha frustração de confortá-la.
O frio não é uma briga dela comigo. Mas parece que tenho culpa por ser gaúcho e trazê-la para cá e me responsabilizo por sua fragilidade, seja condenando, seja paparicando.
Não deveria sofrer junto. Ela simplesmente não nasceu para o nosso inverno, muito menos para as madrugadas gélidas e de neblina da Serra.
O que me resta fazer, dentro dos meus limites, é deixar o controle remoto do ar condicionado sob o seu domínio. Só seguro no momento de trocar as pilhas.
Isso que ela ainda não viu o que é o calor em Porto Alegre.
Publicado no Jornal Zero Hora - Caderno Donna
Coluna Semanal
13.11.2016
A minha mulher tem um problema particular com queda de temperatura. Mineira, solar, primaveril, acostumada a tempos amenos, muda de temperamento se sofre com o frio. Fica estressada. Baixa a resistência. Enfraquece com ares juninos.
É um arrepio que cresce em calafrio que desemboca em friagem.
Sério! É encrespar o vento que ela torna-se ranzinza.
Fui percebendo aos poucos. Demorei para registrar a sua transformação.
É Porto Alegre atingir 12 graus que começa o sufoco. Ela que é doce e compreensiva passa a demonstrar uma impaciência incomum. Seus olhos congelam.
Ela não admite mais nenhuma brincadeira, nenhuma selfie, nenhuma palavra amorosa. Endurece como uma déspota. Dita regras, censura os meus hábitos, não quer ninguém perto.
Nem adianta fingir calor com camiseta de física e bermuda. Também não serve como atenuante tomar banho frio e reclamar do suor. Ela não cai mais em meus truques baratos de ilusionismo climático.
A gentileza tampouco sensibiliza. Procuro agradá-la oferecendo um casaco nos ombros ou uma coberta nas pernas e ela se irrita ainda mais com o excesso de ternura.
O problema de quem quer ajudar alguém irritado é que, ao temer a reação, perde a pose natural, exagera no carinho e bajula. Eu sinto que ela está nervosa e me aproximo com veemência quando o certo era me afastar e respeitar. Vejo que acontece o medo da contrariedade, que me impele a intensificar o meu esforço de ajudá-la e também a minha frustração de confortá-la.
O frio não é uma briga dela comigo. Mas parece que tenho culpa por ser gaúcho e trazê-la para cá e me responsabilizo por sua fragilidade, seja condenando, seja paparicando.
Não deveria sofrer junto. Ela simplesmente não nasceu para o nosso inverno, muito menos para as madrugadas gélidas e de neblina da Serra.
O que me resta fazer, dentro dos meus limites, é deixar o controle remoto do ar condicionado sob o seu domínio. Só seguro no momento de trocar as pilhas.
Isso que ela ainda não viu o que é o calor em Porto Alegre.
Publicado no Jornal Zero Hora - Caderno Donna
Coluna Semanal
13.11.2016
sexta-feira, 11 de novembro de 2016
CABIDE PARA DOIS
Texto Fabrício Carpinejar
Foto Gilberto Perin
Os objetos mais banais revelam a grandeza da fidelidade: quando você passa a ser guardião de algo do outro e precisa cuidá-lo das permanentes tentações do extravio.
Lembrar de trazer de volta um pertence que não é seu significa uma autêntica demonstração de amor.
Pois é fácil esquecer um guarda-chuva quando para de chover. É fácil esquecer um blusão quando esquenta. E ainda é mais fácil quando você não é o dono.
Minha mulher pediu que recuperasse o seu casaco de couro que ficou no espaldar da cadeira do restaurante que costumamos almoçar.
Só que eu estava em trânsito - ainda viajaria a longínqua Petrolina (PE) para talk show, sem nenhuma mala para guardá-lo. Eu me encontrava realmente avulso, com a roupa do corpo, destinado a um aloprado bate-volta.
Não têm ideia de como foi complicado me lembrar de que ele existia. Ainda mais que Petrolina é um calorão e não faz nenhum sentido andar com um casaco.
Quase deixei no bagageiro do avião - voltei quando já me encontrava na porta da saída. Quase deixei no carro do evento - estiquei a mão no banco de trás na última hora. Quase esqueci no armário do hotel - afinal, não tinha bagagem, como iria me recordar?
De quase em quase, fui me afeiçoando ao objeto, comemorando cada resgate, embalando entre os braços o embrulho como um bebê adotivo.
Não era mais uma peça feminina, mas a minha responsabilidade com o relacionamento, o meu compromisso com a palavra, o meu pacto em proteger um pertence predileto daquela que dividia a vida comigo.
Estar casado é combater diariamente o egoísmo da vida solteira. E também não se importar mais com o que os demais pensam a nosso respeito.
A minha esposa deve ter sentido o mesmo quando preparei uma surpresa em seu trabalho e lhe entreguei um balão a gás de ursinho. Ela não podia abandoná-lo sob o risco da ingratidão.
Além da vergonha que engoliu a seco diante dos colegas engravatados, ela circulou com a cordinha vermelha pelo escritório de sua empresa, entrou no táxi com a alegoria, e atravessou as ruas de Porto Alegre equilibrando a bolsa no lado esquerdo e o balão no direito.
Quando ela chegou em casa empinando o meu presente como um menina adestra os ventos de uma tempestade no corpo de uma pipa, não nego o céu limpo de meus olhos: ela realmente me valorizava mais do que o seu receio do vexame. Jamais o medo seria maior do que o nosso amor.
A covardia se esconde nos fingidos esquecimentos. A mentira nasce dos pequenos lapsos. Lembrar de si e de quem nos acompanha é sempre uma manifestação corajosa de honestidade.
Coluna Semanal
Publicado no Jornal O Globo
11.11.2016
terça-feira, 8 de novembro de 2016
CIRANDA DA INTUIÇÃO
Texto Fabrício Carpinejar
Arte Eduardo Nasi
Você nunca divide a realidade com quem você ama. É assustador. Existe um descompasso entre o que lembra e o que imagina, ainda mais quando aquilo que lembra é fruto daquilo que imagina.
Você não enxerga o que a sua mulher enxerga – tem uma equivocada distorção. É a mesma vida em distinta versão. Você apenas crê que partilham iguais emoções, mas de modo nenhum: fotografam os dias com diferentes cores. Cada um tem os seus filtros de Instagram nos olhos, apesar de dividir os enquadramentos.
Quando você está bem humorado, ela pensa que você está agressivo. Quando ela está séria e concentrada, você pensa que ela está triste. Quando você está emocionado, ela pensa que você está ressentido. Quando ela está alegre, você pensa que ela está insensível.
Em vez de perguntar (“O que vem sentindo?”), já reage diante de uma mera impressão. A hipótese serve como resposta definitiva. Não há trabalho de campo. E adivinhar é se enganar, é concluir com a nossa limitada base de dados, é determinar algo que sentimos como algo que vimos.
A telepatia reforça o distanciamento e o completo alheamento das experiências. Como você jura que conhece melhor o outro que o próprio outro, deixa de se interessar e fala em seu lugar. A profecia vai matando lentamente a curiosidade.
O casamento começa a ter dois porta-vozes de duas ausências.
Ninguém larga a mão na ciranda da intuição. O sentimento manda nos acontecimentos corriqueiros. O casal segue o calendário como se vivenciasse um patrimônio comum – este é o erro -, só que ambos carregam a sua particular herança dos fatos.
A imaginação separa o que a memória une.
Publicado no Portal Vida Breve
Coluna Semanal
08.11.2016
segunda-feira, 7 de novembro de 2016
CORAÇÃO FIXO DOS PAIS
Quando você perde o celular ou ele estraga, entra em pânico. Não lembra de nenhum número de cor. Você apenas preserva os telefones no aparelho e não explora mais o raciocínio. A última vez que decorou algo com devoção foi a tabuada na infância.
Não tem mais a necessidade de anotar na palma suada da mão e passar a limpo com a ansiedade dos olhos. Não há rascunhos dos códigos.
O que você conhece da vida de seu amor e de sua família está alojada na pastinha dos contatos. Mesmo o celular da sua esposa e dos seus filhos estão lá. Vendemos a nossa memória para as operadoras. Recobraremos alguns números, mas não a ordem exata. Nossos melhores amigos encontram-se presos no chip. De um instante para o outro, o universo de referências desaparece e somos combinações de trotes e enganos.
Não existe como solicitar socorro e avisar que ficou sem comunicação. Mentaliza o desespero dos seus familiares buscando ligar freneticamente, e o seu celular mortinho. E a sua memória morta junto.
E se dará conta de que o único número que recordará será o fixo da casa dos pais. Exatamente o número telefônico que nunca mudou em sua história. Telefonará aos pais para o resgate afetivo de suas raízes.
– Mãe? Mãe? Que bom que está em casa, pode avisar a minha mulher que estou sem celular.
Engraçado que a mãe sempre está em casa quando você precisa. É a intuição materna provando a sua força.
Por mais que amadureçamos e nos tornemos independentes, jamais esqueceremos os pais. É para eles que regressamos quando precisamos de verdade. É para eles que reivindicaremos cuidados na amnésia e nos recomeços. Os pais são para sempre, mesmo que a relação seja fundada em brigas. No momento decisivo, os desentendimentos somem.
O único telefone que lembraremos é o da residência primeira, a residência onde prometemos um dia não voltar tarde.
O telefone fixo dos pais forma o escapulário nas lembranças que nos protege do mundo. Impossível de ser apagado ou de ser removido. Nenhuma tecnologia destrói a voz dos pais ensinando como discar para o endereço.
Lembro nitidamente o número …333411… assim como lembro que sempre que caía um botão na minha infância, a mãe não pedia para entregar a roupa. Ela buscava a sua almofada negra de agulhas, sentava em um banquinho em minha frente e consertava a camisa na hora. Recriava o ventre por alguns minutos. Eu sentia a linha ziguezagueando próxima da pele. Acho que, no fim, ela costurou o número do seu telefone em meu corpo para que eu fosse devolvido são e salvo.
Publicado no Jornal Zero Hora - Caderno Donna
07.11.2016
Coluna Semanal
Não tem mais a necessidade de anotar na palma suada da mão e passar a limpo com a ansiedade dos olhos. Não há rascunhos dos códigos.
O que você conhece da vida de seu amor e de sua família está alojada na pastinha dos contatos. Mesmo o celular da sua esposa e dos seus filhos estão lá. Vendemos a nossa memória para as operadoras. Recobraremos alguns números, mas não a ordem exata. Nossos melhores amigos encontram-se presos no chip. De um instante para o outro, o universo de referências desaparece e somos combinações de trotes e enganos.
Não existe como solicitar socorro e avisar que ficou sem comunicação. Mentaliza o desespero dos seus familiares buscando ligar freneticamente, e o seu celular mortinho. E a sua memória morta junto.
E se dará conta de que o único número que recordará será o fixo da casa dos pais. Exatamente o número telefônico que nunca mudou em sua história. Telefonará aos pais para o resgate afetivo de suas raízes.
– Mãe? Mãe? Que bom que está em casa, pode avisar a minha mulher que estou sem celular.
Engraçado que a mãe sempre está em casa quando você precisa. É a intuição materna provando a sua força.
Por mais que amadureçamos e nos tornemos independentes, jamais esqueceremos os pais. É para eles que regressamos quando precisamos de verdade. É para eles que reivindicaremos cuidados na amnésia e nos recomeços. Os pais são para sempre, mesmo que a relação seja fundada em brigas. No momento decisivo, os desentendimentos somem.
O único telefone que lembraremos é o da residência primeira, a residência onde prometemos um dia não voltar tarde.
O telefone fixo dos pais forma o escapulário nas lembranças que nos protege do mundo. Impossível de ser apagado ou de ser removido. Nenhuma tecnologia destrói a voz dos pais ensinando como discar para o endereço.
Lembro nitidamente o número …333411… assim como lembro que sempre que caía um botão na minha infância, a mãe não pedia para entregar a roupa. Ela buscava a sua almofada negra de agulhas, sentava em um banquinho em minha frente e consertava a camisa na hora. Recriava o ventre por alguns minutos. Eu sentia a linha ziguezagueando próxima da pele. Acho que, no fim, ela costurou o número do seu telefone em meu corpo para que eu fosse devolvido são e salvo.
Publicado no Jornal Zero Hora - Caderno Donna
07.11.2016
Coluna Semanal
quinta-feira, 3 de novembro de 2016
DIAS NULOS
Fabricio Carpinejar
Arte de Eduardo Nasi
Há dias em que você não existirá. Empate sem gols, público vaiando; céu nublado sem sol e estrelas, abafado.
Dias em que não fará nenhuma diferença acordar. Nada dará certo. Nada vai funcionar. Nenhuma palavra trará descanso. Nenhuma atitude será compreendida.
Dias de exorcismo e penitência. Só rezará para que termine logo. Não contará depois em seu calendário, não aparecerá em sua trajetória como tempo de serviço.
Serão dias descontados por Deus no final.
Há dias em que desaparecerá, que passará o tempo inteiro resolvendo um problema que não criou e que é mera vítima. Não há como combater o mal silencioso. É a esposa que decidiu que você não é amoroso, é um colega que colocou a culpa em você por uma tarefa malfeita, é um amigo que ficou ofendido com uma piada, é um familiar que coloca para fora um trauma antigo. Discutirá horas a fio no telefone, suspenderá reuniões, queimará a agenda, almoço e jantar desaparecerão do cardápio. Restaurar a paz dependerá de uma longa guerra de nervos. Ou seja, sofrerá o maior estresse para reconquistar o que já tinha antes.
A luz vem torta e não se endireita por mais que demonstre paciência e generosidade. A educação é um amortecedor da queda, não impede o tombo, apenas suaviza os ferimentos.
É o dia fatídico em que não cumprirá aquilo que determinou na noite anterior. Viverá se explicando e justificando o seu valor.
A pedra enfileirada do dominó escapou da fila indiana levando todas as pedras organizadas da mesa. Se o liquidificador quebra, a máquina de lavar e de secar estragam juntas.
Aceite que dói menos. É um excesso de azar que se assemelha a maldição. Alguém bate em seu carro por bobagem, arranha na verdade, você não é culpado, mas sacrifica o trabalho, corre atrás de três orçamentos em diferentes oficinas e ainda precisa torcer para que o causador do acidente assuma a responsabilidade.
Ou esquece simplesmente de pagar a conta da luz – esquecer não, caiu do débito em conta – e é premiado com o escuro por 48 horas, precisando tirar segunda via e aplacar o olhar interrogador e desconfiado dos filhos jurando que você faliu.
Prepare-se para não existir alguns dias. Nem sempre a vida é nossa.
Publicado no Portal Vida Breve
Coluna Semanal
02.11.2016
terça-feira, 1 de novembro de 2016
ORAÇÃO PELA VIDA
Agradecer é mais difícil do que perdoar. Agradecer não tem necessidade, perdoar tem um interesse por detrás.
Agradecer é generosidade, perdoar é uma exigência para consertar a relação.
Perdoar é fazer o outro feliz de qualquer jeito, agradecer é fazer o outro feliz porque se quis.
Quem não agradece acha que deveria receber o melhor sempre - demonstra prepotência e arrogância.
Quem não agradece não tem humildade para sair do lugar e melhorar os seus defeitos. A preguiça e o egoísmo são vizinhos da imobilidade.
Quem não agradece um dia bonito nunca reconhecerá os dias tristes.
Quem não agradece não é capaz de diferenciar o pior do ruim porque tudo é menosprezado.
Quem não agradece jamais chora de emoção.
Quem não agradece anula o valor da família.
Agradecer é entender que aquele que nos acompanha não tem a obrigação de amar. Amar é uma escolha de cada olhar.
Quando criança, agradecia quando era levado mensalmente ao Parque da Redenção para comer pipoca e andar de carrossel, agradecia um sorvete na Banca 40 do Mercado Público, agradecia a carona de bicicleta do meu irmão mais velho. Eu também agradecia quando não acontecia nada de ruim. Não acontecer uma infelicidade é uma benção invisível.
Agradecer é homenagear a vida. É se esforçar para ter, é mostrar o que presta, é valorizar a chance, é não se entregar facilmente ao silêncio.
Agradeça para merecer, não se acostume em desprezar. Dizer "obrigado" é educar a memória e ensinar como se fabrica a saudade.
Rezar é agradecer mais do que pedir. Não durma nenhuma noite sem agradecer por estar vivo. Eu agradeço a mulher que me aguenta, os filhos condicionados a aceitar as minhas manias, os pais desesperados com a minha pressa.
Agradeço à água que me banha, ao fogo que me inspira a queimar alto, ao escuro da madrugada onde os pensamentos se amansam e as estrelas brilham mais.
Agradecer é sem motivo, sem explicação, por isso é puro e espontâneo. Perdoar vem de um conflito, de uma discussão, de uma falha.
Agradecer nasce de um acerto. Você não errou e agradece.
Perdoar é gostar contrariado. Agradecer é amar por sua conta e risco.
Quem não agradece é que jamais perdoou alguma injustiça. Ficou preso no passado, desesperançoso.
O agradecimento é repetir o perdão toda a manhã.
Publicado no Jornal Zero Hora
01.11.2016
Coluna Semanal
Agradecer é generosidade, perdoar é uma exigência para consertar a relação.
Perdoar é fazer o outro feliz de qualquer jeito, agradecer é fazer o outro feliz porque se quis.
Quem não agradece acha que deveria receber o melhor sempre - demonstra prepotência e arrogância.
Quem não agradece não tem humildade para sair do lugar e melhorar os seus defeitos. A preguiça e o egoísmo são vizinhos da imobilidade.
Quem não agradece um dia bonito nunca reconhecerá os dias tristes.
Quem não agradece não é capaz de diferenciar o pior do ruim porque tudo é menosprezado.
Quem não agradece jamais chora de emoção.
Quem não agradece anula o valor da família.
Agradecer é entender que aquele que nos acompanha não tem a obrigação de amar. Amar é uma escolha de cada olhar.
Quando criança, agradecia quando era levado mensalmente ao Parque da Redenção para comer pipoca e andar de carrossel, agradecia um sorvete na Banca 40 do Mercado Público, agradecia a carona de bicicleta do meu irmão mais velho. Eu também agradecia quando não acontecia nada de ruim. Não acontecer uma infelicidade é uma benção invisível.
Agradecer é homenagear a vida. É se esforçar para ter, é mostrar o que presta, é valorizar a chance, é não se entregar facilmente ao silêncio.
Agradeça para merecer, não se acostume em desprezar. Dizer "obrigado" é educar a memória e ensinar como se fabrica a saudade.
Rezar é agradecer mais do que pedir. Não durma nenhuma noite sem agradecer por estar vivo. Eu agradeço a mulher que me aguenta, os filhos condicionados a aceitar as minhas manias, os pais desesperados com a minha pressa.
Agradeço à água que me banha, ao fogo que me inspira a queimar alto, ao escuro da madrugada onde os pensamentos se amansam e as estrelas brilham mais.
Agradecer é sem motivo, sem explicação, por isso é puro e espontâneo. Perdoar vem de um conflito, de uma discussão, de uma falha.
Agradecer nasce de um acerto. Você não errou e agradece.
Perdoar é gostar contrariado. Agradecer é amar por sua conta e risco.
Quem não agradece é que jamais perdoou alguma injustiça. Ficou preso no passado, desesperançoso.
O agradecimento é repetir o perdão toda a manhã.
Publicado no Jornal Zero Hora
01.11.2016
Coluna Semanal
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