sábado, 30 de abril de 2011

A CIDADE QUE DEFENDE O NOME

Leandro nasceu quando município, para evitar humilhações, trocou de nome para Campo Real. Fotos de Fernando Gomes.


É triste quando uma criança sofre bullying, essa zombaria destinada a sufocar individualidades.

É mais triste quando uma turma sofre bullying.

É mais triste ainda quando uma cidade inteira sofre bullying.

Por favor, não faça mais nenhuma piada sobre Não-Me-Toque, simpático município do norte gaúcho, situado a 276 quilômetros de Porto Alegre. Basta dizer que nasceu lá que todos começam a rir e pensar bobagem.

– Nome do município é como do pai e da mãe, tem que ser respeitado – xinga a aposentada Vanila Frices, 73 anos.

A nutricionista Gisele Heck, 28 anos, acredita que o espírito esportivo termina quando somente um dos dois brinca. De modo educativo, ela descarta qualquer pretendente que tente um flerte com referência à cidade.

– São cantadas constrangedoras, as mulheres não suportam mais o risinho e a pergunta “posso tocar?”. Se o homem não consegue sair do óbvio no primeiro encontro deve ser um tédio por toda a vida – expõe.

A troça com o nome do lugar facilita a conversa com estranhos, mas esgotou a comicidade. Uma piada contada três vezes perde a graça, e essa vem sendo repetida milhares de vezes aos seus 15 mil habitantes.

– Em Minas Gerais, um policial rodoviário parou meu carro numa blitz e pediu para que colocasse a placa verdadeira do veículo. Eu respondi: não é uma placa falsa, que a cidade existia. Perdi duas horas esperando que ele achasse um mapa do Rio Grande do Sul – lembra o tabelião Sérgio Dornelles, 68 anos.

A humilhação de fora foi tão intensa que Não-Me-Toque chegou a trocar de nome por um tempo. Tornou-se Campo Real, de dezembro de 1971 a abril de 1977.

– Tentamos mudar para ver se diminuía o sofrimento. Mas concluímos que não poderíamos nos acovardar diante do mundo, e um plebiscito decidiu retornar ao nome antigo. Compramos briga com o medo – explica Dornelles.

A alteração do batismo da localidade na época gerou impasses curiosos. O auditor Leandro Bürgel de Souza nasceu em 1975 no momento em que o município era Campo Real. Até hoje sua certidão aponta para uma cidade que não existe. Como um fantasma, ele teve que se esforçar mais para chamar atenção.

– Cresci meio desconfiado de mim – conceitua.

Não-Me-Toque traz duas possíveis fontes para o nome: uma homenagem ao arbusto de tronco curto e coberto de espinhos ou a repercussão de expressões de proteção das fazendas como “não me toque nestas terras”, ou “não me toque daqui”.

Não se tem certeza se a cidade é um caso de botânica ou de valentia, o que posso garantir é que um grupo de amigos não leva desaforo para casa e criou a divertida confraria Os Intocáveis para responder ao bullying.


Às quartas-feiras, 25 moradores se reúnem para tramar ações estratégicas de bairrismo. É uma espécie de Ministério de Defesa informal, um poder moral paralelo à prefeitura, estruturado para desarmar críticas e preconceitos. Adesivos são espalhados pelos carros e vitrines de lojas e restaurantes. É o que expõe o produtor rural Vanderlei Assinck, 42 anos, um dos líderes do bando:

– Depois de uma viagem pelo Brasil, em 1989, com nove amigos em quatro camionetes, entendemos a necessidade de oficializar o movimento. A cada parada num posto de gasolina, tínhamos que explicar nossa procedência. Era muito chato.

João Brum, 88 anos, de chapéu e indumentária gaúcha, sintetiza o espírito teimoso da população:

– Só saio daqui morto. Aliás, nem quando morto.









Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 30, 30/04/2011
Porto Alegre, Edição N° 16686
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sexta-feira, 29 de abril de 2011

PRÓXIMOS ENCONTROS

Foto de Eduardo Nasi

3/5 (terça-feira) - Rio de Janeiro (RJ), 19h
Debate com Maria Rita e sessão de autógrafos do livro "Borralheiro"
Local: Livraria da Travessa, Shopping Leblon
(Av. Afrânio de Melo Franco, 290 Loja 205, 21 31389600)


5/5 (quinta-feira) – Ivoti (RS), 16h e 19h30
29ª Feira do Livro de Ivoti
Palestra
Local: Praça Neldo Holler/Burle Marx
Contato: 51 3563 7956

13/5 (sexta-feira) – Campinas (SP), 19h
Programa Café Filosófico - CPFL
Palestra “A reinvenção dos vínculos”
Local: CPFL Cultura, Rua Jorge Figueiredo Corrêa, 1632 - Campinas
Contato: 19 3756-7060 ou 19 7808-3551

14/5 (sábado) – Santa Maria (RS), 19h
Feira do Livro
Palestra
Local: Praça Saldanha Marinho

quarta-feira, 27 de abril de 2011

VEJA COMO FOI O LANÇAMENTO DO BORRALHEIRO EM SP



Transmissão pela Twitcam do debate com o músico Renato Godá na noite de quarta (27/4), na Livraria Cultura, do Conjunto Nacional, em São Paulo (SP).

LISTA TELEFÔNICA

Arte de Cínthya Verri


O nome é um espelho. O primeiro e último espelho. A nossa estreia pública, na certidão de nascimento, e o nosso derradeiro aceno das letras, na lápide.

Enxergar o nome impresso foi sempre uma das minhas principais alegrias. Eu sabia que existia, mas era a chance de outros saberem. Vinha como promessa de alguma posteridade, de alguma fama, de algum significado maior.

Talvez a gente viva pelo desejo de ver nosso nome em destaque. É a primeira coisa que a gente aprende na escola: escrever o nome. No meu caso, em intermináveis cadernos de caligrafia.

É o motivo da batalha inicial — de uma guerra sem fim — dos pais por nossa causa: qual será o nome dele?

É uma briga que levamos vida afora, defendendo a grafia em hotéis e documentos e a pronúncia em telefonemas e encontros.

O nome é a solidão, a paz, o ferrolho dos recreios e das corridas, onde nenhum colega pode nos alcançar (terrível quando nos deparamos com um nome e sobrenome exatamente iguais ao nosso, e ainda descobrimos que o gêmeo bastardo é mais rico, sortudo e feliz e que, na verdade, somos o bastardo dele).

Sem nome, não existe destino. Recordo minha concentração obsessiva ao treinar a assinatura para a carteira de identidade, o temor de não repeti-la.

Pense na força do nome nas conquistas. Sem ele, sequer nos alegramos, não há mérito. O nome é a cicatriz da vitória.

Meu nome na toalhinha de rosto do jardim da infância. Meu nome na lista de chamada. Meu nome no boletim escolar. Meu nome no cabeçalho do bilhete de amor. Meu nome no título de eleitor. Meu nome na lista dos aprovados do vestibular. Meu nome no primeiro livro. Meu nome na casa própria. Meu nome no convite de casamento. Meu nome na conta de luz.

Mas o lugar mais importante de todos e o que mais esperei para colocar meu nome, e que hoje não faz nenhum sentido, era a lista telefônica. Antes do Google e dos sistemas de busca, só havia um jeito de encontrar alguém: consultando aquele calhamaço dividido entre as páginas cinza (residencial) e as amarelas (comercial). Não importava que a letra fosse de formiga, de bíblia, imperceptível, que dependia do corrimão do indicador. Quem ali constava desfrutava de respeito, de valor, de dote social. Ter o nome na lista telefônica era a prova incontestável de que havia ingressado na vida adulta. O momento que entrei como proprietário de endereço e telefone não me aguentei de contentamento: Nejar, Fabrício. Página 879 de Porto Alegre. Qualquer trote já identificava como resultado da publicação. Melhorou meu riso no trabalho. Melhorou meu desempenho sexual. Cresceu bigode nas vogais.

Fui mostrar ao meu avô que apareceu mais um Nejar na Lista Telefônica. O décimo primeiro, sublinhei a linha para não me confundir na hora de procurar.

— Olha, vô, aqui! Estou famoso.
— Agora você está igual a todos.
— Ei, por quê?
— Gente comum tem seu nome na lista telefônica, gente famosa tira.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 25 de abril de 2011

VEJA COMO FOI O LANÇAMENTO DO BORRALHEIRO EM POA

Transmissão pela Twitcam do debate com a banda Nenhum de Nós na noite de segunda (25/4), na Livraria Cultura, de Porto Alegre (RS).

O HOMEM DO LAR

Em “Borralheiro”, Fabrício Carpinejar brinca com a inversão de papéis nos casais

CARLOS ANDRÉ MOREIRA

Quem manda lá em casa: Carpinejar e a mulher, Cínthya Verri. Foto de Adriana Franciosi


Se como poeta de ofício Fabrício Carpinejar já se admitia um fingidor, é em suas crônicas que o autor vem se entregando a uma recriação ficcional metódica de si mesmo. Depois de cantar a doçura de um canalha e fazer o elogio do ciúme, agora Carpinejar se dedica a apresentar-se como um legítimo “homem da casa” no seu livro mais recente, Borralheiro, que ele autografa hoje.

Borralheiro segue um projeto que Carpinejar vem pondo em prática em seus livros de crônicas: apesar de escritos e publicados um a cada dia no site que o escritor mantém na internet (www. carpinejar.blogspot.com), quando reunidos em livro os textos seguem uma linha temática, como se cada coletânea contasse uma história. Canalha!, o livro que valeu ao escritor o Jabuti de crônica em 2009, apresentava a visão masculina sobre amor e sexo. Mulher Perdigueira fazia o elogio do amor arrebatado, por vezes possessivo, mas sempre intenso.

Agora, como se levasse o personagem de suas crônicas (ele mesmo) a uma etapa posterior de sua vida, Carpinejar exalta com humor a inversão tradicional de papeis em um casamento: as mulheres lá fora, nas chefias de escritórios, empresas, até na presidência da República. Os homens, cansados do exercício cotidiano do poder, dedicando-se às atividades domésticas. Como o autor escreve na crônica Do Lar, incluída no novo livro:

“O que pretendemos é ser do lar. Não conhecemos nenhuma dona de casa que foi processada; é mais seguro. Já temos prática em lavar carro; aprontar o quarto é moleza.// O que nos atrai neste milênio é preparar o jantar consultando um livro de receitas.”

Como em obras anteriores, Carpinejar faz questão de borrar os limites do que, em sua prosa, é confessional e do que é ficcional. O cotidiano que o escritor inventa nas crônicas do livro é parte invenção, parte decalce de situações vividas no casamento com a médica e escritora Cínthya Verri – sim, no arranjo doméstico é ele quem faxina, estende roupas e lava a louça, enquanto ela troca chuveiros, aparafusa estantes e até conserta o carro. Para criar a narrativa desse cotidiano, Carpinejar não se furta de usar qualquer elemento do próprio cotidiano:

– As crônicas são minha autobiografia inventada, eu chamo essas crônicas de minhas “conficções”, um misto de confissão e ficção. Às vezes eu estou numa DR com a Cínthya e começo a pensar que aquilo pode render uma crônica – brinca o autor

A partir de maio, Carpinejar assumirá como cronista titular às terças-feiras na página 2 de Zero Hora, espaço antes ocupado por Moacyr Scliar.

– É algo que me emociona muito, porque o Scliar sempre me encontrava em viagens e eventos e me dava recados do meu pai, colega dele na ABL. O Scliar era meu pai em trânsito.

Borralheiro (Bertrand Brasil, 256 páginas, R$ 29)
Lançamento em Porto Alegre, segunda (25/4), 19h30, na Livraria Cultura do Bourbon Country (Túlio de Rose, 80). Antecedendo a sessão de autógrafos, haverá debate com a banda Nenhum de Nós.


“O marido mais torturador é o metido a faxineiro. Não vem com o caminhão de mudança, é o caminhão de mudança. Aquele que entra em sua casa como namorado e, na primeira semana, promove uma limpeza geral, com o objetivo de recuperá-la dos vícios. Trata-se de um escorpiano ou um dominador. Ou os dois. A disposição é tanta que passa a temer sua intenção de preparar a salada de maionese do churrasco. (...)

Você (...) mal entra na sala, enxerga o piso brilhando, encerado, e bate o pavor: as pilhas de papéis importantes estão guardadas não se sabe onde, quer cortar a unha e a tesourinha desapareceu da mira, o prontuário de receitas repousa em uma caixinha anônima na lavanderia. (...). E nem pode reclamar, nem pode xingar. Porque os piores atos são feitos para o bem. E isso é um costume do amor.”

Publicado no jornal Zero Hora
Capa do Segundo Caderno, 25/04/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16681

domingo, 24 de abril de 2011

SCLIAR QUE ME CUIDE

CARTAS DO EDITOR
Por Ricardo Stefanelli
Diretor de Redação

Sant’Ana e Carpinejar, que sucede a Scliar na página 2. Foto de Diego Vara

Foram momentos de intenso prazer – e aprendizagem – os de mediar na Quinta-Feira Santa os diálogos improvisados entre o mais longevo colunista de Zero Hora, Paulo Sant’Ana, e o mais novo, que estreia sua coluna no próximo dia 3, Fabrício Carpinejar. Os dois se conheciam – e se admiravam – à distância, sem nunca terem se encontrado. Abraçaram-se e se beijaram já no bar da Redação, quando a química entre as duas estrelas foi a senha para uma conversa de hora e meia a partir dali.

Fabrício, ainda emocionado pelo convite oficial para substituir nas terças-feiras o espaço que Moacyr Scliar assinou até janeiro na página 2 (na companhia de Verissimo, Martha Medeiros, David Coimbra e Cláudia Laitano), travou um dueto sem pausa com Sant’Ana. O diálogo, bem-humorado o tempo todo, intercalado por longas risadas que fizeram Sant’Ana esquecer por momentos seus achaques e interromper a propagação de sua melancolia, ganhou também intervenções de outra grife do jornal: Rosane de Oliveira, vizinha do sítio da mãe do novo colunista, Maria Carpi, uma poeta tão talentosa quanto o pai de Fabrício, hoje o único gaúcho integrante da Academia Brasileira de Letras.

Megalômano como só ele, Sant’Ana tratou de mostrar seus cartões de apresentação ao novato para checar se o interlocutor sabia com quem estava falando: 40 anos de RBS, mais de 16 mil colunas diárias, recordes constantes de audiência e de correspondência dos leitores. Fabrício, que a tudo ria e acrescentava uma frase como se escrevesse um texto oral, exibia reverência ao colega mais antigo, mas dava pinceladas de brilhantismo que sacudiram a alma do colunista com mania de grandeza.

– Vejo que somos brilhantes – disse Sant’Ana a certa altura, já íntimo do novo amigo e citando Churchill de quando em quando, revelando conhecimentos sobre o estadista de quem, no momento, devora a biografia.

Falaram sobre imoderados, sobre gênios e idiotas, sobre otimistas e pessimistas, sempre concordando, mesmo quando tinham visões opostas a respeito. Lapidavam peças orais para harmonizar-se com a fala do outro, tal como trovadores em amigável duelo. Ou como um jogo infantil de encaixes.

– O otimista é geralmente um idiota – bradou Fabrício em tom de poema, para gáudio de Sant’Ana, um pessimista incorrigível.

– É claro! Só o pessimista pode ser um ser inteligente – declamava Sant’Ana, ensaiando ali um provável dueto que, em breve, pode ser travado no novo canal de vídeos do clicRBS. Aguardem.

Publicado no jornal Zero Hora
Novidades, viagens e presentes
P. 2, 24/04/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16680

sábado, 23 de abril de 2011

DIZEM QUE SOU LOUCO

Foto de Fernando Gomes

Todo baralho de tarô e toda cidadezinha do interior tem seu louco.

Alguém que fala alto nas esquinas, conversa com os postes, recolhe objetos perdidos, guarda os segredos mais tórridos. Aquele que tudo enxerga e nada fala.

Louco é um tipo alegre, irreverente, não necessariamente doente.

Ibirubá, município de 19 mil habitantes, distante 300 quilômetros da capital gaúcha, já escolheu seu personagem de estimação, seu porta-voz mambembe e folclórico, o Macaco.

– Viu o Macaco por aí?

– O Macaquinho?

– Sim, viu?

– Ele passou há pouco.

Macaquinho sempre passa. É o relógio dos lojistas, a referência da manhã e da tarde. Seu itinerário regula o expediente do comércio.

– Sei da hora do lanche quando ele atravessa a frente da loja – comenta Júlia Amaro, que trabalha na autoescola Jeremias.

Com um boné preto e sua calça furada, é um rapaz que não descansa um minuto, vive caminhando, assentado em bares, entretendo pombas, rindo à toa, assobiando árias esportivas.

– Mostra o que é a felicidade, o que é amar a vida sem preocupação. Tem toda a minha inveja – pontua Gabriela Castelli, 25 anos.

A irmã Viviane Castelli concorda:

– Não é o louco que nos incomoda, é o louco que nos devolve a saúde.

Macaquinho é o apelido de Luís Alfredo Pereira Lopes, 30 anos, locutor oficial das ruas do centro. Ele narra partidas imaginárias do clássico trepidante da liga municipal de futebol, Florestal versus Revelação. É um duelo infinito, borgeano. São horas ininterruptas de gols, pontapés, cartões amarelos e vermelhos, chutes na trave e descrições detalhadas das batalhas da várzea.

Tudo é gritado com um palito Gina na boca.

– É meu sistema de limpeza do som – explica.

Luís nunca olha para cima, ou enverga o pescoço ao céu. Não significa timidez; é parte de sua conduta profissional. Uma distração pode custar a fome do pai Pedro Campos. Varre as bocas-de-lobo com suas havaianas surradas à procura de latas. Recolhe 40 latinhas por dia, o que rende R$ 2,50, dinheiro suado do pão que leva para residência à noite.

– Como o corneteiro do sorvete, primeiro vem sua voz para depois chegar seu rosto – afirma o produtor Mauro Constantino.

Macaquinho é precavido. Não acredita em Deus, mas comparece na missa.

– Vá que Ele exista... Pelo menos o Tio me conhece. Mais fácil de me perdoar.

Decidido, ainda espera realizar sua maior aspiração: arrumar uma namorada e beijar na boca. E talvez seu sonho: andar de mãos dadas na praça.

– Não espero uma mulher bonita, e sim honesta, que não me dê guampa – confidencia.

– Macaco não tem a chave da cidade, mas a porta inteira. No final de semana, é meu marido localizá-lo que ele já se torna o nosso convidado para o churrasco. Isso é muito comum, ele é da família de todas as famílias – afirma Aline Fernandes, 34 anos.

Sobre sua loucura, Macaquinho não nega fogo:

– Normal é aquilo que nos acostumamos. E sou um costume do sol.

Não é que ele tem razão?








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 21, 23/04/2011
Porto Alegre, Edição N° 16679
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sexta-feira, 22 de abril de 2011

NAS LIVRARIAS!


Porque a vida a dois não é para qualquer um.

Meu novo livro de crônicas "Borralheiro" (256 ps, R$ 29,00) já está disponível para a venda. Seja o primeiro a ler e comentar. .

Confira também a página que a editora Bertrand Brasil preparou para o lançamento.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

O MELHOR SOM PARA DORMIR

Arte de Cínthya Verri


A água é uma compositora unânime. Reclama-se da chuva, mas ninguém reclama do barulho da chuva.

A casa de taipa traz a melhor audição. Chuva boa, cheirosa e oleira. As paredes estremecem de manso. Somos postos mentalmente naquele berço de madeira antigo, com base abaulada de cadeira de balanço. A mão líquida acaricia o ouvido e nos embala de um lado para o outro da memória. Na chuva, observar é lembrar. O vento é uma coberta que nos esfria e a constância das notas aumenta a vontade de permanecer quieto no mesmo lugar. Não se mexer é descobrir que a pedra tem suas alegrias.

Ao contrário da crença popular, o telhado de zinco não ajuda a sinfonia. A hipersensibilidade da superfície atrapalha. Garoa vira tempestade, gota vira grito. É uma invasão, não uma visita. Não diferenciamos as cortinas d’água com as pancadas dos raios. Já vi criança estressada, com insônia, pedindo para ficar na cama dos pais.

Cada um acalenta sua caixinha de ninar. Uns com bailarinas, outros com ogro.

Rodrigo, irmão mais velho, tinha uma queda por furadeira e martelos. Amava a casa quando entrava em reforma. Com o agito interminável dos pedreiros pelos corredores, a mãe queria pernoitar em hotel, ele insistia em ficar. Confortava-se com o mundo em construção.

Grande parte dos meus tios dormia com a tevê ligada. Meu pai não renegava a raça, adorava o chuvisco do canal fora do ar. Isso explica hoje sua dificuldade de relaxar. Não há emissora que não tenha programação 24h. Morreram até as barras coloridas do fim da programação. O tempo da televisão aberta foi seu paraíso, deitava no sofá para matar tempo, e matava realmente toda noite.

A filha Mariana, quando pequena, se acalmava com a lavadora. Era seu ninho de peixes, seu aquário. Ela pegava seu travesseiro e escorava na parede da área de serviço, hipnotizada pelo movimento circular da espuma e das vestes. Nada a divertia tanto, nenhum brinquedo musical, nenhum móbile. Suas pálpebras pesavam com o giro, a íris mergulhava na consistência azul do amaciante. Só despertava no momento da centrifugação. Lembro que ela fazia questão de sujar muita roupa, para desencadear duas lavagens por dia.

O que me tranquiliza é máquina de costura. Sou o menino que não deixou a sala da avó. A Singer costurou meus ouvidos por dentro. Ela chamava a máquina de gata preta. Cochilava com o vaivém dos bordados. Elisa pedalava sem parar, me levava em sua garupa para o reino acolchoado da primeira pessoa, dos lençóis e fronhas com iniciais e das toalhas com nomes. Sonhava bonito. Fundo. Nítido. Somente encontro um som semelhante ao pousar a agulha no disco de vinil. O início tremido parece o de minha avó trabalhando. Meu sono mora um pouco antes da música.

Já minha mulher Cínthya é apaixonada pela marcha da respiração. Ela encosta seus olhos em meu pescoço para se amansar, diz que é seu lugar de ser. Se eu fosse ventilador novo, ela não acharia graça. Minhas hélices são de aparelho de praia, ruidosas. A asma domesticada, ao fundo de mim, é o diferencial que a atrai. Não é ronco, também não é paz, como ela já me descreveu; é uma sensação mista, de alguém acordado dormindo, suspirando pelos lábios e respirando pelo nariz.

Talvez eu caminhe pela boca. Apressado. Com medo de não alcançá-la de manhã.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 18 de abril de 2011

O QUASE É TÃO CHEIO DE TUDO

Arte de Wayne Thiebaud


Aquele que não foi amado é o que mais ama.

É o menino que nunca beijou, distraído na sala de aula, capaz de descobrir a direção do vento observando os pelos loiros do pescoço da colega.

É a menina que tem uma única dúvida: até quando devo estender a língua em outra boca? Sem pais, sem professores, sem amigos para perguntar uma coisa dessas.

É o jovem de topete, fingindo que não é virgem no recreio, mas que ainda dorme com o travesseiro entre as pernas.

É a jovem ruiva que se excita andando de bicicleta e engolindo vento.

É o velho na janela que somente conheceu putas.

É a velha vizinha dele que gostaria de ter sido puta.

Os tímidos, os feios, os recalcados, os lindos, os arredios, os brabos; fico pensando em quem silencia suas vontades para não incomodar e têm o silêncio cheio de tremores.

Aquele que ama sem ser amado é o que mais ama.

É a secretária louca pelo seu chefe e que passará a vida anotando recados da esposa dele (há o que confessa a verdade pelo ciúme, e o que guarda toda a verdade na inveja).

É o adolescente que pede para o ônibus encher e assim esbarrar na moça de colar de pérola (há o que consegue puxar conversa, há o que espera ser empurrado).

É o professor que teve uma única namorada e desvia o olhar dos casais se abraçando nas praças (há o que levanta a cabeça com orgulho, há o que baixa de tanto que deseja).

É a faxineira que cuida do vestido da patroa, prende no cabide e não se aguenta: coloca a peça sobre os seios rapidamente temendo que alguém entre (há o que exibe seu corpo, há o que se encolhe para receber outro corpo).

É a casada que anseia jantar uma noite fora para usar de novo o par de brincos do casamento. É o homem que não faz barba para esconder as acnes e as marcas da adolescência.

Ai, como dói quem espera amar. Quem dedica uma vida à disciplina da paciência, torcendo para o sexo melhorar o casamento, torcendo para o casamento melhorar o sexo, torcendo para que o marido não fique bêbado ao menos uma vez, torcendo para que a esposa não reclame ao menos uma vez, dormindo e esquecendo a tristeza, acordando e repondo a esperança, aqueles que resistem e talvez envelheçam sem completar seus sonhos, que respeitam as pequenas alegrias porque podem ser as únicas, que não decidiram se diminuem a expectativa para sair da solidão ou aumentam as exigências para justificá-la.

Como eu amo quem se importa em amar, apesar de tudo. Apesar de tudo.





Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 18/04/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16674

domingo, 17 de abril de 2011

EU SOU VOCÊ

Arte de Wayne Thiebaud


Você não aguenta reprisar o corredor dos perfumes do mercado. “Vamos?”, o marido não se mexe, demora todas as vidas de Chico Xavier para escolher um produto. Investiga preço, lê os componentes, pega dois xampus e três condicionadores para testar qual é melhor.

- Tem certeza que você precisa de tudo isso? - você pergunta.

Ele despreza sua curiosidade e liga para o amigo disposto a confirmar a dica. Recapitula, pelo telefone, os ingredientes das costas da embalagem: glicerina, geramol...

* * *

Você está com a mão na maçaneta aguardando sair e não suporta a sensação de arbusto de hospital. “Vamos?”, mas o marido demora para pentear os cabelos. Acabou de testar os xampus e os condicionadores e depende de uma opinião sincera do espelho.

- Arrumado assim só para almoçar? - você pergunta.

* * *

Você assiste seu seriado predileto no sábado e seu marido inventou de arrumar o apartamento. Além de lavar a louça e desinfetar os banheiros, ele liga o aspirador de pó.

O aspirador de pó é o único herdeiro do cortador de grama. Pelo barulho infernal logo cedo, descobre que seu companheiro é pior do que a própria mãe. Quando começa uma faxina, põe a família a se sentir culpada.

- Tinha que ligar o aspirador justo agora que estou vendo “House?” - você pergunta.

* * *

Você é carregada pelo marido. Hipnotizado pelas vitrines, ele nem nota que puxa sua mão com força. Entra na quinta loja para espiar a promoção de sapatos. Não suporta mais caminhar, nem é pelo salto que nunca usa, é que sonhava sestear no sofá e terminar o “House” interrompido pelo aspirador de pó. Enxerga, ao fundo da loja um banquinho alto. Senta e respira aliviada: o banquinho é bebedouro no deserto dos consumistas.

Ele recebe cinco caixas da vendedora e experimenta os pares com meticulosidade cênica. Dobra o pé imitando uma bailarina na barra.

- Gostou?

Você somente pensa em dizer:
- Vamos embora desse shopping?

Engole a seco as palavras para não ser cobrada pela indisposição.

* * *

Você marcou uma partida de vôlei com as amigas, volta para casa de madrugada depois de uma carne e rodadas de chope. Seu marido questiona o motivo da demora. Você não fez nada de errado, mas não está a fim de dar satisfação, toma banho e vai dormir.

* * *

No café da manhã, ele lhe espera com o rosto murcho, de pão do dia anterior. Já entendeu o recado: ele quer discutir o relacionamento pela enésima vez na semana, quer corrigir alguma coisa de sua atitude.

- Porra! - desabafa. - Casamento não é aula de caligrafia.
- Para de gritar comigo!

Não tem escolha, é conversar ou o fim, seu marido confessa que não vem sendo valorizado, que permanece sozinho a maior parte do tempo, que você não elogia a janta que ele prepara, que precisa oferecer um mínimo de atenção aos filhos, que ainda não reservaram uma noite para assistir a caixa de filmes da Julia Roberts. Ele chora, você tenta consolar e não consegue, o sujeito sai correndo de chinelo com meia e bate a porta do quarto:

- Me deixa em paz!

* * *

Você atende ao pedido e segue ao escritório. Mal entra em sua sala, toca o celular e seu marido começa outra discussão reclamando de sua frieza, por tê-lo abandonado aos prantos. Ele mia inconveniências de seu comportamento enquanto finge que escuta e gesticula aos colegas as atividades que devem ser feitas.

* * *

Não sei o que passou pela cabeça da mulher quando desejou mudar o homem.

Publicado no jornal O Globo
Revista O Globo, P. 35
Crônica especial sobre Borralheiro, personagem de meu novo livro
Colunista convidado
Rio de Janeiro (RJ), 17/4/11

sábado, 16 de abril de 2011

CRÔNICA É MÚSICA


Tá vendo a capa aí em cima? Pois é do novo livro de FABRÍCIO CARPINEJAR, feita pelo designer Raul Fernandes. Borralheiro: Uma Viagem pela Casa sairá agora em abril, pela Bertrand Brasil.

O texto fala da mudança do comportamento masculino, focando o homem que prefere ser do lar e cuidar das tarefas domésticas. O escritor Luis Fernando Verissimo já começou uma campanha contra seu conterrâneo:

“Protesto, em nome da classe. O Carpinejar não se contentou em ser o melhor dos novos poetas, também invadiu a nossa área com a mesma originalidade e já é um dos melhores cronistas do país. Ninguém sabe do que ele será capaz, no futuro, se não for detido... É preciso detê-lo. Não o encorajem. Falem mal dele. E, em hipótese alguma, comprem este livro!”

Os lançamentos serão musicais. No próximo dia 25, o autor debate com a banda Nenhum de Nós, na Livraria Cultura, em Porto Alegre. Já no dia 27, na megastore Cultura da Avenida Paulista, Carpinejar antecede o canetaço com um bate-papo com o músico Renato Godá.

Finalmente, no dia 3 de maio, é a vez do Rio de Janeiro – e a sessão de autógrafos contará com a presença luxuosa da cantora Maria Rita, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon.

Publicado na Contracapa
Coluna de Roger Lerina
Segundo caderno, jornal Zero Hora
Porto Alegre, 16/04/2011, Edição N° 16672

OS VIGIAS DA ENCHENTE

Igor (E) aponta a altura do Rio Forqueta na enchente de 1941, e o pai, onde foi parar a água em 2010. Foto de Adriana Franciosi


Meu pai desenhou uma régua na parede da cozinha para medir os filhos. Eu queria crescer de noite somente para espiar os centímetros novos sobre os meus cabelos loiros. Vivíamos um alvoroço no café da manhã, formávamos fila indiana na porta. Os quatro, três meninos e uma menina, suspiravam, ansiosos pelo veredicto.

Igor Kich, 17 anos, teve uma medição diferente. Não experimentou o controle de sua altura, mas acompanhou, passo a passo, o crescimento do Rio Forqueta. A régua fica na ponte que faz a divisa com o Rio Fão.

Em dia de chuva, ele e seu pai, Ricardo, fiscalizam uma marca na base da ponte na BR-386, para verificar se o nível ameaça Marques de Souza, cidade de 4 mil habitantes distante 130 quilômetros de Porto Alegre.

Desde que ele é guri, repete o ritual. Aliás, o ritual é o mesmo, desde que seu pai Ricardo era guri, desde que seu avô Marino era guri.

Oitenta anos vistoriando um ponto na ponte para avisar a população dos perigos da cheia. E toda semana, e toda vez que os relâmpagos soarem suas trombetas de Jericó pelos morros do Vale do Taquari.

Feita com uma marreta e talhadeira, a cicatriz na construção é ideia do bisavô de Igor, Herbert Arthur Biehl. Um vinco criado para não colocar os negócios familiares em risco, como o da indústria de laticínios Biehl. Apesar do fim da fábrica na década de 90, o hábito se manteve, e é o único sistema de proteção da cidade, absolutamente caseiro, informal e feito no olho.

O ex-vereador Ricardo e seus dois filhos, Igor e Vinicius, 18 anos, são os vigias voluntários da enchente. Os salva-vidas dos campings, das lavouras e dos rebanhos. Não param o Rio Forqueta, mas diminuem os efeitos da devastação, e evitam mortes. Pegam o carro e vão buzinando pelo interior das vias, gesticulando com panos brancos, sugerindo abandono imediato do lar.

– A fórmula da marca é a seguinte: passou um metro do risco, haverá meio metro de água em nossa rua. Ultrapassou quatro metros, serão dois metros de água na rua. É sempre a metade – explica Ricardo.

Com a transposição do símbolo, eles têm exatamente duas horas para avisar aos moradores. É o tempo de a correnteza percorrer os 17 quilômetros até o centro do município.

– Aprendemos com a intuição. Quando o rio traz cisco, sujeira e lixo, vem devagar. Quando traz galhada verde, trata-se de uma enxurrada poderosa e rápida, que rasga a mata.

A última grande enchente ocorreu em 4 de janeiro de 2010, a pior da história, afundando 60% do perímetro urbano, ultrapassando em estragos a de 1941. A inundação fez com que os moradores detestem qualquer comparação com Veneza. Não há glamour na tragédia. Os campings terminaram aniquilados, 28 residências desapareceram, metade dos animais resistiu em cima dos telhados.

– Quem não acreditou na gente, perdeu tudo. Quem acreditou, não teve tempo de retirar o mais importante – diz Ricardo.

Nem os mortos sobreviveram. No bairro Tamanduá, os dois cemitérios, evangélico e católico, foram varridos pela enxurrada. Lápides apareceram quebradas, mausoléus navegaram para a estrada, e ossadas ressurgiram no meio da plantação de trigo.

– Muita gente enterrou duas vezes um familiar – lamenta.

Em Marques de Souza, o rio é um filho desobediente, não é possível deixá-lo brincando sozinho. De geração a geração, as crianças recebem a responsabilidade de cuidá-lo.

– É uma vida inteira secando fotos – desabafa Adriana Berch, 36 anos, com os olhos visivelmente úmidos.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 29, 16/04/2011
Porto Alegre, Edição N° 16672
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sexta-feira, 15 de abril de 2011

segunda-feira, 11 de abril de 2011

A FÚRIA DOS TAXISTAS

Arte de George Grosz


Um dia os taxistas iriam se vingar de nossas indiscrições no banco de trás dos carros, das bebedeiras inomináveis, dos namoros escondidos, dos negócios em alto som. Um dia seria o julgamento, a explosão dos gravadores e taxímetros. A resposta para todas aquelas conversas e safadezas que eles foram obrigados a ouvir - e fingir que não estavam prestando atenção - durante um século de ofício.

A represália aconteceu comigo na sexta. Ia de táxi do bairro Pinheiros a Perdizes em São Paulo. Observando minha quietude tímida, todo o silêncio é envergonhado de manhã!, o taxista arreganhou os lábios e começou a discar o celular. Pensei que daria um recado rápido para familiares, já que ele estava dirigindo, ou manteria um discreto papo com o uso do headphone, já que eu estava ali. Que nada: ele colocou a ligação em viva voz, no rádio do carro – a nitidez me permitia transcrever as escalas do pigarro, do suspiro, do soluço do outro lado da linha.

Minha cordialidade levou um choque. Para não ser multado com o aparelho na mão, o taxista inventou uma maratona de telefonemas abertos. Agora seria vítima de um falatório ininterrupto, e não dava nem para pedir que baixasse o volume. Foi falando com ansiedade macabra. O mais grave é que a interlocutora não tinha noção de que eu participava da cena.

- Tentei ligar para você três vezes hoje, não atendeu nenhuma... Tá de brincadeira, hein?

Pelo tom áspero da reprimenda, concluí que fosse sua esposa. Liguei meu GPS, para seguir os dois na conversa. Vigiaria as sobrancelhas pulando corda pelo espelhinho. Mas o diálogo logo mudou de rota e largou sua redoma de bolo:

- Quase uma semana que a gente não se vê e não posso telefonar para você no final de semana, sabe que a patroa fica na cola.

A restrição revelava que se tratava de um casal de amantes. O taxista esfregava suas infidelidades na cara do passageiro, desprovido de qualquer vergonha.

Com uma voz de fumante, frágil, ela permanecia na defensiva.

- É que fiquei mal desde a última vez que nos vimos.
- O que houve?
- Comi algo que me embrulhou, e vomitei.

Aquilo que me seduziu no início como novidade foi me preocupando. Temia que revelasse uma gravidez, e ele se enfurecesse atropelando os pedestres na faixa.

- Tá tomando pílula, né?

Não precisava escutar que trepavam sem camisinha.

- Sim, meu amoreco...
- Ah, bom, passei da idade de me preocupar.
- Deve ter sido o almoço de domingo. Comi frango, salada de maionese, pepino...
- Desconfio de bactéria. Sempre tem alguma bactéria nas massas.
- Não sei, estou melhorando.

Meu estômago revoltava-se com a audição.

- Bom que não ficou enjoada de mim.
- Engoli sua porra no domingo, mas ela só me faz bem...

Naquele momento, o motorista gelou, freou o carro, percebeu que o relacionamento com o cliente não poderia ser mais recuperado. Desci ali mesmo, acho que nem paguei.

Queria ter cuspido pelos ouvidos.

sábado, 9 de abril de 2011

O MAIOR MENTIROSO

Fotos de Mauro Vieira

Não fale a verdade. Dói. Esse é o lema de Nova Bréscia, a cidade da mentira, o que é diferente de ser uma cidade de mentira.


No Vale do Taquari, a 160 quilômetros da Capital e com uma população de 3 mil habitantes, o acanhado município de Nova Bréscia ganhou o respeito pela imaginação delirante de seus trovadores. A cada dois anos, realiza a Copa do Mundo da balela, reunindo candidatos de todo o país, numa engraçada disputa para descobrir quem é o mais mentiroso. O vencedor recebe um Celta zero-quilômetro e a desconfiança por toda a vida, de que não está falando a verdade.


O concurso está completando 30 anos e avalia originalidade, interpretação, conteúdo e respeito ao tempo de apresentação (de cinco a sete minutos). Mais de 50 contadores de histórias lutam com as palavras no último final de semana de abril. A disputa dura duas fases, uma eliminatória no sábado e uma semifinal no domingo, que costuma receber um público de 4 mil pessoas.


Radialista e comediante de Serafina Corrêa, Edgar Maróstica é o atual campeão do tradicional Festival Nacional da Mentira. Arrebatou o certame logo em sua primeira participação em 2009, com uma performance em dialeto italiano. De um dia para outro, tornou-se o maior mitômano do Brasil. Quando abre a boca, não cogita economizar bateria, seus olhos azuis piscam como farol alto na claridade.

Maróstica tem o nariz de Gepeto (e não do Pinóquio), traços rudes e uma impaciência na voz, demonstra não gostar nem um pouquinho de ser interrompido.

Ele obedece à doutrina da boa mentira, instaurada no Tratado de Versalhes, em 1919: não baixar o olhar, evitar responder o que não foi perguntado, usar algo real para não se perder na história e sustentar o resto da farsa. É assim que vive pregando peças nos familiares e amigos. Mas Maróstica tem um perfil complicado, banquete de traumas para psiquiatras.

– Deveriam me pagar para me atender – desafia.

Veste somente as peças de seu avô morto, descarta comprar roupa e entrar numa loja:

– Seria o equivalente a trair meu antepassado.

Até hoje, aos 46 anos, dorme entre o pai e a mãe, e não arca com nenhuma pontada de remorso. Sem irmão, experimentou um universo mimado, cheio de manias. Uma delas é que não precisa de mulher, não quer casar e nunca namorou.

– Mulher, para quê? Comida, minha mãe faz... – explica.

Precoce, começou a caminhar com quatro meses:

– De tão feio que eu era, ninguém me segurava no colo.

A maior dor foi quando se separou da égua Baixinha, na adolescência. Não desejou amar novamente – arrebentado de saudade daquelas crinas longas e loiras.

– O pai vendeu meu bichinho, não teve coração. E tudo porque me pegou montado nela – recorda.

Decidiu ser humorista após assistir 22 vezes As Sete Faces do Dr. Lao na sessão da tarde. Decorou as falas do filme.

– O mundo todo é um circo. Quando olhamos para um punhado de areia e vemos mais do que areia, vemos um mistério, o circo do Dr. Lao estará lá – diz.

Para não ser cobrado pela vadiagem, completa o orçamento com o jogo do bicho:

– O bicho é uma tradição familiar, desde o século retrasado, em Gênova. Em 1875, meu bisavô Buziari veio ao Brasil com esposa, 21 filhos e um filhote de mula.

O hábito que não cede mesmo é controlar os carros que passam em sua rua. Das 8h às 12h, tira fotografias dos veículos que cruzaram sua residência. São 10 anos atuando de radar informal na pequena janela da água-furtada. A polícia já pediu sua colaboração para solucionar casos. As imagens ficam arquivadas por data na adega.

– Minha brincadeira predileta consiste em adivinhar a cor e o tipo de carro que vai aparecer, descubro qual o modelo pelo som do motor.

Edgar Maróstica é o maior mentiroso do país. Não há como trocar palavras com ele impunemente. Tudo o que escrevi acima é mentira. Fui seu cúmplice, ou seu rival.

Leia a verdade sobre Maróstica abaixo.

A VIDA REAL DE EDGAR MARÓSTICA


Edgar Maróstica não mente fora do palco. É seu mandamento. Ele filosofa:

– Se mentir toda hora, não sei mais o que é a verdade para mentir no palco.

Tampouco gosta de falar alto ou reclamar, mesmo quando tem razão.

Encurvado e tímido, dedica parte do prazer ao recolhimento: mora numa chácara em Serafina Corrêa com a mulher Gislaine Mauer, 28 anos. Tem dois filhos, Johny, 21 anos, e Bruna, 18, da união anterior. Atua como comediante desde 2007, após trabalhar como produtor de eventos e shows em casas noturnas em Guaporé. Não ficou com o Celta que recebeu de premiação, ofereceu-o de presente a Gislaine.

– Ela aguenta meu mau humor para estar sempre de bom humor – ri.

A vitória em Nova Bréscia mudou sua trajetória. Gravou seu primeiro DVD e passou a ser chamado para abrir festas.

– Venho de uma tradição em que divertir é ensinar.

Dos pais, Bruno e Ibania, e da convivência com as três irmãs, guarda a lição de que só o trabalho cura pensamento ruim.










Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 34, 09/04/2011
Porto Alegre, Edição N° 16665
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quarta-feira, 6 de abril de 2011

O CASAMENTO É MEU PLANO DE SAÚDE

Arte de Cínthya Verri

Quando passei a namorar uma médica, realizei um sonho. Finalmente poderia ser um hipocondríaco em paz; desfrutar de fontes privilegiadas, efeitos colaterais emprestados e dores extravagantes; usar as tarjas pretas e vermelhas como braceletes.

Teria repouso hospitalar dentro de casa, o luxo de uma caixinha de pronto-socorro atualizada. E nem dependeria de receita.

Eu só não havia morrido por desinformação, pois não conhecia um número suficiente de doenças para comparar os hábitos com os sintomas.

Envolver-me com uma médica renderia tranquilidade enciclopédica para sofrer, encontraria alguém que acreditaria em mim, que faria vigília durante os surtos na madrugada.

Cínthya significava teatro liberado no lar: a redenção das falsas febres da escola, dos fingidos desmaios da educação física, do mal-estar no recreio antes das provas.

Aquietava-me a perspectiva de que cada conversa fosse uma consulta. Levantaria o fone:

— Amor, estou tonto, com lábios secos e indisposição estomacal, o que tomo?

E ela me responderia, rápida e certeira, como portaria de hotel.

Para mim, médico não deve salvar, seu papel é crer somente na minha doença, ainda que seja inventada.

O que aconteceu com Cínthya foi o contrário. Ela é realista como o SUS. Nunca tem vaga. Nunca tem leito. Não me permite ficar enfraquecido, já me amaldiçoa. Diz que não me valorizo, e que ela não é uma babá. Assim, com grito e tudo, com o rancor da ternura. Muito mais veemente do que minha mãe e minha avó.

É bem provável que me bata se aparecer reclamando do cansaço — não arrisco, seu silêncio é impaciente para testá-lo com brincadeiras.

Ela me ama em excesso para aceitar que eu me destrua impunemente. Como marido de médica, espera que me cuide e dê o exemplo.

— Nem vem reclamar, é grandinho e não respeita seus limites.

Instala-se em mim uma orfandade. Em vez de contar qualquer coisa de errado, cabulo dores e enxaquecas, escondo formigamentos e sinais, apago as bulas nos olhos.

Não é exagero de minha parte. Nunca tenho certeza se ela está me acarinhando ou fazendo um diagnóstico. Talvez os dois, sempre. No último trimestre, ela estranhou meu apetite por chocolate, as alergias estranhas, a indisposição permanente, o peso súbito nas pernas, e desconfiou de diabetes. Encheu meus ouvidos semanas a fio em nome do exame de sangue — virou oração antes de dormir.

— É desse modo que se preserva?

Até que tomei vergonha, jejuei e cumpri o calvário no laboratório do hospital. Buscava um pouco de tranquilidade, o bônus de uma vida para gastar no fliperama das veias.

No dia seguinte, ao meio-dia, Cínthya telefona. Foi um aperto na garganta, vá que o resultado indicasse a doença.

— Amor?
— Sim, tá tudo bem?
— Não é diabético.
— Ufa, falei que não havia nada, vamos comemorar.
— Não!
— Que foi agora?
— Seu colesterol é de velho, 260, 260!, tem que reduzir os doces, a carne, o ovo…

Não tive saúde para ouvir as inúmeras restrições. O que fiquei sabendo é que toda médica odeia ser enfermeira.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 4 de abril de 2011

SOU TODO SAUDADE

Arte de Lauren Hamilton

A saudade é uma separação que inventou o casamento.

Não é reencontrando minha mulher que desfaço o mal-estar de ter estado longe. Ainda que seja uma hora, um dia, uma semana.

Sentir saudade agora é sentir as saudades de minha vida com ela.

Saudade é uma experiência que não termina de terminar.

Com a saudade, não sinto falta dela, mas do que sou com ela.

Saudade é vaidade. Lamento a própria ausência, apesar de parecer preocupado com a ausência dela.

Saudade é o luto do meu pensamento, a morte do meu pensamento. É nunca mais pensar como solteiro; é pensar como casado daqui por diante. Jurarei que minha risada é mais extravagante em sua companhia, de que sou mais elegante em seus ombros, de que o mundo gosta de nos ver abraçados.

Saudade é não se bastar mais, é depender de alguém para continuar sendo. Depender de alguém até para deixar de ser.

Com a saudade, finjo que me preocupo com minha amada, mas é apenas um jeito de me preocupar comigo. Ela não está mais perto para me melhorar, me antecipar.

Não é que posso perdê-la, eu é que posso me perder longe do que já fui com ela.

Saudade é uma soma daquilo que não somos quando o outro se afasta e daquilo que somos quando o outro está junto. É a certeza de nossa insuficiência. Representa um desfalque da personalidade. Passo a me dar conta de que somente existo para me exibir à ela. Isolado, tenho a sensação de engano, de boicote, de que não nasci inteiro, de que não morrerei inteiro. Minhas palavras ficam tímidas; meu rosto, desafinado.

Saudade é imaginar por dois não sendo mais nenhum. É agir solitário no plural.

Não é uma generosidade, mas seu contrário: um profundo egoísmo; não queremos que amada se distancie para que ela não descubra nossa desimportância. No fundo, é o medo de que a nossa companhia não sinta saudade. O receio do fim. A primeira histeria. A primeira crise de nervosismo.

Saudade é uma covardia corajosa, uma ansiedade cheia de paciência, uma preocupação despreocupada. É se ofender elogiando outro, é se elogiar ofendendo o outro.

Saudade é uma antecipação do abandono. Uma despedida provisória que dói igual a um desenlace definitivo. É um aceno que não entrega a mão ao ar, um cumprimento que não fecha os dedos.

A saudade é acordar na sexta como se fosse sábado. É vestir nossa roupa predileta para permanecer em casa. É arrumar a cama para dormir no sofá.

A saudade surge antes da saudade. Definimos dentro do fato qual será a lembrança de que sentiremos saudade. Sentimos saudade no meio da experiência.

Saudade é uma alegria entristecendo.

Porque toda alegria só será definitiva depois da saudade. Depois da tristeza.





Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 5, 04/04/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16660

sábado, 2 de abril de 2011

HARÉM DAS MARGARIDAS

Território de marmanjos: homens têm de se virar na arte da sedução. Foto de Emílio Pedroso

Se você, leitora, lamenta a estatística de duas mulheres para um homem no país...

Se você diz que é injusto que exista uma população feminina majoritária no RS de 51,5%...

Se você não aceita a média de 94,8 homens para cem mulheres no Estado...

Se você chora a diferença de quase 41 mil mulheres a mais, saiba que, em algum lugar do mundo, a vida é diferente.

Santa Margarida do Sul é o harém cobiçado em todo chá de panela. É o município gaúcho com a maior concentração de testosterona por metro quadrado (atrás somente de Charqueadas, que tem a liderança invalidada devido aos presídios masculinos).

A 292 quilômetros da Capital, a simpática cidadezinha de 2 mil habitantes apresenta 118 cavalheiros para cada grupo de cem moças. Andar em suas ruas de terra batida é o equivalente a percorrer os corredores de um internato rural.

– As mulheres estão em extinção na cidade – desabafa o industriário Elias Goulart Seixas, 53 anos.

– No restaurante, vejo apenas barbado palitando os dentes.

O território tem muitas peculiaridades: mulher entra de graça nas festas, macho paga o dobro; as fofocas são feitas pelos marmanjos; não se verá briga ou discussão de jovens por namorado.

– É uma situação confortável, sobra homem. Não puxamos os cabelos uma das outras, muito menos nos gastamos em intriga – afirma a bem-humorada Cinara Silveira, 49 anos.

Casada durante 23 anos, ela exemplifica a tranquilidade com a aproximação silenciosa que teve com o marido, Rubemar Faria.

– Foi um beijo de cara. O que faltava era o beijo. Depois do beijo, vieram todas as palavras – lembra.

Alegria delas, desconsolo deles. O domador de cavalos Douglas Steffen Machado, 19 anos, precisa viajar a São Gabriel para obter melhores resultados na arte da sedução. Cansou de ficar encalhado nas noites margaridenses.

– O ideal seria a prefeitura promover o turismo do amor, excursões de mulheres a nossa terra, para embelezar a cidade – inventa Machado.

O capataz Rodrigo Castanho Sachenave, 24 anos, também critica a falta de oportunidades de flerte:

– É uma solidão de laçador, recomendo treinar no espelho e não errar cantada.

A desproporção ajuda as mulheres a enfrentar preconceitos. Cristina Moraes Siqueiro, 22 anos, se apaixonou pelo pecuarista Adonai Lopes Lemos, 68 anos, que tem a idade de seu avô.

– O filho dele foi colega de escola do meu pai, entende? Tive liberdade para amá-lo sem ser criticada – lembra.

A vantagem numérica masculina alterou o quadro de aproximação entre os sexos. Com um maior número de opções, as mulheres é que tomam a iniciativa. A caça é o caçador, cumprindo a sociedade idealizada pelas feministas.

– As mulheres atacam, soltam seu charme, exercitam sua independência, não levam desaforo para casa, não esperam que ele se aproxime. Os sujeitos se encolhem nas cadeiras! – explica Viviane Goulart, 29 anos, funcionária da agência de Correios.

Sandra Martins, 31 anos, balconista de um posto de gasolina, concorda:

– Os solteiros têm medo de mim. Toda mulher que fala demais parece assanhada.

No Rio Grande do Sul, o casamenteiro Santo Antônio cedeu seu lugar no altar para Santa Margarida do Sul.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 34, 02/04/2011
Porto Alegre, Edição N° 16658
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sexta-feira, 1 de abril de 2011

BELA ACORDADA


Gaúcho como ela, o poeta e cronista FABRÍCIO CARPINEJAR aceitou nosso desafio: explicar o que GISELE tem que a torna inspiradora para as MULHERES e irresistível para os HOMENS.

Gisele Bündchen não é uma beleza finda, uma beleza didática, uma beleza que se vira a página. É uma beleza misteriosa, amamos por não entendê-la. Há algo que sempre nos escapa. Uma duplicidade permanente. Como o sol de noite. Como a lua de dia.

Ela é extremamente feminina, mas carrega traços masculinos e fortes, germânicos e duros. Tem uma boca grande, o queixo grande, a testa grande, o nariz grande. O que ficaria desproporcional em qualquer outra face, nela é harmonia, coerência luminosa, constelação fechada. É a perfeição da poesia superando o resultado da lógica.

Os símbolos sexuais do século passado quase desmaiavam nas imagens. Marilyn Monroe, Ava Gardner e Greta Garbo, por exemplo, caracterizavam-se pelas pálpebras semicerradas, como se estivessem indo dormir ou levantando para o café da manhã. A feição adormecida revelava uma submissão, uma inclinação doméstica; a mulher sedada, anestesiada, vulnerável. Os olhos de cima para baixo, com a leve inclinação da cabeça, diziam sim ao mundo masculino, condicionados a somente oferecer prazer.

Gisele traz finalmente uma beleza acordada. É a primeira vez que surge um ícone feminino curioso, ávido, atento. Gisele está faminta de ver e saber o que está vendo.

Rompe com o padrão de Bela Adormecida, discorda da sensualidade da tristeza, interrompe a chantagem da melancolia. Sua mirada é invertida, de baixo para cima, corajosa, otimista, questionando nossas verdades e princípios. É o almoço do olhar. A igualdade de olhar. A tourada do olhar.

Ela não precisa de ninguém, precisa de si.

Marilyn, a antecedente mitológica de Gisele, pedia “Por favor”. Gisele pede passagem. A primeira lança uma contemplação lânguida, órfã, de alegria retraída; a segunda, uma observação convicta, decidida, independente.

Gisele tem fé em sua felicidade; não confiante demais a ponto de ser arrogante, nem de menos a ponto de ser influenciável.

Suas opiniões convergem para a autonomia. Além de pensar o que fala, pensa o que pensa. Palpita sobre temas polêmicos, não se dobra a uma tendência dominante.

Em vez da intolerância própria do famoso, age compreensivamente diante do contraponto e esclarece atitudes. É unânime (não há mais como negar sua importância histórica) enquanto muitos de sua área são consensuais (filhos adotivos de tendências).

Nunca aparece assustada com o alcance de suas declarações. Já apoiou o aborto (“Toda mulher deve ser livre para fazer o que quiser”), atuou como ativista social de campanha contra HIV e na defesa do patrimônio amazônico. Apesar de sua imensa visibilidade, mantém a rotina familiar longe das câmeras. Ela não procura a fama, a fama que a procura. Protege seus segredos. Até isso conseguiu: a mulher mais conhecida na atualidade conservou sua privacidade.

Talvez seja decorrência de uma espontaneidade inabalável. Não força amizade, não ostenta simpatia. Sua discrição chama para perto, chama respeito.

Envolvida pelo batimento cardíaco, ela não acentua o balanço natural. É a única que anda nas passarelas, sabe caminhar bonito. Já suas colegas dependem de esforço e desfilam. Para ela, tanto faz passar pelos bancos de madeira da Praça 25 de Julho, de sua cidade natal Horizontina (RS) como pelo gramado do Central Park. Ela simplifica, e deslumbra.

Tem noção do que produziu, mas não glorifica o passado. Não necessita explicar sua trajetória, o que lhe torna eternamente recente. Diferente da maior parte das modelos, que exaltam o percurso. Ela apenas aceita o que aconteceu de bom e de ruim e segue adiante. Não dramatiza a memória, não se elogia pela experiência. Sua juventude reside na firmeza de caráter. Na absoluta doação. Ela interpreta a sua vontade, não se violentou para atingir objetivos.

Curiosamente homens e mulheres partilham idêntica admiração. Não cativa separadamente os públicos.

Gisele é a saudade de uma vida simples. Uma vida descomplicada. Sem censuras e ameaças. Sem anorexia e bulimia. Com doce depois do almoço, e namoro com pipoca. Não é puro osso, mas angulosa, sestrosa. É alguém de dentro do universo da moda que veste o corpo da leitora. Com curvas e esquinas. Com decotes e bunda. Alguém que pode se beliscar para revelar que não está sonhando.

Gisele manteve cuidados, claro!, porém livre dos excessos repressivos. Desafiou à matemática da aparência, às formas triangulares e quadradas dos desfiles, aos recordes da subnutrição. Não perseguiu o esplendor a todo custo, preservou a saúde do pecado.

Ela não é tudo, pode ser tudo, que é muito melhor. Mais do que camaleônica, é de uma ambigüidade apaixonante, que permite várias formas e tons, várias nuances e sombras. Domina os dois extremos: é magra, alta e essencial e irradia volúpia.

Ela torna qualquer um bonito. Não nos incita a competição. É o ideal do cotidiano. É a exuberância do comum. A singularidade da mulher comum. A normalidade consagrada.

Gisele nos perdoa pelas imperfeições. Ela tem a virtude de não julgar. Nas fotografias, não está dizendo: “Seja como eu”, está dizendo: “Eu sou como você”.

A partir da ternura, cria empatia e não desperta inveja; sua beleza é filantrópica, transparente.

Gisele Bündchen exige mais e mais atenção e não enjoamos. Não é fotogênica, mas hipnótica. Ela nos desafia, o desafio é seu convite. Empareda a nossa atenção. Seu rosto é um prisma: mesmo de lado, seu rosto está de frente. É como se fosse um olhar de árvore (árvore não tem costas).

Empenhe-se para sair de suas órbitas. Impossível. Ela se movimenta parada. Prende como um magneto. Antes mesmo de ser famosa, a gente a conhecia de algum lugar. Vê-la é reprisar existências passadas.

Gisele é uma aula de pintura. Suas madeixas materializam a Vênus de Botticelli. As camadas loiras formam andares das ondas. Ela avança como uma correnteza, uma armação marinha, ela se derrama vertical.

Gisele é nossa última Renascença. Nosso derradeiro Código. Seus olhos estão rindo. Enigmáticos como La Gioconda de Leonardo da Vinci. As mesmas sobrancelhas invisíveis. O mesmo contentamento rico de sutilezas: contido, ansioso, libertador, sereno, irônico. Um espelho de nossa multiplicidade.

Repare bem na semelhança, Gisele apresenta realmente o desenho igual aos olhos da Mona Lisa. Com a vantagem de serem azuis.


Publicado na Revista Cláudia
Nº 4, Ano 50, Abril 2011
Ps. 34-36