terça-feira, 29 de novembro de 2016

SOMOS TODOS CHAPECOENSE

Divulgação

E quando uma cidade inteira morre? Uma cidade para no ar?

Quando uma cidade some e o sangue se transforma em vento?

Quando os relâmpagos emudecem. Quando as estrelas ficam envergonhadas de brilhar e o sol de aparecer.

Quando uma cidade perde as suas residências dentro de um avião? Porque cada homem era uma casa, uma família, uma esperança.

A queda da aeronave na Colômbia que levava o time do Chapecoense matou toda Chapecó na madrugada desta terça-feira (29/11). Porque Chapecó era o Chapecoense. Nunca vi uma torcida como aquela: pais, mães e filhos levantando bandeiras na Arena Condá.

As ruas se esvaziavam para ouvir melhor o coração do estádio.

Uma equipe movida pela alegria dos moradores que incentivaram com a loucura infantil do bairrismo e da gincana. Um viveiro de vozes, uma caixa de ressonância de gritos.

Uma equipe que veio de baixo, da mais simples e monocromática chuteira, da pobreza da grama em 43 anos de história, que subiu da série D para A em apenas seis anos em 2013, campeão catarinense por cinco vezes, que se manteve com prestígio na elite do futebol brasileiro e que disputaria a final da Copa Sul Americana na próxima quarta, o que seria seu maior título. Novatos no triunfo, mas veteranos na resiliência.

22 mil pessoas nas arquibancadas eram 210 mil pessoas na cidade. 74 mortos são 210 mil chapecoenses.

Não duvido que um país inteiro não tenha definhado junto em Rionegro, perto de Medellín, na Colômbia.

Jamais contaremos os mortos da tragédia. Jamais saberemos ao certo o número de mortos. Somos hoje todos desaparecidos.

PASTA DE COURO

É cada vez mais comum executivos com mochila. Homens engravatados carregando uma mochila, como se estivessem indo ou voltando da escola. Adultos feitos, mas com um toque infantil atrás das costas, tal asas de querubins.

Não levam nada nos bolsos da calça e do casaco, tudo segue nos ombros: documentos, celular, garrafinha d'água e algum agasalho na hipótese de uma esticada do emprego para a noite.

A mochila é o equivalente à bolsa feminina. Os varões se renderam à prevenção de um dia fora de casa.

E também é a herança de uma adolescência que não termina mais.


São outros homens de outros tempos. Não mais como os antigos funcionários de bancos, empresários e corretores que andavam com uma pasta de couro e precisavam de uma mesa inteira para abrir as suas verdades.

A pasta de couro está extinta, esta que já foi um grande símbolo da virilidade financeira. Quem tinha emprego importante exibia a sua pasta preta ou marrom. Ela era um cofre com senha e chave, havia espaço para papéis e canetas especiais. Muitas continham um fundo falso para ocultar documentos preciosos.

Os filhos esperavam o momento para espiar o seu conteúdo. Ficavam às voltas da chegada paterna para ver se ele abriria distraidamente a pasta. Sempre foi emocionante ouvir o claque da abertura dos dois lados. O suspense alterava o meu batimento cardíaco.

Lembro da seriedade do meu paizinho. Ele largava o pacote dos pãezinhos em cima do sofá para nos abraçar e eu me esforçava para me livrar dos beijos dele e acompanhar os movimentos da pequena maleta.

Além da pasta, ele pertencia ao time das carteiras de mão. Quando não estava a trabalho, caminhava segurando uma carteira imensa, algo como uma pochete longe do cinto. Naquela época, o cheque mandava no pagamento das contas.

Ninguém circulava com cartões de crédito, o que vigorava era o talão com espaço nobre na carteira, que permanecia esticado com duas tiras prendendo as suas pontas.

Não acho que o passado fosse melhor, eu apenas não consigo olhar qualquer coisa sem comparar. Ver é automaticamente retornar ao passado. Talvez esteja sempre comparando o que sou e não sou.

Ou comprei todas as lembranças de minha infância no fiado e só agora, depois dos 40 anos, vou pagando.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O QUÊ?

A velhice vem aos goles. Nunca se bebe o tempo num único sorvo.
A visão é a primeira a não corresponder inteiramente aos seus comandos. Você enxerga com dificuldade, mas não aceita e adivinha mais do que reconhece com rapidez. Assim tem os seus primeiros constrangimentos sociais. O neto exibe as fotos da visita ao
zoológico e você comenta: “Que araras azuis bonitas!”.

E o neto retruca que não são araras, mas macacos. Você acabou de demonstrar que é um analfabeto ecológico para a nova geração da família.
Sua teimosia em deduzir no lugar de enxergar vai lhe colocando em situações incômodas, como a de embarcar no ônibus errado, estacionar em vagas de portadores de necessidades especiais ou de realizar perguntas óbvias.
Depois é a memória que fraqueja e rasteja com esforço. Começa a brincar do jogo da forca com as lembranças.

O bonequinho recebe contornos a cada lapso e sempre termina com a cabeça a prêmio.
As palavras são apenas figuras. Ou seja, aparece a figura sem a palavra, o raciocínio é próprio de livro colorido para bebês.
O que lembrava instantaneamente custa a vir à tona. Sem wi-fi das ideias, retrocede à internet discada do pensamento. Esquece primeiro o nome das pessoas, os filhos são as cobaias prediletas. Troca os nomes dos guris, Pedro chama de Felipe, Felipe de Pedro e não acerta mais quem se aproxima. No início, dedica horas se explicando, argumenta que o filho confundido deve estar pensando em você, mas a
recorrência faz com que perca a credibilidade.

Em seguida, erra o nome trocando o sexo dos filhos, Felipe chama de Gabriela, Gabriela chama de Pedro, a confusão está instalada. Resta rir e levar os acidentes de gênero na brincadeira.
A caduquice cobra os juros. O pior se avizinha. Após falhar o nome das pessoas e não conciliar rosto com legenda, passa a tropeçar na identificação dos objetos. Liquidificador chama de secador, micro-ondas de máquina de lavar, televisão de aspirador de pó, até se contentar com o genérico Coisa: – “Liga a coisa!”, “Alcança a coisa!”, “Onde está a coisa?”.

Por fim, apaga o nome das ruas, das praças, das cidades, do país, até se tornar um cidadão do mundo. Do outro lado do mundo.

Publicado no Caderno Donna de Zero Hora
27.11.2016
Coluna Semanal

sábado, 26 de novembro de 2016

AMOR NÃO TEM DUAS CARAS



Texto Fabrício Carpinejar
Foto de Gilberto Perin

Amor virtual é também real.
Se você passa das fronteiras do verbo está traindo. Cantadas são traições. Não há desconto. Deslealdade é a infidelidade da palavra.
O que você imagina é o que você pensa e é o que você acredita. Insinuar é suspender o poder dos limites, profanar os segredos do casal e pagar o preço da confusão. Quem não se declara comprometido imediatamente está interessado em mentir.
Não existe ingenuidade retroativa.

Quem explica depois é que não foi intencionalmente claro antes.
Ninguém se apaixona no primeiro contato. Se aconteceu uma paixão fora do casamento é que permitiu inúmeras oportunidades de aproximação e sabia o que estava fazendo. Quantas chances teve de dizer não e ficou no talvez? Quantas cenas para recusar o envolvimento e seguiu adiante?
A casualidade é premeditada.
Por isso, diante da facilidade para estabelecer contatos, o romance moderno não tem mais o privilégio de duas caras.

De nada adianta sussurrar as palavras mais doces e surpreendentes a sós e não repeti-las nas redes sociais. Jurar casamento e descrever projetos dependem, ao mesmo tempo, da visibilidade cotidiana e do olhar de testemunhas.
O que você confessa a dois também precisa ser cantado. É a única garantia de autenticidade que se tem para não esbarrar em cafajestes e mitômanos.
Atualmente o amor se desdobra em dois movimentos simultâneos e complementares: amar para si e não se envergonhar de amar em nenhuma situação pública.

Nem é questão de preferir a privacidade. A defesa da relação está acima da retração e da timidez.
De nada adianta prometer dedicação eterna frente a frente e não mudar o status do facebook. É falso se comprometer privadamente e não contar com a capacidade de repetir a frase para os outros. Posts de amor devem conviver com os bilhetes dentro de casa.

Aquele que não se revela nos meios virtuais quer manter uma vida dupla. Cultiva paixões silenciosas, não se entrega de verdade e deixa a porta aberta para pendências e flertes.
Amor hoje ou é inteiro ou é falso.

Coluna Semanal
O Globo
25.11.2016

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

INFELICIDADE É



Texto Fabrício Carpinejar
Arte de Eduardo Nasi

Para ser infeliz, faça somente o que faz você feliz.
Se não tem nada no seu dia que não gosta será uma criança mimada, será um adolescente tirano, será um adulto estupidamente autoritário.
É preciso realizar aquilo que também não ama para ser diferente e abrir espaço dentro de si à compaixão e à tolerância.

Exercer unicamente o prazer consolida o egoísmo.
Guarde um pouco de antipatia em suas obrigações. Mantenha tarefas desagradáveis no trabalho e em casa. Assim não banalizará os momentos bons. Assim valorizará a resiliência diante dos momentos ruins.

Só suspira quem atravessa o desgosto. O suspiro é o riso do esforço.
O que seria do final de semana se estivesse de folga também de segunda a sexta? Como louvaria o domingo se não houvesse uma segunda-feira para detestar?
Arrume a cama mesmo sem nenhuma vontade, lave a louça mesmo bufando, estenda a roupa mesmo detestando a ordem dos prendedores.

Atenda aos chatos com simpatia, suporte os lentos com generosidade. A humildade depende do silêncio da superação.
Não gostar de algo é ter ainda algo para aprender, é uma reserva de sabedoria. Não deixe de fazer. Pode mudar e apreciar no futuro. Pode acabar transformado pela sinceridade da saudade.

Prove tudo o que não lhe agrada para não se privar de viver. Adore os defeitos para não se envaidecer das virtudes.
Repetir a felicidade é empobrecê-la. Felicidade é para ser uma exceção, não a regra. Quem só é feliz no fim é triste, pois não muda de estado de espírito para reconhecer o contentamento.

Publicado em Portal vida Breve
Coluna Semanal
23.11

terça-feira, 22 de novembro de 2016

MARAVILHAMENTO


Jurava que era um exagero romântico, uma idealização, uma declaração simpática e educada: aqueles que casavam e apregoavam que sofreram um baque olhando a noiva chegando.

Mas eu estava no altar e testemunhei. Eu casei no religioso e percebi a corrente sanguínea virando corrente elétrica. Deixei de ser homem por um momento para ser um relâmpago.

Quando a porta alta da igreja se abriu e enxerguei Beatriz de noiva, lindamente de branco, fui hipnotizado. Empalideci. Experimentava aquilo que os santos chamam de transcendência.

Nunca vi nada mais belo. Nunca. Não estava preparado e não tinha como pedir ajuda para ninguém. Era mais do que a emoção de uma criança mirando o mar pela primeira vez ou de um adolescente com a residência só para si, sem os pais durante o final de semana. Vinha, aos borbotões, todas as emoções inéditas juntas de independência correndo pela boca e eu balbuciava, não emitia nenhum som legível.

Beatriz caminhava, exuberante, o longo corredor vermelho. Eu a desposava lentamente, passo a passo miúdo que ela dava. Eu me fixava em seu rosto como quem se posiciona diante de um quadro do pintor holandês Johannes Vermeer e não encontra ângulo que diminua a beleza.

Eu ia entregando para ela o que fui e o que poderia ser. Senti tanta devoção por alguém que as minhas pernas tremiam e os meus braços paralisaram. O arrepio passava da pele para as roupas.

Felicidade não é ter controle, é perder o controle a dois. Não sorria para os outros, não fingia felicidade e segurança, eu ria de honesto maravilhamento, como um louco conversando com a lua.

Beatriz estonteante com o busto cravejado de pedras, com o véu deposto, arrastando a longa cauda de ondas. Uma sereia cantando em silêncio. Uma sereia voando. A mulher de todos os meus dias e todas as minhas noites.

Não acreditava acreditando, atingido plenamente pela fé. Eu olhava com os olhos da fé, não com os olhos do cotidiano e da objetividade. Abriu-se uma janela emperrada da alma naquele instante e pude colher os frutos dos galhos mais altos da árvore da vida.

Havia casado com ela no civil, mas nada se compara a casar diante de Deus. Desculpe os céticos e os ateus, é uma comoção tão violenta que não suportaria experimentá-la duas vezes.

Se quem morre tem um flashback do que viveu, quem casa recorda em minutos tudo o que amou na existência.

Eu dizia sim sim sim sim sim a cada movimento de proximidade da noiva. Jamais gritei tanto sim dentro de mim.

Publicado no Jornal Zero Hora
22.11.2016
Coluna Semanal

domingo, 20 de novembro de 2016

MÁFIA SICILIANA

Pretende se defender de um canalha?

Simples, elementar, ele aparenta ser um homem do lar, que cultiva temperos em horta e cheira rolhas de vinho, mas vive na rua, não distingue a rúcula do radici e apenas come fora.

A propaganda do primeiro encontro é redondamente enganosa.

Receberá você no apartamento espaçoso, brilhando, com amplo sofá e vista para o oceano de prédios, entretanto o local de orgulho doméstico é um matadouro higienizado, acabou de se livrar dos resquícios da última conquista. Tudo está arrumado e nos trinques como se fosse um maníaco por limpeza, porém não se engane, pagou faxineira para fingir status de rapaz sério e dedicado.

Ele fará questão de abrir a porta de avental e mangas dobradas da camisa xadrez, testa suada e cabelo caprichosamente desleixado.

Estará ocupado em lhe agradar e demonstrar os dotes no fogão. Fechará a porta da cozinha para intensificar os segredos e a surpresa. Dirá que é uma receita familiar, que não expõe para qualquer um, que realmente é uma homenagem. Colocará jazz de música ambiente, apesar de vibrar e conhecer de cor as letras do sertanejo universitário.

Os livros de arte em cima da mesa são de fachada, não vê diferença em Jackson Pollock e no desenho de seu sobrinho.

Só que todos os canalhas cometem um erro. Preparam um único prato: risoto de limão siciliano. Fica como um padrão de psicopatia amorosa. É uma marca da maldade, talvez um pré-requisito do sindicato.

Sugerem que cozinham bem mais do que aquele arroz empapado, a questão é que não avançam no livro de receitas.

Não entendo o motivo: todo canalha faz risoto de limão siciliano. Por que não estrogonofe? Por que não uma massa de camarão? Por que não um salmão?

Sempre risoto de limão siciliano. Como uma assinatura, um código da cafajestada.

Levam em consideração que a mulher não resiste, que a combinação não agride o regime, além de servir como preliminar para o sexo (não provoca mau hálito).

Cheiro de alecrim fresco e limão no ar é cheiro de crime, saia correndo. Não espere o dia seguinte para descobrir que ele não telefonará.

Publicado no Caderno Donna de Zero Hora
20.11.2016
Coluna Semanal

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

A ALEGRIA DA NOIVA É CATASTRÓFICA




Texto Fabrício Carpinejar
Foto Gilberto Perin

Se nascer uma espinha, se quebrar a unha, se trincar um dente, se gripar de repente, se não parar de tossir, se não dormir a noite inteira, se terminar enjoada, se começar a cair o cabelo, se inchar o dedo da aliança, se chorar e borrar a maquiagem, se rasgar o véu, se derrubarem algo em meu vestido, se o salto quebrar, se tropeçar no altar, se ninguém vier, se extrapolar a cota de convidados, se chover no casamento, se o noivo beber demais, se eu falar bobagem, se os fornecedores atrasarem a entrega, se a família brigar no dia, se a música não vingar, se me atrasar, se as palavras falharam, se esquecer os nomes dos amigos, se o nervosismo não me abandonar, se tiver um ataque de riso, se enlouquecer, se a palpitação atrapalhar os passos; e se for feliz pela vida inteira, imagina!, o que farei de mim?

A felicidade dói muito mais do que qualquer tristeza. A felicidade dói por todo o corpo.

O medo é felicidade chegando, o medo é felicidade ficando para sempre.

Publicado no Blog do Jornal O Globo
Coluna Semanal
18.11.2016

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

FIM DA RELAÇÃO NAS REDES SOCIAIS



Texto Fabrício Carpinejar
Arte Eduardo Nasi

O namoro tem leis cibernéticas, menos explícitas do que alterar o status no Facebook.

Se você recebe um e-mail de seu namorado ou namorada sem assunto é término da relação.  Lascou. É tanto ódio que a pessoa nem colocou um tema para a mensagem. A raiva sofre de pressa e indecisão.

Ou como intitular uma mensagem nesta hora sem desestimular a leitura? Ao pôr “Separação” ou “Idiota” ou “Não me procure mais”, o destinatário nem precisa ler para definir o conteúdo. Está literalmente excluído. Pode apenas descobrir o motivo, e nada mais.

Cartas sem nenhum aviso são as mais perigosas.

O WhatsApp não foge à regra. Destinado à peça teatral ou ao roteiro de cinema da vida real, quando carece de travessão, algo trágico aconteceu. Textão é sinônimo de ruptura. É alguém mandar um texto imenso e ininterrupto num lugar feito para conversas miúdas significa testamento. Você nem vê o outro digitando, de repente surge um calhamaço explicando por a e mais b o motivo do término do romance. Óbvio que a enxurrada de ofensas saiu do bloco de notas e foi copiada, recortada e colada ali. Toda a passionalidade escrita é premeditada. Tentará responder, mas será bloqueado. A foto do interlocutor desaparecerá antes de entender o que está acontecendo, para aumentar o drama e o castigo.

Monólogo é o bilhete de suicida do casal. Mais de duas páginas é um caminho sem volta. Não terá como reverter o quadro e buscar a reconciliação. O ressentimento transformou o desencanto em peça de inquérito.

Quem se se separa tampouco usa emojis. Não está disposto a brincar. É letra sobre letra, desprovida de recreios e distrações, como bula de remédio. Não há intenção de descontrair com um revólver ou uma mão rezando.

Publicado no Portal Vida Breve
Coluna Semanal
16.11.2016

domingo, 13 de novembro de 2016

FRIORENTA

Tem gente que fica irritada com fome ou com sono. Sei que está ligado a flutuações dos níveis de serotonina no cérebro, fenômeno que ocorre frequentemente quando você está de estômago vazio ou sem dormir.

A minha mulher tem um problema particular com queda de  temperatura. Mineira, solar, primaveril, acostumada a tempos amenos, muda de temperamento se sofre com o frio. Fica estressada. Baixa a resistência. Enfraquece com ares juninos.

É um arrepio que cresce em calafrio que desemboca em friagem.

Sério! É encrespar o vento que ela torna-se ranzinza.

Fui percebendo aos poucos. Demorei para registrar a sua transformação.

É Porto Alegre atingir 12 graus que começa o sufoco. Ela que é doce e compreensiva passa a demonstrar uma impaciência incomum. Seus olhos congelam.

Ela não admite mais nenhuma brincadeira, nenhuma selfie, nenhuma palavra amorosa. Endurece como uma déspota. Dita regras, censura os meus hábitos, não quer ninguém perto.

Nem adianta fingir calor com camiseta de física e bermuda. Também não serve como atenuante tomar banho frio e reclamar do suor. Ela não cai mais em meus truques baratos de ilusionismo climático.

A gentileza tampouco sensibiliza. Procuro agradá-la oferecendo um casaco nos ombros ou uma coberta nas pernas e ela se irrita ainda mais com o excesso de ternura.

O problema de quem quer ajudar alguém irritado é que, ao temer a reação, perde a pose natural, exagera no carinho e bajula. Eu sinto que ela está nervosa e me aproximo com veemência quando o certo era me afastar e respeitar. Vejo que acontece o medo da contrariedade, que me impele a intensificar o meu esforço de ajudá-la e também a minha frustração de confortá-la.

O frio não é uma briga dela comigo. Mas parece que tenho culpa por ser gaúcho e trazê-la para cá e me responsabilizo por sua fragilidade, seja condenando, seja paparicando.

Não deveria sofrer junto. Ela simplesmente não nasceu para o nosso inverno, muito menos para as madrugadas gélidas e de neblina da Serra.

O que me resta fazer, dentro dos meus limites, é deixar o controle remoto do ar condicionado sob o seu domínio. Só seguro no momento de trocar as pilhas.

Isso que ela ainda não viu o que é o calor em Porto Alegre.

Publicado no Jornal Zero Hora - Caderno Donna
Coluna Semanal
13.11.2016

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

CABIDE PARA DOIS



Texto Fabrício Carpinejar
Foto Gilberto Perin

Os objetos mais banais revelam a grandeza da fidelidade: quando você passa a ser guardião de algo do outro e precisa cuidá-lo das permanentes tentações do extravio.
Lembrar de trazer de volta um pertence que não é seu significa uma autêntica demonstração de amor.
Pois é fácil esquecer um guarda-chuva quando para de chover. É fácil esquecer um blusão quando esquenta. E ainda é mais fácil quando você não é o dono.

Minha mulher pediu que recuperasse o seu casaco de couro que ficou no espaldar da cadeira do restaurante que costumamos almoçar.
Só que eu estava em trânsito - ainda viajaria a longínqua Petrolina (PE) para talk show, sem nenhuma mala para guardá-lo. Eu me encontrava realmente avulso, com a roupa do corpo, destinado a um aloprado bate-volta.

Não têm ideia de como foi complicado me lembrar de que ele existia. Ainda mais que Petrolina é um calorão e não faz nenhum sentido andar com um casaco.
Quase deixei no bagageiro do avião - voltei quando já me encontrava na porta da saída. Quase deixei no carro do evento - estiquei a mão no banco de trás na última hora. Quase esqueci no armário do hotel - afinal, não tinha bagagem, como iria me recordar?

De quase em quase, fui me afeiçoando ao objeto, comemorando cada resgate, embalando entre os braços o embrulho como um bebê adotivo.
Não era mais uma peça feminina, mas a minha responsabilidade com o relacionamento, o meu compromisso com a palavra, o meu pacto em proteger um pertence predileto daquela que dividia a vida comigo.

Estar casado é combater diariamente o egoísmo da vida solteira. E também não se importar mais com o que os demais pensam a nosso respeito.
A minha esposa deve ter sentido o mesmo quando preparei uma surpresa em seu trabalho e lhe entreguei um balão a gás de ursinho. Ela não podia abandoná-lo sob o risco da ingratidão.
Além da vergonha que engoliu a seco diante dos colegas engravatados, ela circulou com a cordinha vermelha pelo escritório de sua empresa, entrou no táxi com a alegoria, e atravessou as ruas de Porto Alegre equilibrando a bolsa no lado esquerdo e o balão no direito.

Quando ela chegou em casa empinando o meu presente como um menina adestra os ventos de uma tempestade no corpo de uma pipa, não nego o céu limpo de meus olhos: ela realmente me valorizava mais do que o seu receio do vexame. Jamais o medo seria maior do que o nosso amor.
A covardia se esconde nos fingidos esquecimentos. A mentira nasce dos pequenos lapsos. Lembrar de si e de quem nos acompanha é sempre uma manifestação corajosa de honestidade.

Coluna Semanal
Publicado no Jornal O Globo
11.11.2016

terça-feira, 8 de novembro de 2016

CIRANDA DA INTUIÇÃO



Texto Fabrício Carpinejar
Arte Eduardo Nasi

Você nunca divide a realidade com quem você ama. É assustador. Existe um descompasso entre o que lembra e o que imagina, ainda mais quando aquilo que lembra é fruto daquilo que imagina.

Você não enxerga o que a sua mulher enxerga – tem uma equivocada distorção. É a mesma vida em distinta versão. Você apenas crê que partilham iguais emoções, mas de modo nenhum: fotografam os dias com diferentes cores. Cada um tem os seus filtros de Instagram nos olhos, apesar de dividir os enquadramentos.

Quando você está bem humorado, ela pensa que você está agressivo. Quando ela está séria e concentrada, você pensa que ela está triste. Quando você está emocionado, ela pensa que você está ressentido. Quando ela está alegre, você pensa que ela está insensível.

Em vez de perguntar (“O que vem sentindo?”), já reage diante de uma mera impressão. A hipótese serve como resposta definitiva. Não há trabalho de campo. E adivinhar é se enganar, é concluir com a nossa limitada base de dados, é determinar algo que sentimos como algo que vimos.

A telepatia reforça o distanciamento e o completo alheamento das experiências. Como você jura que conhece melhor o outro que o próprio outro, deixa de se interessar e fala em seu lugar. A profecia vai matando lentamente a curiosidade.

O casamento começa a ter dois porta-vozes de duas ausências.

Ninguém larga a mão na ciranda da intuição. O sentimento manda nos acontecimentos corriqueiros. O casal segue o calendário como se vivenciasse um patrimônio comum – este é o erro -, só que ambos carregam a sua particular herança dos fatos.

A imaginação separa o que a memória une.

Publicado no Portal Vida Breve
Coluna Semanal
08.11.2016

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

CORAÇÃO FIXO DOS PAIS

Quando você perde o celular ou ele estraga, entra em pânico. Não lembra de nenhum número de cor. Você apenas preserva os telefones no aparelho e não explora mais o raciocínio. A última vez que decorou algo com devoção foi a tabuada na infância.

Não tem mais a necessidade de anotar na palma suada da mão e passar a limpo com a ansiedade dos olhos. Não há rascunhos dos códigos.

O que você conhece da vida de seu amor e de sua família está alojada na pastinha dos contatos. Mesmo o celular da sua esposa e dos seus filhos estão lá. Vendemos a nossa memória para as operadoras. Recobraremos alguns números, mas não a ordem exata. Nossos melhores amigos encontram-se presos no chip. De um instante para o outro, o universo de referências desaparece e somos combinações de trotes e enganos.

Não existe como solicitar socorro e avisar que ficou sem comunicação. Mentaliza o desespero dos seus familiares buscando ligar freneticamente, e o seu celular mortinho. E a sua memória morta junto.
E se dará conta de que o único número que recordará será o fixo da casa dos pais. Exatamente o número telefônico que nunca mudou em sua história. Telefonará aos pais para o resgate afetivo de suas raízes.

– Mãe? Mãe? Que bom que está em casa, pode avisar a minha mulher que estou sem celular.

Engraçado que a mãe sempre está em casa quando você precisa. É a intuição materna provando a sua força.

Por mais que amadureçamos e nos tornemos independentes, jamais esqueceremos os pais. É para eles que regressamos quando precisamos de verdade. É para eles que reivindicaremos cuidados na amnésia e nos recomeços. Os pais são para sempre, mesmo que a relação seja fundada em brigas. No momento decisivo, os desentendimentos somem.

O único telefone que lembraremos é o da residência primeira, a residência onde prometemos um dia não voltar tarde.

O telefone fixo dos pais forma o escapulário nas lembranças que nos protege do mundo. Impossível de ser apagado ou de ser removido. Nenhuma tecnologia destrói a voz dos pais ensinando como discar para o endereço.

Lembro nitidamente o número …333411… assim como lembro que sempre que caía um botão na minha infância, a mãe não pedia para entregar a roupa. Ela buscava a sua almofada negra de agulhas, sentava em um banquinho em minha frente e consertava a camisa na hora. Recriava o ventre por alguns minutos. Eu sentia a linha ziguezagueando próxima da pele. Acho que, no fim, ela costurou o número do seu telefone em meu corpo para que eu fosse devolvido são e salvo.

Publicado no Jornal Zero Hora - Caderno Donna
07.11.2016
Coluna Semanal

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

DIAS NULOS



Fabricio Carpinejar
Arte de Eduardo Nasi

Há dias em que você não existirá. Empate sem gols, público vaiando; céu nublado sem sol e estrelas, abafado.
Dias em que não fará nenhuma diferença acordar. Nada dará certo. Nada vai funcionar. Nenhuma palavra trará descanso. Nenhuma atitude será compreendida.

Dias de exorcismo e penitência. Só rezará para que termine logo. Não contará depois em seu calendário, não aparecerá em sua trajetória como tempo de serviço.
Serão dias descontados por Deus no final.

Há dias em que desaparecerá, que passará o tempo inteiro resolvendo um problema que não criou e que é mera vítima. Não há como combater o mal silencioso. É a esposa que decidiu que você não é amoroso, é um colega que colocou a culpa em você por uma tarefa malfeita, é um amigo que ficou ofendido com uma piada, é um familiar que coloca para fora um trauma antigo. Discutirá horas a fio no telefone, suspenderá reuniões, queimará a agenda, almoço e jantar desaparecerão do cardápio. Restaurar a paz dependerá de uma longa guerra de nervos. Ou seja, sofrerá o maior estresse para reconquistar o que já tinha antes.

A luz vem torta e não se endireita por mais que demonstre paciência e generosidade. A educação é um amortecedor da queda, não impede o tombo, apenas suaviza os ferimentos.
É o dia fatídico em que não cumprirá aquilo que determinou na noite anterior. Viverá se explicando e justificando o seu valor.

A pedra enfileirada do dominó escapou da fila indiana levando todas as pedras organizadas da mesa. Se o liquidificador quebra, a máquina de lavar e de secar estragam juntas.
Aceite que dói menos. É um excesso de azar que se assemelha a maldição. Alguém bate em seu carro por bobagem, arranha na verdade, você não é culpado, mas sacrifica o trabalho, corre atrás de três orçamentos em diferentes oficinas e ainda precisa torcer para que o causador do acidente assuma a responsabilidade.

Ou esquece simplesmente de pagar a conta da luz – esquecer não, caiu do débito em conta – e é premiado com o escuro por 48 horas, precisando tirar segunda via e aplacar o olhar interrogador e desconfiado dos filhos jurando que você faliu.
Prepare-se para não existir alguns dias. Nem sempre a vida é nossa.

Publicado no Portal Vida Breve
Coluna Semanal
02.11.2016

terça-feira, 1 de novembro de 2016

ORAÇÃO PELA VIDA

Agradecer é mais difícil do que perdoar. Agradecer não tem necessidade, perdoar tem um interesse por detrás.

Agradecer é generosidade, perdoar é uma exigência para consertar a relação.

Perdoar é fazer o outro feliz de qualquer jeito, agradecer é fazer o outro feliz porque se quis.

Quem não agradece acha que deveria receber o melhor sempre - demonstra prepotência e arrogância.

Quem não agradece não tem humildade para sair do lugar e melhorar os seus defeitos. A preguiça e o egoísmo são vizinhos da imobilidade.

Quem não agradece um dia bonito nunca reconhecerá os dias tristes.

Quem não agradece não é capaz de diferenciar o pior do ruim porque tudo é menosprezado.

Quem não agradece jamais chora de emoção.

Quem não agradece anula o valor da família.

Agradecer é entender que aquele que nos acompanha não tem a obrigação de amar. Amar é uma escolha de cada olhar.

Quando criança, agradecia quando era levado mensalmente ao Parque da Redenção para comer pipoca e andar de carrossel, agradecia um sorvete na Banca 40 do Mercado Público, agradecia a carona de bicicleta do meu irmão mais velho. Eu também agradecia quando não acontecia nada de ruim. Não acontecer uma infelicidade é uma benção invisível.

Agradecer é homenagear a vida. É se esforçar para ter, é mostrar o que presta, é valorizar a chance, é não se entregar facilmente ao silêncio.

Agradeça para merecer, não se acostume em desprezar. Dizer "obrigado" é educar a memória e ensinar como se fabrica a saudade.

Rezar é agradecer mais do que pedir. Não durma nenhuma noite sem agradecer por estar vivo. Eu agradeço a mulher que me aguenta, os filhos condicionados a aceitar as minhas manias, os pais desesperados com a minha pressa.

Agradeço à água que me banha, ao fogo que me inspira a queimar alto, ao escuro da madrugada onde os pensamentos se amansam e as estrelas brilham mais.

Agradecer é sem motivo, sem explicação, por isso é puro e espontâneo. Perdoar vem de um conflito, de uma discussão, de uma falha.

Agradecer nasce de um acerto. Você não errou e agradece.

Perdoar é gostar contrariado. Agradecer é amar por sua conta e risco.

Quem não agradece é que jamais perdoou alguma injustiça. Ficou preso no passado, desesperançoso.

O agradecimento é repetir o perdão toda a manhã.

Publicado no Jornal Zero Hora
01.11.2016
Coluna Semanal