quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

O SANGUE CHAMA OS VAMPIROS

Educação tem que ser rápida. É pensar um pouco que perdemos a chance. É titubear que as boas intenções nunca serão concretas. É hesitar que a gentileza será somente um pensamento vão e inexistente.

Educação não tem rascunho, cópia, arquivo de segurança, repescagem. Ou é ou nunca fui. Exige atitudes determinadas. Ou o sangue bombeia o sopro benfazejo ou o vento troca repentinamente a imagem de nossas pálpebras.

Amarguei a lacuna em São Paulo. Uma senhora descia do táxi na rua Augusta. Eu estava caminhando e parei a trinta metros da cena. Vi que ela fechou a porta com dificuldade, sem força. Errou na primeira tentativa. Nesse momento, cogitei ampará-la, oferecer o braço e seguir com ela até à entrada de seu edifício. Só que me apareceu um receio imprevisto, um pudor incalculável, não quis ser invasivo, não desejei expor a sua fragilidade, todas as desculpas que vêm com a covardia, e estaquei, não me mexi para assistir ao desenlace como mais um anônimo provisório no fluxo da semana.

Não é que ela tropeçou na falha da calçada e se desequilibrou ruidosamente.

Não me deu tempo de correr – preso na distância da incerteza – e segurar o seu corpo desengonçado, em declínio com o peso da bolsa.

Os sapatos beges escapuliram dos seus calcanhares e ela bateu a cabeça no meio-fio.

Quando confortei o seu tronco com a parede do meu, procurando ligar para a Emergência com uma mão e conter o ferimento da testa com a outra, dei-me conta o quanto vacilei. Em vez de um favor pontual lhe prestava tardio socorro. O atraso do gesto transformou a timidez em tragédia. A vó acenava a cabeça dissuadindo cuidados:

– Não precisa, não precisa, me levanto sozinha.

Com oitenta e dois anos e de nome curto Lia, ela se assustou com o cortejo imediato de uma pequena multidão.

Antes ninguém se dispôs a ajudar, agora dezenas de curiosos se mostravam solícitos, inclusive eu. O sangue chama os vampiros.

Foram dois minutos de desinteresse da minha parte que quase custaram a vida de Lia. E ainda há a crença de que a falta de educação não mata.

Publicado em Vida Breve em 11/10/2017

O COBERTOR

Onde anda o cobertor preto e amarelo que era da minha avó? Tirei um dia de folga para procurá-lo em casa, subir no alto dos armários, revirar os baús e sacolas de compressão de ar. Armei-me de escadinha e desliguei o celular.

Pode ser loucura queimar o descanso mensal do serviço para uma tarefa tão ridícula, tão gratuita, tão insignificante. Mas aquele cobertor significa ainda a minha única possibilidade de abraçar a minha vó já falecida. A minha avó Elisa Margarida, que subiu aos céus em meus 10 anos.

O cobertor guarda o cheiro da residência de madeira de Guaporé. Mantém o calor do fogão a lenha. Contém o vento sussurrante do Interior impregnado em sua lã.

Herdei a peça de minha mãe quando fui morar sozinho.

Na verdade, furtei, porque ela não me daria antes de perguntar para os outros irmãos se eles deixariam e não quis arriscar.

Numa época de edredons impessoais e modernos, num tempo sem espaço nos apartamentos, de uso escandaloso de ar-condicionado, poucos guardam o autêntico cobertor de sofá.

Aquele cobertor que não é de cama de casal, mas pequeno, a ser carregado nas costas como uma capa. É um complemento do sono, para os cochilos e sestas, para a leitura sentado, para saudar o friozinho de uma janela aberta, para acolher a brisa do entardecer, para trazer saudade do café e do chimarrão.

Corresponde a um poncho deitado. Um cobertor pessoal, não familiar. Um cobertor individual, cabe uma só pessoa ali dentro em sua extensão de casaco. Um cobertor amigo da própria solidão.
E o mais enternecedor, que difere de todo enxoval, é que ele tem franjas. Franjas amarelas.

Cobertor velho de vó, para receber o selo de autenticidade, requer franjas em suas bordas. Franjas que pinicam o rosto, que provocam cócegas na nuca, humanizando o tecido.

As franjas são os cabelos loiros do cobertor – penteava-os longamente com os meus dedos, desfazendo os nós e prometendo tranças.

O cobertor honrava as medidas da avó, exatamente do tamanho do corpo dela, um sudário que restou de seu carinho.

Enquanto a minha mãe dizia para não esquecer o casaco ao sair para a rua, a vó pedia para não esquecer o cobertor quando passeava pela casa. A mãe se preocupava com o lado de fora, a vó se atinava para o lado de dentro.

Apesar da dedicação no retorno ao passado, eu não achei onde foi parar o cobertor. Precisarei repetir a expedição nas férias. Decidi que vou tirar férias para achá-lo.

Publicado em Jornal Zero Hora em 10/10/2017

SAÍDAS DE EMERGÊNCIA

A mãe devia pensar que me distraia poeticamente com os pássaros, mas apenas escapava da fundo mortal dos cruzados de meus colegas

Minha escola pública não tinha um único portão de entrada e saída. Na verdade, tinha. Mas eu não poderia arriscar. Vivia no coliseu de Roma. Não se matava um leão por dia, fugia-se dele.

Em minha turma da segunda série, havia meninos muito maiores, já de bigode, que haviam rodado três anos seguidos. Eles roubavam a merenda e criavam um método nada refinado de tortura psicológica com apelidos e ameaças. Era apenas não dar cola na prova que qualquer um já virava jurado de briga.

- Vou lhe pegar na saída!

Quando um dos membros da gangue dos repetentes dizia tal sentença em voz alta, a escola inteira espalhava o indício de briga depois do último período. Improvisava-se a arena na praça, defronte à escola, longe dos professores e das advertências do SOE. Uma escolta de curiosos e mórbidos levava o condenado para o abatedouro e não lhe permitia pensar e declinar do perigoso convite.

No momento em que alguém prometia guerra, não se admitia covardia. A pessoa marcada ficava assinalada para sempre. Até conhecer o sangue de sua boca e perder os dentes de leite.

Terminava sendo a vítima predileta: franzino, desengonçado e de fala fina. Um ideal saco de pancadas para demonstração de virilidade dos agressores.

Eu passava o recreio testando acessos de emergência. Poderia ter sido bombeiro.

Conhecia a segurança da estrutura na palma da minha mão. Pulando duas grades da casinha de jardinagem, eu chegava à rua pela lateral do prédio. Eu me vali desse atalho algumas vezes, corria pela escadaria da Rua Itaqui e contornava cinco quadras. Fiz sempre caminhos mais longos no retorno ao lar. A ida para escola durava 10 minutos, a volta demorava meia hora. A mãe devia pensar que me distraia poeticamente com os pássaros, mas apenas escapava da fundo mortal dos cruzados de meus colegas. O sinal mal soava e já disparava, encerrava as tarefas com antecedência para deixar a mochila pronta e escapulir sem perseguição. Pelo tempo apertado, às vezes, não conseguia me desvencilhar do rebanho e dos dedos em riste na minha cara. Daí fingia ir ao banheiro e descia para a quadra de asfalto do futebol, o que me restava saltar do paredão de três metros. A sorte é que uma carroça largava sacos de lixo com jornais e papéis velhos no terreno, que amortizava a queda. Preferia quebrar a perna pulando a dar ao outro a honra das feridas.

Para sair da escola, não dependia de boas notas. Exigia um tanto de preparo físico e de resiliência.

Quando não vejo saída, guardo ainda o costume de abrir as portas de meu medo.

Publicado em Donna ZH em 08/10/2017

CORAGEM DE APOIAR

É necessário coragem para trocar de planos e recomeçar. Mas ainda é preciso mais valentia para aceitar que o outro altere de repente o seu papel no relacionamento e o seu ideal de existência.

Certamente é corajoso quem muda de vida, mas heroico mesmo é quem apoia a mudança. Maridos e esposas, namorados e namoradas que compreendem a reviravolta, seguram a barra, improvisam na crise, para não deixar a sua companhia adoecer em frustração.

Não vão pesar o caminho com âncoras e chantagens. Não vão censurar as novidades pelo conforto das decisões já assumidas. Não vão limitar o seu parceiro em nome da segurança. Não vão usar os filhos como escudo para o medo. Não vão inibir a ousadia para manter o patrimônio.

Não acham que é loucura seguir os sonhos, acreditam que o maior desatino é não fazer aquilo que se gosta, por mais que a descoberta seja tardia e inesperada.

São álibis de viagens, de intercâmbios, de vestibulares, de reposicionamento de carreira. Nem uma possível distância física alimenta o ranço e o ressentimento. Sabem que o sucesso não vem fácil, porém entendem que o prazer pessoal deve vir antes. Melhor a liberdade do aperto a prisão nababesca da apatia.

Enquanto todos olham com desconfiança a desistência, eles não desaprovam, ainda que isso custe dinheiro a menos no final do mês e sugira caso psiquiátrico para a família.

Enquanto todos classificam o abandono de uma vaga estável por um ofício absolutamente inconstante e de complicada aceitação, eles criam condições para que ocorra a transição sem trauma e culpa. Abdicam das férias, de um certo luxo, daquela reserva preventiva pela felicidade de seu par. Duplicam as suas tarefas, multiplicam a sua paciência, dedicados a garantir uma retaguarda para sua companhia se encontrar. Não ostentam a privação, muito menos recuam com as adversidades.

Amar é oferecer a mão ao desconhecido e combater a covardia da inércia.

Lembro da história exemplar do britânico Dean Koontz, autor da trilogia Frankenstein e hoje um dia dez escritores mais ricos do mundo. Ele trabalhava como assistente social e como professor de inglês e reclamava que não sobrava tempo para escrever. Os finais de semana eram curtos para pôr em prática seus alentados projetos de romance. Cansada da lenga-lenga e do infinito adiamento da vocação, a sua esposa Gerda lhe fez uma proposta: que ele pedisse demissão. Em contrapartida, ela o sustentaria por cinco anos para que ele se dedicasse com exclusividade para as suas histórias. Não foi fácil, o orçamento minguou e qualquer página rasgada prenunciava o fracasso. Várias vezes ele quis desistir, e talvez só tenha conseguido o êxito pela inabalável insistência de alguém ao seu lado. Koontz ultrapassou os 450 milhões de exemplares vendidos, descobrindo assim que ninguém é corajoso sozinho. Há sempre um anjo da guarda fazendo sombra com as suas asas.

Publicado em UOL em 06/10/2017

DIGITANDO...

Quando estamos furiosos, escrevemos rápido. Nem pensamos. Empilhamos mortos no caminho da digitação: palavras trocadas, erros de concordância. Não há capricho. A língua portuguesa é a primeira a adoecer com o ataque de nervos. O ímpeto é dar o golpe derradeiro para calar a boca do afeto que agora veste a carapuça de adversário.

Frases são socos, são jabs, são tapas. Digitar é puxar o cabelo, é empurrar contra a parede.

Você que entrou no bate-boca dos dedos, que está parado em algum lugar batucando o celular freneticamente, alheio às pessoas ao seu redor, não mais deseja a pacificação, o apaziguamento, o acerto. Algo explodiu em você e não consegue calar. Fugiram as rédeas do pensamento, apenas tem a ambição de entrar cada vez mais fundo na lama. Não sabe se acredita naquilo que diz ou diz para persuadir e parecer pleno de razão.

Perdeu a pose de civilizado, sem pontos na carteira de habilitação, atropela o bom senso com fúria assassina. Traça um percurso perigoso de ofensa, que talvez não tenha volta. Faz o retorno à briga de rua, à marginalidade por debaixo dos traumas.

Casais discutindo formam longos livros no WhatsApp. O irônico é que o primeiro nem tem tempo de ler o que o segundo escreveu. Se alguém pede perdão, o outro é capaz de passar reto e continuar xingando e reiniciar o ódio sem querer. Tudo poderia terminar ali, mas a trégua da gentileza e a bandeira branca não são vistas tremulando entre tantas caixas altas e desaforos.

Quem redige não aguarda a resposta, já vai empilhando blocos e blocos de texto e cimento para enterrar viva a sua companhia. Não oferece uma segunda chance, o direito à dívida, não realiza uma repescagem das incertezas, não vacila e não treme a mão. Se parasse um pouco e saísse um instante de perto da tela, respiraria novos ares e veria uma solução.

O par não está mais conversando, e sim se destruindo em monólogos descontextualizados, destacadamente avulsos e arbitrários. Não se respondem, respondem somente aos seus impulsos. São duas solidões se matando.

Escrever com o coração fervendo é ainda pior do que escrever com a cabeça quente.

Publicado em O Globo em 05/10/2017

CASA PARALELA

Sempre estamos mobiliando uma casa paralela e imaginária com os objetos perdidos. A casa perfeita tem tudo o que a gente extraviou e não achou mais na vida. É a morada de nossas preces, concebida pela Salve Rainha e São Longuinho. Daremos pulinhos ao entrar em seu umbral.

Lá nunca faltará guarda-chuva e carregador de celular – terei um estoque para combater trovoadas e o fim repentino da bateria. Os livros que jamais localizei estarão alinhados nas estantes, por ordem alfabética. Os LPs foragidos se mostrarão intactos, de pé, ao lado do dois em um, com os plásticos de dentro nem um pouco amassados. Assim como irei me surpreender com a montanha de fitas cassete com as trilhas românticas que preparava de madrugada gravando programas na rádio (em que cortava a voz do locutor e os comerciais). Será um encanto rever as camisetas e calças desaparecidas nos cabides, que deixei em casas de colegas da escola. Não controlarei a gargalhada diante das meias avulsas, solteiras, amontoadas em cima da cama, de sumiço misterioso entre a cesta e a máquina de lavar. Na prateleira da cozinha, reencontrarei as tinhosas e malandras tampas da panela, prisioneiras de algum ralo misterioso ou Triângulo das Bermudas gastronômico – tantas e diversas que posso cobrir a extensão de meu telhado. Relógios e óculos reluzirão na gaveta do criado-mudo, com os estojos de veludo empilhados. Devo reaver a coleção de pulsas coloridas do relógio Champion da adolescência. Na escrivaninha do escritório, alinhado ao meu chamado de general, revistarei a tropa de canetas Bic, com os seus capacetes azuis. Centenas delas. Todas as canetas emprestadas ao longo dos anos.

Espanto sem igual experimentarei no quarto com o armário atolado dos brinquedos da infância, que a minha mãe deu um jeito de passar adiante. Consumirei dias montando o Ferrorama e o Autorama e reclamando da falta de espaço para concluir as tarefas. Demorarei a acertar a pontaria do Batalha Naval ou para conferir o dinheiro de mentirinha do Banco Imobiliário. Não duvido que chore ao esticar o ioiô da Coca-Cola e tentar repetir a façanha da montanha-russa com as cordas. Farei festa ao folhear os alguns de figurinhas das Copas do Mundo de 78, 82 e 86. Antes de dormir, colocarei a bolita verde perto dos olhos, como uma córnea doada pelos amigos.

É sumir algo em minha rotina que logo reaparece na residência de outra dimensão.

Um pouquinho de mim também vai junto com a saudade.

Publicado em Vida Breve em 04/10/2017

CORPO FECHADO

Eu tenho o corpo fechado. Nada é capaz de me machucar ou ferir a ponto de me anular. Cicatrizo rápido, levanto ligeiro das quedas.

Não recebi nenhuma bênção especial, não ganhei nenhum passe em terreiro na minha infância, não fui levado para nenhuma simpatia, não experimentei cirurgia espiritual.

A proteção vem de minha mãe. Quando pequeno, sempre que caía um botão, ela não pedia para tirar a camisa. Meus agasalhos contavam com um pronto-socorro imediato, um plantão de gentileza.

Ela buscava a caixinha de costura da segunda gaveta da sala e se ajoelhava diante de mim para costurar a roupa em meu próprio corpo. Pregava o botão na hora, eu sentia o vaivém da agulha perto de minha pele, a proximidade do perigo aumentava o cuidado e a salvação. Ela encilhava a linha e contornava com perícia o rasgo. Como qualquer criança presa, eu tentava me mexer e ela me advertia:

– Só um minutinho, senão vou machucá-lo.

E era condicionado a permanecer imóvel até ela terminar a tarefa. Até romper o fio com os dentes.

– Pronto, vá brincar agora.

Aquilo me fortaleceu sem que soubesse. Minha mãe, a cada peça perdida e reposta, foi também remendando as minhas dores e tristezas, desatando nós e medos, reforçando a malha de minha carne diante das adversidades da vida.

Com o poder infinito do amor materno, criou uma armadura invisível de esperança. Não somente arrumava as roupas, ela reforçava os pontos cegos de minha personalidade. Dava-me forro de abraços. Acolchoava as asas com as minhas penas.

Eu me emociono ao lembrar de sua cabeça baixa e os seus cílios rentes aos tecidos. O quanto ela rezou por mim silenciosamente naquele gesto de alfaiate.

O quanto ela acendeu velas pela minha saúde no altar de seus dedos. O quanto ela desabrochou os botões de meus olhos ao oferecer o tempo de sua fé.

Não há flecha envenenada da cobiça do outro que possa me abalar. Não há punhal afiado que possa quebrar a lealdade que mantenho com a alegria.

Eu tenho mesmo o corpo costurado contra o mau olhado, a inveja e o ciúme. Pergunte para a minha mãezinha se não é verdade.

Publicado em Jornal Zero Hora em 03/10/2017

PREPOTÊNCIA DO MENTIROSO

É muito fácil desmascarar o mentiroso. Quando pego em contradição, fica possesso e indignado. Ataca para não se ver atacado. Distrai a atenção com o escândalo.

Todo mentiroso é um canastrão, gesticula sem necessidade, abraça o ar até sufocá-lo, tem as bochechas vermelhas de ódio, transforma companheiros de longa em data em inimigos, delata os afetos para adquirir imunidade.

Todo mentiroso esperneia e se movimenta de modo frenético. Em vez de ter humildade e desfazer tranquilamente o engano, fica mais prepotente e não deseja dar satisfações. Sai de cena bufando, volta à cena aos gritos. Bate à porta, empurra a cadeira, os objetos sofrem à sua volta.

Todo mentiroso ameaça, como um profeta de rua. Antecipa o apocalipse por tê-lo posto à prova. Já começa a inventar castigos e reprimendas como o fim da amizade e o término da relação. Prefere acabar a confessar.
Todo mentiroso não se desculpa. Pelo contrário, imagina o acusador pedindo perdão de joelhos pelo mal-entendido.

Todo mentiroso se projeta numa vaga de emprego, não parando de se elogiar, destacando os seus pontos positivos, sublinhando a sua honradez e ética na tomada de decisões.

Todo mentiroso nega e nega e nega: vai soletrando não antes mesmo de ser questionado.

Todo mentiroso conversa sozinho: não escuta nada, pergunta e responde, num júri imaginário. Ocupa, simultaneamente, os papéis de advogado de defesa, promotor e juiz.

Seu primeiro movimento é desqualificar a pessoa que o colocou em dúvida. Poderia desmontar a mentira, mas leva para o lado pessoal e ofende o outro, insinuando uma perseguição.

Não apresenta argumentos, muito menos detalha o ocorrido. Diz inicialmente que é um absurdo a falta de confiança. Tenta entrar no jogo psicológico dos atenuantes, lembrando que se conhecem há tempo e não merecia tamanha desconsideração. Implicará com a lealdade, falando que jamais esperava ser agredido com um golpe baixo. Desmerece a curiosidade e a caracteriza como prova de mais alta traição.

Todo mentiroso não quer perder tempo conversando, mas tampouco cala a boca.

Como não convence com fatos, depois age como um psiquiatra. Cria diagnósticos, despeja receitas, acumula distorções, estabelece sintomas de paranoia. Fará de tudo para provar que tudo é uma loucura e que todos estão doidos, menos ele.

Todo mentiroso é igual. Abomina a lógica e recusa as provas.

Não entende que a inocência não se prova.

Os sinais são evidentes. Quem não tem razão se sente cheio de razão. Quem tem razão não se sente intimidado com o erro.

A verdade é calma e curta. A mentira é penosa e aflitiva.

A verdade é um atalho. A mentira é o caminho mais longo e sempre passa pelo ataque de nervos.

Publicado em Donna ZH em 02/10/2017

HOMÃO DA PORRA

O homem sempre recebeu adjetivos genéricos, sei lá se as mulheres achavam que ele não merecia. Talvez tivessem razão.

Para os que apresentavam aparência atraente, empregavam lindo, gostoso, tesudo. Para os que não inspiravam deleite estético, o público feminino usava frases e um pouco mais de caracteres: você é tão engraçado, você é tão carinhoso, você é tão seguro.

Finalmente apareceu uma homenagem que cabe para bonitos e feios, heterossexuais e gays, altos e baixos, gordos e magros, que ultrapassa o patamar da superficialidade: homão da porra.

Como a palavra saudade, não terá tradução pertinente em outro idioma.

É uma expressão brasileira, selvagem, que traz o mais puro reconhecimento. Tem um quê de malandragem e a reverência do aumentativo. Chega aos ouvidos como um desaforo delicioso.

Homão da porra envolve atitude, refere-se a conduta, é um sinônimo que pode ser usado tanto como admiração física quanto intelectual. Indica firmeza de princípios, coragem de ser. Vai além dos atributos do corpo.

Homão da porra não se restringe à cantada, é uma confissão de apreço. Serve ao amante, mas também ao amigo e ainda para o ídolo.

Tem virtudes de um pacote completo de televisão a cabo. Atende aos caprichos de séries, filmes e pornôs, ou a dramas, comédias e romances, atinge a todos os temperamentos e gêneros.

Homão da porra é uma nova versão do irresistível canalha, com a diferença de que o sujeito não precisa ser imprestável. Ele pode ser comportado, educado, fiel e leal e continuar sendo um homão da porra. Não é uma denominação machista, rompe com o histórico estranhamente positivo do mulherengo e do galinha. Pois o macho promíscuo era sempre endeusado como alguém indomável.

Homão da porra quebra com a fama antiga de que homem bom devia ser colecionador de mulheres, propagada por personagens como Casanova e Don Juan. Homem bom é homem bom, ponto final, sem atenuantes.

Homão da porra nos liberta dos preconceitos, atende à pluralidade do desejo, à diversidade do comportamento.

É mais uma prova darwiniana de que Adão nasceu da costela de Eva, e não o contrário.

Publicado em UOL em 29/9/2017

FABRÍCIO SAIU DO GRUPO...

Nenhuma tentativa de suicídio surte tanto efeito como sair do grupo de amigos ou da família do WhatsApp. É um suicídio virtual. Se quer chamar atenção, não há maior manobra da carência.

Não precisa barbear os pulsos ou fazer selfies cadavéricas.

Quando todos visualizarem você saindo, começará imediatamente uma torrente de fofocas: o que aconteceu? Algo foi dito de errado?

Um mal estar cobrirá o resto das 248 mensagens posteriores, num misto de constrangimento, espanto e pesar.

A maior parte dos participantes vai lhe procurar privadamente para descobrir o motivo da saída. Seu telefone não vai mais parar de tocar. Não duvide se alguém aparecer apertando o seu interfone. Ou receber um buquê de rosas com alguma frase de Augusto Cury.

Experimentamos um fanatismo nas redes sociais. O abandono de um simples grupo é visto como uma desistência dos laços. Não existe mais saída à francesa. Entrará no rol dos desaparecidos, receberá a pecha de procurado, amargará a fama de anti-social, assumirá o papel de ingrato.

Ninguém supõe que a pessoa apenas cansou de fotos e vídeos engraçadinhos abarrotando o seu canal de contato com o mundo. Ninguém admite a hipótese de que o outro se fartou da chatice das mesmas ladainhas e respostas otimistas. Até porque um meme de um grupo corre para o seguinte e você termina recebendo a mesma mensagens várias vezes ao dia. No WhatsApp, nada se cria, tudo se copia.

E não se encontra um único perfil mal humorado, nervoso, irritado, todos se mostram incansáveis piadistas. É Prozac em excesso na camada de ozônio.

Os grupos são uma seleção do que há de pior na web. Tudo o que foge de olhar aparece em seu telefone: gente caindo, gente explodindo, gente bêbada, gente cometendo bobagens. Ou cachorros bocejando, cachorros cantando, cachorros pulando de sofás. Ou crianças se fingindo de adultas, ou adultos se fingindo de crianças. E gatos, muitos gatos fofos.

As palavras são raras, os emojis invadiram a Terra. Ainda seremos devorados por emojis, os novos alienígenas com seus discos voadores de corações.

Suicídio para quê? Já vivemos uma total abdução.

Publicado em O Globo em 28/9/2017

NO CHUVEIRO COLETIVO

Eu pensava que tinha confiança. Eu pensava que tinha personalidade bem resolvida. Eu pensava que a minha estima estava em alta. Eu pensava que gostava de mim.

Até testemunhar aquele homem cantando ópera no chuveiro coletivo do Minas Tênis Clube. Ele se ensaboava e entoava La Traviata a pleno pulmão. Nem aí para os seus colegas de ducha. Fazia um show particular, bochechando vogais e treinando agudos.

Giuseppe Verdi jamais cogitou tal cena quando compôs a ópera. Talvez deixasse de escrever ao imaginar que, 164 anos depois da estreia, haveria um homenzarrão em pelo no vestiário de um clube na capital mineira gritando a sua criação.

Apesar da extravagância, não dava nem para olhar, soaria estranho e indiscreto.

Eu me senti diminuído. Nunca cometeria tamanha ousadia. Não canto sequer no box do meu banheiro. Jamais dublo canções prediletas no carro. Sofro de vergonha de cantar mesmo quando me encontro absolutamente sozinho.

Não sei o que aconteceu com ele, se é sempre assim ou se acertou a quina ou ganhou alguma herança naquela manhã ou estava simplesmente apaixonado.

A questão é que ele abusava da megalomania, esbanjava soberba, atuava como um tenor senhor do tempo.

Indestrutível. Imperturbável. Inabalável. Não ficava sem jeito por estar acompanhado. Oferecia uma aula de vaidade, um curso de autoajuda de graça.

Feliz em cima do seu tapete, em seu tatame de espuma, não procurava agradar ninguém, somente a si mesmo. Vivia a sua loucura com liberdade. Experimentava o auge do seu contentamento sem censura, sem receio do julgamento alheio, sem se esconder do contágio da fofoca.

Se todos fossem como ele, com a coragem do microfone imaginário, de não se importar com as expectativas dos outros, lavaríamos a alma muito além do corpo.

Publicado em Vida Breve em 27/9/2017

PRESENTE SIMBÓLICO OU SENTIMENTAL

O presente simbólico preocupa-se com o preço. O presente sentimental é feito para recuperar o nosso valor.

Há uma grande diferença entre o presente simbólico e o sentimental.

No presente simbólico, o outro descaradamente não quer gastar. Deseja comprar qualquer coisa somente para a data não passar em branco.

Vai errar com certeza o destino da escolha. Não pretende agradar, mas apenas se livrar da tarefa. Já vai com má vontade na loja. É capaz de comprar uma manta no verão, um chinelo no inverno. Tropeça na estação equivocada do carinho.

Não tem cuidado para estudar a personalidade do presenteado. É o cara de pau que aparece com pacote de meias em promoção. Quando não recorre a um brinde parado em sua própria casa, embrulhado como camisa depois de festa, com papel reciclado de alguma comemoração antiga. É uma lembrança, uma péssima lembrança, onde a avareza é que manda. O agradecimento será educado, jamais sincero.

Já o presente sentimental é igualmente barato, porém revela um conhecimento íntimo do aniversariante. É quando existe a devolução do olhar mais atento, a recuperação de relíquias de uma vida, a devolução do passado mais precioso. O presente pode não ser caro, só que envolve pesquisa e esforço para achá-lo. Significa que alguém dedicou parte do seu tempo para procurá-lo, contrariando passagens rápidas em shoppings e lojas de conveniência.

Mimo que provoca o choro, o engasgo, a autêntica surpresa, com aquela pergunta vaidosa por dentro do silêncio: "Como sabia que era importante para mim?".

Existiu uma investigação da sensibilidade, um acompanhamento em tempo real dos desejos mais recônditos. Quase como um achados e perdidos da alma. Não é somente um presente útil, é um presente raro.

Minha mulher localizou a máquina de escrever Lettera 82 verdinha numa feira de artesanato, pois guardou a informação de que comecei escrevendo poesia no modelo igual. Eu não contive a minha felicidade. Vinha até com o estojo para carregar nas viagens. Estava mais conservada do que a que perdi na adolescência. E ela ainda teve o capricho de adquirir fitas reservas para não faltar tinta nas peregrinações pelos versos. Meu filho, por sua vez, encontrou os diários de meu cineasta predileto, Tarkovski. Como ele lembrou? A gente imagina que ninguém nos escuta e, de repente, vem a materialização de conversas esparsas e distraídas da convivência. Minha filha construiu um abajur de papelão porque eu sempre lamentava a ausência de um objeto bonito na mesinha da sala. Ela entendeu a minha indireta, mesmo quando não contava com discernimento total daquela necessidade. Falei por falar, e fui amado em dobro.

O presente simbólico preocupa-se com o preço. O presente sentimental é feito para recuperar o nosso valor.

Publicado em Jornal Zero Hora em 26/9/2017

LÍNGUA NO CANTO DA BOCA

O homem tem a incômoda língua para fora quando se esforça. É carregar algo ou gostar de uma situação que ele põe a tramela no canto da boca.

De repente, não mais do que de repente, prepara um wrap dobrando a sua língua.

Parece um louquinho com camisa de força. Uma criança fazendo careta. Um cachorro com sede. Não traz seriedade, não inspira confiança.

A língua para fora sugere problemas motores incontornáveis. Assusta quem dividimos intimidade, ameaça quem nem conhecemos.

Nenhuma mulher gosta, com a devida razão. Pois estraga a maior parte das selfies e das cenas amorosas. Isso que pode surgir no meio do sexo, com os espelhos do motel apontados para o corpo, provocando inevitáveis desdobramentos broxantes.

É um ataque epilético manso que acomete todo macho. Acontecerá jogando sinuca, levando as compras do mercado, batendo um pênalti, numa brincadeira no sofá, dançando em uma balada, levantando peso na academia.

Não há como apagar aquela porção de Coringa em nosso rosto, acalmar o Jim Carrey de nossas expressões. O contorcionismo poderia ser cômico se houvesse controle. Mas não tem como programá-lo ou desprogramá-lo. É um bug no sistema operacional masculino. Ainda corremos o risco de babar.

Trata-se de um movimento intuitivo, do princípio da linguagem, evocação da transição de gestos bucais nas cavernas, que emerge sem percebermos nas tarefas que exigem grande concentração. Só identificamos quando alguém chama atenção, mas já não existe desculpa convincente e reparo sociável imediato.

Às vezes, quando a esposa coloca a mão em meus lábios, não é para me silenciar, é para devolver o monstro ao seu lugar. Outras vezes quando ela me surpreende com um beijo não significa arrebatamento, é apenas uma mordaça, um selinho constrangido, destinado a interromper a vergonha de qualquer jeito.

Publicado em Donna ZH em 24/9/2017

MACHISMO É AUSÊNCIA DE SOLIDÃO

O homem começará a respeitar a mulher quando tiver solidão, quando ficar só por um tempo. Só, completamente só, não solteiro. Só!, segurando as dúvidas e os seus próprios pensamentos. Enquanto não for livre, não respeitará a liberdade imprevisível da mulher.

Ele até já aprendeu a ser pai, mas não aprendeu ainda a ser marido. Pois confunde a esposa ou como uma mãe, onde transfere a chatice das responsabilidades, ou como filha, onde controla os passos com ciúme e possessividade.

Quando entende a mulher como mãe, repassa a ela o papel autoritário de censora que restringe e não lhe deixa fazer as coisas que gosta. Quando entende a mulher como filha, inferioriza a companhia como se não fosse capaz de definir as suas preferências, requerendo tutela e controle. Em ambos os casos, não aceita que a mulher o abandone e se afaste. Pois as figuras de mãe e de filha são para sempre e não podem jamais virar as costas. Em sua construção mental, não acolhe a ideia de independência.

Sua dificuldade é aceitar o não, o fora, a recusa, o fim, os afetos provisórios, a felicidade enquanto é possível. Ele casa ou namora para ter alguém à disposição. O machismo é a escravidão dos laços, a escravidão disfarçada de eternidade.

Se ele desfrutasse de solidão, não exigiria a dependência nociva. A mulher o escolhe diariamente e tem total direito de cansar da relação. O direito de ir e vir é o princípio básico do amor.

Mas o homem não cultiva a solidão para compreender que o fim não é abandono, que dar adeus não é uma ofensa pessoal.

Se ele contasse com o lugar em si para voltar com o término do romance, não seria refém de sua passionalidade (ou está comigo ou contra mim).

O homem que agride é o que não suporta a solidão. Basta a mulher dizer que vai embora que ele prende, chantageia, constrange, humilha e mata.

Só que ele teme a solidão, entende infantilmente a solidão como castigo, naquele espaço de confinamento imposto pelos pais: fique em seu quarto até pedir desculpa.

Põe, a todo custo, a sua alma para longe do lar, forja uma alma pública a provar resistência e força. Ele emenda relacionamentos para não sofrer com as perdas. Não respeita o período de luto, de digestão do que deu errado na convivência para se envolver novamente. Ele não lava as suas cuecas no box do chuveiro, não enxerga a sua intimidade. Mantém casos e rolos mesmo quando solteiro. E também sabe chorar, chorar de verdade, pois chorar pressupõe casa vazia, chorar pede descontrole, a voz não virá grossa, e sim fina, distorcida, de gás hélio.

Não se permite o choro sincero, miado, em que não há como decifrar o que a pessoa disse, já que as palavras são completamente ilegíveis. Choro maiúsculo, com o rosto vermelho, inchado, como um ataque de abelhas-africanas. Choro de interdição, sem encarar o outro de modo nenhum (não se chora de cabeça levantada). Choro honesto, acovardado como deve ser, de boca aberta, não conseguindo respirar direito, desfalcado da elegância do lenço ou do papel higiênico para assoar o nariz, limpando a tristeza de qualquer jeito na manga da camisa.

Todo homem precisa se questionar: quantas vezes na vida chorei por mim, inteiro, contínuo, encharcando o travesseiro a ponto de mofar o colchão? E não num enterro ou numa perda. E não diante de alguém.

Chorar por si é a prova de solidão. A solidão masculina nos salvará do machismo.

Publicado em UOL em 22/9/2017

OS DEFEITOS SÃO CONSEQUÊNCIAS DAS VIRTUDES

As cobranças de um relacionamento não são para corrigir defeitos. Na maior parte das vezes, são para controlar efeitos colaterais das virtudes.

Se o casal perceber que aquilo que pede para mudar é uma consequência da virtude, o trajeto da conversa será mais calmo e pacífico e adotará a crítica construtiva no lugar da terra arrasada.

O erro é a redundância do acerto. Por exemplo, uma pessoa persistente é virtuosa, já uma pessoa teimosa é defeituosa. No final, são a mesma pessoa. A teimosia é um excedente de uma característica benéfica, os danos de um dom. Você não deseja que a pessoa deixe de ser persistente, mas somente deixe de ser teimosa. Ninguém precisa deixar de ser, mas ser menos. Porque o lado ruim de um temperamento vem do lado bom. O lado ruim é um excesso natural do lado bom de cada um.

Tudo depende de moderação, de equilíbrio, e, de modo nenhum, requer a extinção radical de uma personalidade.

As falhas representam um extravasamento dos pontos positivos. Ou seja, resultados tortos de um cálculo correto.

O ciúme é efeito colateral do interesse e da atração. Não é apenas ciúme, é importância excessiva dada ao outro.

Se alguém é uma boa mãe ou um bom pai, a superproteção é uma decorrência da dedicação. Não deve representar uma ameaça para convivência, porém sinaliza antes o quanto a educação é feita com seriedade.

Se alguém é metódico, sofrerá com o perfeccionismo, implicação direta do capricho.

Se alguém é capaz de fazer render as suas economias, terá o prejuízo familiar de ser compreendido como egoísta. Talvez exacerbe a sua preocupação e controle nos momentos de diversão e alegria.

Se alguém é sonhador, certamente arcará com os frutos da sua distração.

Se alguém é corajoso, pode não compreender a fragilidade diferenciada dos outros e impor tarefas como se fossem absolutamente fáceis e banais. A coragem costuma desembocar no autoritarismo.

Não é o caso de nossa companhia abandonar uma ação, mas de dosá-la. O que nos incomoda parte também daquilo que nos agrada.

Publicado em O Globo em 21/9/2017

INEXISTÊNCIA FELIZ

Na adolescência, eu vinha em primeiro lugar. Eu lutava por mim. Era vaidade e também proteção. Como ninguém me entendia, assim é que eu via o mundo, eu atacava para me defender. Não admitia críticas e reclamações. Já esperneava quando alguém questionava o meu estilo, a minha bagunça, o meu quarto, as minhas roupas, o meu tempo, as minhas horas vadias num game.

Minha juventude foi cortada na raiz pela paternidade. Pai cedo, aos 20 anos, mudei de postura. Eu passei a me preocupar comigo em último lugar. A aparência já não importava tanto, os sonhos profissionais de longínquos intercâmbios não faziam mais sentido, comecei a guardar dinheiro para fraldas e criação de minha menina.

Baixei a âncora definitivamente. Sou um outro homem a partir dali. Eu me deixo para depois. Não voltei para o meu ego.

Primeiro dar banho no filho para depois pensar no próprio banho. Primeiro dar comida para o filho para depois me alimentar. Primeiro servir os filhos para depois me servir. Primeiro passear com o filho para depois me divertir. Primeiro arrumar a casa para depois renovar as amizades. Primeiro curar a gripe do filho para depois resolver a minha enxaqueca. Primeiro pagar as contas para depois garantir algum lazer e comprar a cervejinha.

As brigas amorosas e os desentendimentos ficaram em segundo plano, poderia resolver depois que o filho dormia. Só depois. Eu existo depois de mim.

A paternidade alterou o meu sono, durmo leve, vigiando os barulhos da porta, como um cachorro e sua frágil residência de papel. Nunca mais atravessei o meio-dia. Nunca mais despertei de tarde. As baladas e shows se mantiveram distantes, quase um outro país na mesma cidade. Adotei uma postura militar, guardando fôlego para a sobrevida na selva doméstica.

Eu me dedico a tarefas secretas e invisíveis para as redes sociais, como encher a geladeira, preparar a refeição, recolher os badulaques do chão, lavar a roupa, guardar a louça e brilhar o fogão. Mais da metade de minha vida não serve para postagens e likes.

Vivo uma completa inexistência, uma feliz inexistência, para meus filhos ganharem visibilidade e saúde. Deixo a minha lição na folha avulsa de meu rosto, talvez vire carta para os filhos, talvez o vento leve para longe e nada da minha dedicação mereça reconhecimento. Talvez os meus pequenos descobrirão um dia que sacrifício é cuidado, renúncia é generosidade e perder tempo pelo outro é humildade. Talvez eles nunca tomem os meus olhos entre as suas mãos, os meus olhos aflitos e esperançosos de pai, não entendam o quanto ficar perto é ir longe, mas não tenho dúvida de que fiz o possível, todo o possível, com a convicção de que amor mesmo é dado livremente e não se pede de volta.

Publicado em Vida Breve em 20/9/2017

O TARADO PELA MINHA BARRIGA



Venho hoje andando com a barriga para dentro, com um espartilho mental, quase sem respirar direito

Deixava a piscina do Grêmio Náutico União, ao lado da mulher, e um senhor veio me cumprimentar:

– Não tem vindo mais aqui, por quê?

Ele me tratava como um conhecido, mas não me lembrava dele. Muito menos quem, onde, quando. Seu tratamento era familiar com tapinha nas costas e risada bonachona. Quando fui tentar responder, amigavelmente, ele apertou a minha barriga:

– E essa gordurinha, hein? Não era assim.

O pilantra só me constrangeu diante da minha esposa e sumiu pelos corredores com o chapl, chapl das havaianas. Fiquei reprisando a última década de minha vida e seu rosto não estava fichado.

O terror é que ele vive surgindo do nada e jamais o reconheço. Nem do passado, nem da última vez e talvez a primeira vez que o vi, naquela tarde em que vestia uma sunga preta. Não guardo a sua fisionomia para me proteger, não determino a sua idade. Vivo um completo lapso. Quando recordo dos atentados, já é tarde.

Ele não muda a sua abordagem sádica, com leves variações na brincadeira. É um estranho que se aproxima e solta uma questão vaga:

– De novo com essa roupa?

Eu entro em pânico (será que venho usando as mesmas roupas?). Quando vou me explicar, ele saca o seu veneno:

– É uma roupa que não esconde a barriga.

Não sei o que fazer para fugir dele. Não engordei, não demonstro sobrepeso nenhum, mas ele consegue me envergonhar. O que mais me irrita é que encontra um jeito de alisar o meu ventre, como que me desmascarando.

Não há mais paz para caminhar no bairro. Já temo que me dará um susto detrás de uma árvore, debaixo do meu carro, de dentro do freezer do súper, sempre apontando para a minha barriga.

Enquanto a maioria das pessoas tem medo de ser assaltada, sofro um receio particular de sua aparição. Olho para os dois lados antes de entrar em algum estabelecimento.

São cinco encontros malfadados nos últimos dois meses. Suas frases são chicotadas repentinas:

– Temos um Rei Momo.
– Grávida de cinco meses?
– A cerveja empedrou.
– Quem te viu, quem te vê, virou barrigudinho.

O sujeito desconhecido criou uma paranoia tamanho GG. Venho hoje andando com a barriga para dentro, com um espartilho mental, quase sem respirar direito. Ainda morro de asma.

Publicado em Jornal Zero Hora em 19/9/2017

SESTA PERFEITA

A imperfeição é parte do plano do cochilo. A graça vem em vencer a resistência. Não pode haver facilidades, como o escuro, o blecaute das janelas, a quietude, a porta fechada.

Nada substitui o sono na própria cama. Não tem hotel cinco estrelas que rivalize. Não tem pousada de madeira na Serra que traga o mesmo conforto.

Mas sesta, no inicio da tarde, não combina com o quarto. Traz culpa e pesadelo, ansiedade e alarme de extravio.

Sesta não se faz com o consentimento. É um dos raros prazeres roubados da vida.

Para a cabeça funcionar e jamais ficar perdida depois, sesta depende de um lugar provisório, como se fossemos adormecer por descuido, ouvindo _ até desaparecer progressivamente _ os barulhos da casa.

Sesta perfeita é no sofá, sem travesseiro e lençol, sem ninho e fortaleza, com as almofadas grandes reviradas, exposto ao trânsito da família.

Ela somente prospera contra o relógio, não a favor do tempo.

A imperfeição é parte do plano do cochilo.  A graça vem em vencer a resistência. Não pode haver facilidades, como o escuro, o blecaute das janelas, a quietude, a porta fechada.

Deve-se ceder à preguiça integral: deitar logo após comer, não escovar os dentes, não realizar nenhum esforço de concentração, não mexer no celular, não convocar os neurônios a movimentos bruscos.

Sesta é queda livre. É fingir que vai ver um pouquinho de televisão e se esparramar de repente no vazio terapêutico da sala.

A mais saborosa sesta é aquela que é interrompida, mas jamais nos entregamos. Abrimos um canto do olho e não desistimos dos sonhos.

Sono fora de hora renuncia pré-requisitos. Que venha de qualquer jeito, longe do luxo. Que seja por rápidos trinta minutos, que seja uma vingança por despertar cedo no dia, que seja amontoado, dobrado e amassado, que seja deitado de roupa e cinto, com os sapatos de cabeça para baixo no chão, também roncando.

Sesta planejada somente nos piora. Sesta que nos melhora é caprichoso acidente da rotina.

Publicado em  Revista Donna, Jornal Zero Hora em 17/9/2017

EMPARELHAMENTO DOS CORPOS

Não é que a esposa e o marido perdem o seu desejo sexual um pelo outro, eles apenas não se encontram quando bate a vontade. Falta emparelhar os aparelhos, ligar o acesso pessoal no mesmo tempo e espaço.

A ausência não é de prazer, mas de pontualidade. Ambos têm o impulso da libido várias vezes ao dia, só que não estão juntos para concretizá-lo. É o quebranto da rotina. Continuam a fim, fogosos, predestinados, porém não funcionam com a hora marcada. E o fora de hora dos dois jamais coincide.

Não estão presentes no surgimento das fantasias e da eclosão dos instintos sensuais.

Ela pode se arrepiar no café da manhã, mas ele já está batendo a porta em direção ao trabalho. Ele pode ser subjugado por roteiros luxuriosos no almoço, mas se percebe sozinho, a léguas de um abraço.

Quantos momentos eróticos não são aproveitados? E nem são compartilhados?

Como a pele é apressada, nada é registrado em fatos. As sensações morrem com as pontadas. Não são comunicadas como na paixão.

No enamoramento, o casal não está sempre grudado, a diferença é que se telefonam ou mandam mensagens para declarar que se desejam. Não cansam de se pronunciar em nome da proximidade.

- Ah, pensei em você quando abria a tampa do iogurte.
- Ah, pensei em você quando vi aquela mesa enorme de madeira no restaurante.

Mesmo não desfrutando de condições de satisfazer as taras no exato instante em que aparecem, não guardam para si, perpetuam o interesse para a sua culminância no próximo encontro. Preparam o terreno revelando dedicação integral. A convergência torna-se mais real pois ela nunca deixa de ser elaborada em conjunto, ainda que no plano imaginário.

O casamento se restringe aos acontecimentos, talvez devido à exclusividade dos laços. Adota uma cartilha ingênua de fim da concorrência (com o mútuo pertencimento, não existe motivo de preocupação).

Assim a saudade não é denunciada, em especial a saudade do corpo. Marido e esposa desprezam os seus sintomas sexuais, concluindo que é bobagem falar tudo o que estão sentindo. As fantasias são experimentadas em silêncio, longe da conversa e do fermento e do formigamento dos ouvidos.

De monólogo a monólogo, a distância física se agrava em distanciamento mental e, depois, não há mais como ser espontâneo e simpático com tesão acumulado. A cobrança será feita equivocada, no formato da catarse e do juízo final. Quebram-se os pratos pelo pouco uso dos talheres.

Publicado em UOL em 15/09/2017

ÁGUA LOUCA

O adulto toma banho de noite para relaxar, para se encaminhar à cama, para se livrar das toxinas do trabalho e desacelerar a mente. É como um mantra de relaxamento, ainda mais se desfrutar de meia-luz e roupão.

Já com criança o efeito do banho noturno é o oposto: um risco aos pais. Toda ducha recarrega imediatamente a bateria da prole, renova as pilhas dos filhos.

Daí eles ficam elétricos e insones, pulam na cama, derrubam brinquedos da estante e correm, loucos, pela casa. O pijama vira roupa de astronauta, a gravidade desaparece e os objetos não param no mesmo lugar.

Na verdade, creio que as crianças são Gremlins ocultos. São Mogwais disfarçados. Quando molhados no período noturno, começam a se multiplicar, saindo bolotas das costas, similares a ovos.

Trata-se de um acontecimento sobrenatural na vida familiar. Um poltergeist cômico. Da torneira, deve chover uma aplicação de adrenalina reservada exclusivamente ao mundo infantil.

Se você carregava o seu pequeno no colo diante de tamanha exaustão, se ele não conseguia nem andar e falar, se ele não ajudava a tirar a roupa, se a gola da camiseta trancava no pescoço, se ele baixava o queixo bêbado de cansaço, é entrar em contato com a água quente que ele amanhece de novo.

Água quente é ansiolítico para o adulto e ritalina para a criança. Água quente é aposentadoria para o adulto e renascimento para a criança. Água quente é calmaria para o adulto e ataque de nervos para a criança. Água quente é chá de camomila para o adulto e café para a criança.

Não existe pesquisa científica a fundamentar a minha opinião. É achismo e, ao mesmo tempo, pura perdição de pai.

Publicado em Vida Breve em 13/9/2017

CACHORROS EXTRAORDINÁRIOS

Eles priorizam o contato e jamais abandonam os seus afetos

Cachorros nasceram para o abraço. Têm a vocação do abraço. É apenas olhar fixo para eles, que mexem o rabo e já saem do seu canto para procurar um carinho. Largam o sono, a quentura confortável, o luxo de um osso por um olhar. Deixam a sua preguiça por amor.

É um mero e banal olhar, que eles se sentem correspondidos. É um simples olhar, que logo disparam, pulam, procuram subir nas nossas pernas, querem brincar de escada para lamber as nossas bochechas.
Lealdade é disponibilidade. Lealdade é rotina. Por isso, os cachorros são fiéis. Eles priorizam o contato e jamais abandonam os seus afetos.

Lembro de dois cães extraordinários. O labrador amarelo do escultor Bez Batti. Fui visitar seu ateliê em Bento Gonçalves e ele mostrou onde esculpe os rostos. Na pedraria, ao longo do quintal, confessou que quem escolhe as pedras para a sua criação é o cachorro. "Ele tem intuição", me alertou. Jurei que era um chiste. Não acreditei até enxergar o seu ajudante canino carregando uma peça de granito com a boca. Quando presenciei a entrega da bruta joia mineral, que logo viraria escultura, eu concluí: cachorro tem alma. Alma é cuidar do outro como se fosse a si mesmo.

Fez sentido agora a história contada pela minha mãe.

Por mais sobrenatural que parecesse. Por mais conto de fadas que soasse aos meus ouvidos de guri. Na infância, o seu cachorro Pico a levava e a buscava na escola em Guaporé, inclusive transportando a sua pequena mochila de cadernos entre os dentes.

Sempre iam os dois, chutando a geada, às 6h30min, Pico e Mariazinha uniformizados pela amizade.

Quando o relógio marcava 11h50min, Pico largava as suas tarefas de farejar o mundo e se bandeava para o colégio. Dentro de si, possuía um relógio que nunca falhava. Voltavam os dois, Pico e Mariazinha, iluminados pelo sol do almoço.

Um dia, Pico não veio, já no final do ano letivo. Minha mãe, estranhando a quebra do hábito, começou a procurar o seu cachorro. Encontrou o pequeno vira-lata gemendo no arbusto do jardim. Havia sido atropelado. Ele esperou Mariazinha para morrer. Aguardou o olhar dela, o abraço do olhar, para enfim suspirar. Só se entregou depois da mirada da menina que amava. Naquela manhã, não foi Pico que buscou a minha mãe na escola, foi a minha mãe que buscou Pico de sua vida.

Publicado em Jornal Zero Hora em 12/9/2017

POR QUE TIRAR A LIMPO A OFENSA?

Metade da infelicidade é imaginação.

Ficamos ofendidos com facilidade e não tiramos a limpo a agressão, ela pode ser um mal-entendido, uma distorção, uma audição equivocada. Mas preferimos sofrer por orgulho a desfazer enganos. Nem pedimos a repetição, aproveitamos para crescer de estatura moral na confusão.

Logo nos fechamos e não conversamos sobre aquilo que foi dito e nos feriu. Entramos no modo emburrado e nos distanciamos, contrariados, guardando uma mágoa imaginária. Batemos a porta do rosto e chaveamos a respiração.

Tratamos sempre um descuido como se fosse uma ofensa gravíssima. Contabilizamos a falha em nosso caderno de fiado e preparamos uma vingança.

Quanto mais importante a pessoa em nossa vida, menos perdoaremos as pequenas vacilações. Por isso mães e pais são julgado sem direito à apelação, maridos e esposas condenadas sumariamente.

Veja o paradoxo: a intimidade não facilita a comunicação, e sim dificulta. Pois partimos do entendimento de que se alguém nos conhece tem a obrigação de nos agradar e nos proteger. A exigência por amor e no amor é insuportável.

Nenhum casal desfruta de condições de acertar cem por cento das palavras. Nenhuma amizade será perfeita a ponto de não tropeçar em uma observação.

Quantas brigas e separações poderiam ser evitadas com a reparação imediata de uma frase torta?

A paciência é confiança, a paciência é lealdade. Mas somos intransigentes a ponto de não admitir que ninguém erre conosco. É sair do script do bom humor obrigatório que não oferecemos um voto de confiança. Mesmo que tenha sido uma distração, não há desconto. Mesmo que não tenha sido por mal, não há repescagem. Mesmo que tenha sido sem pensar, não há caridade na atenção.

Personalizamos cada crítica. Levamos para o lado pessoal antes de exercer a solidariedade da compreensão do contexto. Perguntar é ter certeza, porém não queremos destruir as dúvidas que permitirão, mais adiante, cobranças e revides.

A vaidade bloqueia o discernimento. Não nos preocupamos com o que o outro está sentindo, já priorizamos a nossa emoção acima de tudo. Reativos, estamos nos defendendo sempre de críticas que ainda não aconteceram.

Em vez de cuidar com aquilo que se diz, precisamos cuidar com aquilo que se escuta.

A outra metade da infelicidade é orgulho.

Publicado em UOL em 1º/9/2017

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O PRÓXIMO

Para Jerônimo

O vô tomava um cálice de vinho no almoço e na janta. O neto terminou sendo sommelier para perpetuar a memória dos círculos na toalha de linho e da gargalhada rubra no cristal.

Todo o final de semana costumava ser sagrado para os dois. O neto adulto levava debaixo do braço a garrafa mais cara para beberem juntos. Durante quarenta anos, mantiveram a rotina, até o avô falecer. Os trabalhos começavam na mesa da varanda, migravam para a mesa da sala e terminavam na mesa do pátio, entre pedras e cactos.

O neto era o seu traficante de aromas, o seu contrabandista de sentimentos, a sua extensão ancestral.

O avô, assim que bebia o primeiro gole, dizia a mesma coisa: – É o melhor vinho da minha vida.

O neto ria da sentença, apesar de nunca definir como o novo poderia ser melhor do que o anterior. Não era capaz de acertar sempre e sempre se superar. Mas, por mais que o rótulo fosse diferente, a garrafa diferente, tratava-se do melhor vinho para o avô. Aquilo o enchia de orgulho e ele acreditava, como uma criança acredita em anjos, acredita em recompensas das formigas pelos dentes caídos, acredita em cruzar os dedos para ter sorte.

Uma tarde, antes do avô baixar hospital, ele perguntou qual de verdade tinha sido a mais encantadora degustação.

O velho, meio que tossindo e meio que tirando graça, arrematou:

– O próximo! O próximo será o melhor de todos.

No funeral, antes do caixão se enfileirar para adega de Deus, o neto abriu um vinho e derramou lentamente o seu conteúdo na tampa de vidro.

Ele foi um anfitrião enterrado a sete palmos da terra e a três dedos de vinho.

Publicado em Vida Breve em 30/08/17

LIMPANDO MANCHAS COM A SALIVA

Eu fiz aquilo que sempre odiei.

Notei uma mancha de pasta de dente no casaco do abrigo de meu filho antes da saída para a escola e tentei limpar com a saliva. Foi um gesto impensado, passional, visceral. Quando vi, já raspava a unha no tecido. Havia desaparecido o pedágio do pudor dos pensamentos e segui com os braços em alta velocidade.

— Que é isso, pai?

Ele me censurou e, então, caí em mim. Acordei do transe paterno, do coma do instinto que atinge os bichos com as suas crias. Resmunguei uma desculpa, mas ainda estava, mesmo errado, me sentindo convicto do meu ato. Veio a confusão de lembranças: ser pai é voltar a ser filho.

Lembrei que a mãe tinha a mania de tirar alguma mancha do meu uniforme escolar umedecendo o dedo em sua boca. Assim como ela virava as páginas das revistas nas salas de espera dos consultórios. Achava nojento. Preferia ir para a aula sujo a ir com o casaco cuspido. Não me faziam mal manchas de café ou do Nescau, justificáveis, eu me incomodava com a esfregação improvisada. Jamais sonhei que estaria no outro lado do balcão da alma, realizando o que abominava. Jamais imaginava que, de vítima, viraria protetor.

Mas a vida propõe a mudança generosa de lugares. Eu só não queria o meu filho entrando na sala deselegante. Ele pairava acima dos meus nojos e preconceitos. Não teria mesmo como me controlar. A educação supera condicionamentos e medos e somos mais do que a nossa mera identidade.

Não sofro com a fama de chato que possa receber por minhas tempestuosas manias.

Uma hora ou outra, o feitiço atingirá o feiticeiro. O que mais odiamos, com o tempo, será o que mais amaremos. Eu amo o que odiava. Amo fazer coisas de meus pais que odiava neles. Amo ser hoje os meus pais. Com os hábitos invasivos de mexer no cabelo dos filhos de repente, para ajeitar o penteado, ou de me agachar do nada para arrumar as bainhas das calças presas nas meias. E apanhando até terminar as tarefas: eles estapeiam as minhas mãos quando sou frenético pente ou começam a caminhar quando sou imóvel engraxate. A resistência deles com "para, pai" ou "não precisa disso" aumenta a minha ternura. Experimento cenas patéticas e ridículas publicamente.

Surgem relâmpagos de cuidados que não sei frear. Riscam o céu de minhas veias.

O clarão impulsiona o corpo e ele simplesmente obedece. A impressão é de que morreria se não fizesse. Chamava a minha mãe de dramática e agora divido o palco com ela na ópera do cotidiano.

Talvez o zelo morasse em mim desde pequeno, esperando a paternidade para aflorar.

Publicado em Jornal Zero Hora em 29/08/17

O CARÁTER QUE SE REVELA NA CONFISSÃO

Contar um segredo é a triagem do caráter.

Ou o segredo liberta ou aprisiona. É confessando algo de que nos envergonhamos que saberemos se a pessoa é a nossa amiga ou não. Não tem teste tão veemente, com efeitos mais imediatos.

O confessionário prova se o outro é leal. Expor uma lembrança triste a quem não é de confiança logo vira chantagem, logo vira moeda de troca, logo vira favor. Pode não espalhar para os demais, mas usará a informação para obter vantagens e transformar a culpa em superioridade. Aquele que não é amigo se aproveita da fragilidade para garantir benefícios. Fortalece a vítima para desmerecê-la. Levanta para cima, diz que o segredo é nada, dissuade o medo, para rir depois da queda.

Não é um amigo, porém um inimigo em potencial, um adversário disfarçado de bons modos. No fundo, não tem escrúpulos. Aproxima-se para impor os seus interesses. Está jogando sujo para ganhar recompensas fáceis. Ele se faz de compreensivo e compassivo com o objetivo de manipular a relação.

Há como prever o Judas antes da confissão. Pois Judas trai com um beijo. Será alguém que se mostra muito carinhoso de uma hora para outra. Tem pressa de saber tudo a seu respeito, sem nenhuma razão aparente. Aparece forçando a intimidade, com convites generosos e apoios nababescos.

Cuide com o que fala. Porque aquilo que falar mostrará a natureza de suas companhias. A decepção virá rapidamente na forma de um insulto e de uma ironia. No primeiro desentendimento, o túmulo de cimento das palavras não resiste às marteladas da profanação.

A traição será sempre a violação de uma confidência. Os suspeitos não mudam com o tempo. É um colega de trabalho concorrendo com você. É um antigo afeto querendo vingança. É um familiar ressentido com o passado.

Amigo que é amigo escuta e esquece, e jamais volta para o assunto. Ouve e apaga. Escreve na água, para a onda levar. Escreve na areia, para o vento cobrir.

Cumplicidade é como bebedeira, nunca lembrar o que aconteceu durante a vulnerabilidade da conversa.

Amigo que é amigo mantém a decência de uma gaveta, de um cofre, de uma chave. Demonstra a sobriedade educada e gentil de ajudar e desaparecer. Já cumpriu o papel de dividir as dores e frustrações. Não alimenta a ambição de ser maior do que o silêncio.

Publicado em Jornal Zero Hora em 27/08/17

HOMEM SÓ CASA COM QUEM COBRA MAIS QUE A PRÓPRIA MÃE

Foto: Getty Images

Homem sempre reclama das cobranças de sua esposa. Enche a boca de orgulho para resmungar que ela policia os seus horários e impõe restrições.
O que ele esquece é que a mulher somente cobra porque ele é quem quer. Ele adora cobranças. Adora ser reprimido para depois reclamar.
Faz questão de antecipar o horário que volta, expor a sua programação, dizer onde vai e com quem vai. Sem ninguém pedir, vive se explicando e dando satisfações. Já entrega o mapa de sua rotina aguardando o GPS.
Homem é inseguro e ambiciona por alguém de fora que estabeleça limites. Assim ele não executa o que não deveria, mas nunca por falta de vontade, esconde-se no pretexto da submissão. Não é que ele não deseje ser fiel, ele não pode ser infiel. Não é que ele não deseje jogar futebol todo o dia, ele não pode jogar futebol todo o dia. Simplesmente porque ela - a sua megera inventada - não deixa. Mantém a sua pose de poderoso chefão, com o detalhe de que se acha provisoriamente atrás das grades do matrimônio. Sua soltura está vinculada a um habeas corpus. Tanto que sempre parece que foi forçado ao casamento, que nunca é uma opção consciente e sadia. "Não tinha mais como fugir" é o seu epíteto para o amor.
O fetiche por cobranças o alivia da carga de sua responsabilidade. Não precisa se censurar ou dizer não a si mesmo, acusa a sua companhia de cercear e realizar o seu trabalho. Ele espalha a fama de seguir com o que não gosta e assim se isenta da participação dos resultados.
É uma dependência forjada e mentirosa. Ao mesmo tempo, ele apenas consegue amar com implicância e incomodação, com barulho e barraco. Parte do princípio equivocado de que aquela que cobra é a única que se importa e, ao se importar, demonstra que ama. Como se a chatice fosse sinônimo de atenção.
Desde pequeno, ele encontra a disciplina com as ordens maternas - cumprindo o trabalho doméstico a contragosto. Por ele, não arrumaria a cama, não lavaria a louça, não ajeitaria a sua bagunça. Como é obrigado, requisita recompensas e troféus por algo que deveria ser natural.
Por isso ele se afasta e rejeita mulheres autônomas e independentes, financeiramente e afetivamente. Tem medo de perfis livres e vacinados contra a carência, o mimimi e a chantagem.
Ele prefere uma relação simbiótica para desenvolver o mecanismo de superproteção e não vê que transforma a sua esposa em mãe. Aliás, ele só casa com quem cobra mais do que a sua mãe.

Publicado em UOL em 25/08/17

NEM NO LADO ESQUERDO, NEM NO LADO DIREITO

Foto: Gilberto Perin

O amor nos tira o lugar do sono.
Você nunca dormirá do mesmo jeito depois de casar. Nunca voltará a descansar num lado certo da cama, num canto fixo. Não será mais no lado direito ou esquerdo, será atravessado. Ocupará as linhas verticais e horizontais progressivamente.
Toda a cama estará desarrumada ao despertar. Na adolescência, você se restringia a uma metade. Podia acordar e a segunda metade resistia intocada. Era fácil arrumar as cobertas, bastava ajeitar o montinho.
O amor perturbou a sua bússola. Depois de casado, jamais terá paz. Dormir é também se desesperar por um abraço, uma conchinha, um toque. Dormir é correr por dentro dos lençóis. É o constante medo de perder alguém e o habitual resgate.
Buscará os pés de quem ama no decorrer da madrugada, aceitará a confusão do espaço, não determinará mais o que é seu, enroscará as pernas nas pernas do outro. Não mais dormirá parado como antes. Estático. Estará, pouco a pouco, migrando para o cheiro vizinho. Escorregando para mais além.
Pode se separar, pode pousar longe num hotel, pode ter a cama somente para si, não importa, o seu corpo se encontrará cruzado. A cabeça na esquerda e o tronco na direita. Qualquer que seja a noite, qualquer que seja a manhã. O ninho se espalhou pela árvore inteira. A árvore se espalhou pelo céu.
Acostumou-se a se mexer de modo incessante, a cumprir uma ginástica involuntária, a completar uma coreografia inconsciente. Afasta-se e se aproxima sem parar, vira-se para ficar sozinho mas se sente logo culpado e procura estar junto de novo.
Nunca retornará à uma posição definitiva e calma, de usar apenas uma parte necessária do todo. Enfrentará a sina igual, divorciado ou casado: um crucifixo em movimento, revirando o norte e o sul, o leste e o oeste do quarto. Trata-se de uma herança irreversível da vida de casado.
O amor amputa a tranquilidade da cama. É dormir dobrando o corpo e se amontoando com a companhia.

Publicado em O Globo em 24/08/17

NOSSOS PROFESSORES ESPANCADOS

Arte: Eduardo Nasi

Educação é disciplina, é saber ouvir, é pedir licença e não esquecer do por favor e obrigado.

Educação é respeitar os mais velhos, é levantar a mão para falar, é aprender a ficar em silêncio.

Educação não é entretenimento, diversão, passatempo, lazer, show de música, alvoroço.

Não é feita para agradar os alunos, não é produzida para elogios e bajulação, não é palco para conquistar simpatia.

Educação não é violão e refrão, é voz e firmeza.

Educação não é brincadeira, não é recreação, não é fingimento, não é missa de corpo presente.

Educação é hierarquia, é escala, é obediência, é aceitar a autoridade, é fazer fila indiana, é alinhar as cadeiras, é estudar para prova, é fazer os temas, é perder tempo para adquirir atenção e foco.

Educação é dureza, seriedade, oposição, lidar com aquilo que não se gosta, suportar o desconhecido, enfrentar a ignorância, alfabetizar a emoção, descobrir que não se pode tudo, desligar o celular, afastar-se das redes sociais, calar-se para a frente quando a vontade é falar para os lados.

Educação não é amizade, não é passar a mão na cabeça dos desaforos, não é fugir do confronto.

Educação é se incomodar, é colocar de castigo, é repreender, é suspender, é censurar, é ser democrático nas exigências, é enfrentar os interesses da turma. É não ter compaixão, é reprovar se necessário, é não dar desconto, não realizar vista grossa. É a caneta vermelha formando uma cerca para o erro não se tornar hábito.

Os professores não devem ser simpáticos, legais, amáveis – ensinar não tem a ver com obter unanimidade e faixas -, devem se mostrar somente como referências de conteúdo, metodologia e ordem.

Educação não é para ser moderna e avançada, e sim clássica e tradicional. Quanto mais antiga mais atual. Quanto maior o passado maior o futuro.

O que aconteceu com a professora na escola pública de Indaial (SC) mostra o quanto perdemos o rumo. Marcia Friggi relatou nesta segunda-feira (21) ter sido agredida por aluno de 15 anos. Recebeu uma sequência de socos após expulsar o estudante por mau comportamento.

Se chegamos ao extremo de testemunhar um professor ser espancado e achar normal, não há mais nenhum degrau para descer na degradação humana. Se encontramos atenuantes e explicações para tamanha monstruosidade já convertemos as escolas em penitenciárias.  Transformamos a tolerância em omissão criminosa. Extraviamos a civilidade para sobrevivermos como bichos, regidos pelo medo e pela truculência.

O desastre parece inexplicável, porém não foi freado a tempo quando surgiram os primeiros sinais. Começa com uma inofensiva brincadeira e se deixa passar. Depois o estudante ganha confiança, importância com os colegas, assume a sua liderança na maldade e passa a insultar o professor. Como nada é feito, ele se sente no direito de perseguir e ameaçar dentro e fora da sala de aula. Como nada nada é feito, espera o professor na saída para exercer a sua vingança verbal e hostilizar a sua família.  Como nada nada nada é feito, vê total impunidade para agredir, depois espancar e, por fim, matar. E é tarde para recuperar os danos.

Um país que não respeita o professor jamais será digno do hasteamento da bandeira e do hino nacional.

No Brasil, o giz branco está manchado de sangue.

Publicado em Vida Breve em 23/08/17

TODO MUNDO TEM UM POUCO

Com a atual evolução da medicina, não haveria super-heróis.

O incrível Hulk, antes de sua transformação verde, tomaria Rivotril e jamais perderia as suas roupas. Poderia até arrumar um trabalho irritante de teleoperador ou de segurança de boate e não mais se irritaria com nada. Batman seria medicado com antidepressivos para contornar o trauma de ter visto os seus pais assassinados em sua frente. Não iria se fantasiar de morcego nem morar em cavernas. Talvez se transformasse em corretor imobiliário. Wolverine, com alentadas sessões de hipnose e regressão, superaria seus antecedentes bastardos, já que foi fruto da infidelidade de sua mãe, Elizabeth Howletts, com Thomas Logan, o jardineiro da mansão. Representaria o Canadá na equipe de esgrima nas Olimpíadas. O Homem-Aranha, com aplicação de um forte antialérgico, estaria normalzinho e, no máximo, subiria em andaimes para pintar murais em prédios nova-iorquinos.

Todos têm em comum a sede de vingança. Todos apresentam um defeito hipertrofiado. Ninguém é herói por uma virtude. Mas por uma falha trabalhada ao extremo a ponto de virar uma arma.

Nenhum traz bons sentimentos. Recalques e transtornos é o que provoca os superpoderes. Conservam a humanidade de perdas e dores debaixo das capas e das fantasias invencíveis. Eles procuram a justiça porque sentiram na pele a falta dela.

E a maior parte dos ídolos da Marvel estaria catalogada com sintomas de esquizofrenia ou psicose ou histeria ou dupla personalidade ou borderline.

Com receitas médicas, a Liga da Justiça estaria extinta.

Numa sociedade que endeusa o equilíbrio, que os super-heróis nos devolvam a sanidade. É de se pensar que suportar um naco de sofrimento não é tão grave assim. Gera disciplina e obstinação. Produz entendimento e empatia com outro. Cria referenciais para a superação de adversidades.

Não devemos nos automedicar nem seguir tratamentos indicados por amigos, muito menos prosseguir com a intolerância máxima a qualquer mal-estar. É preciso aguentar um turno de enxaqueca ou cinco minutos de azia. É salutar não resolver tudo na hora com comprimidos.

A dor não mata, mas a falta de dor com medicação excessiva é assassina, não ajudando a nos prevenir da dependência e nos tirando a força para nos defendermos, sozinhos e sóbrios, da vida.

Os remédios são um controle falso do corpo.

E, se usados com frequência, não de modo especial e provisório, sem a devida orientação, escravizam e alteram o nosso temperamento.

A medicina serve para amparar a humanidade, não substituí-la.

Não dá para curar cem por cento os problemas — que é neutralizar a espontaneidade.

De super-herói e louco, todo mundo sempre terá um pouco.

Publicado em Jornal Zero Hora em 22/08/17

MALANDRAGEM FAMILIAR

Quando alguém de casa me pergunta se eu vi determinada coisa, não está, na verdade, me questionando, está me culpando e me pondo a trabalhar para achar. A incriminação é falsa, um oportuno artifício para ganhar a atenção. Pois tenho que provar a inocência de uma hora para outra. Sou obrigado a cessar as minhas preocupações, por mais importantes que sejam, para investigar onde a pessoa deixou o objeto. Azar dos textos encomendados, das leituras em aberto, dos contatos a responder na caixa de mensagens.

O interesse de quem perdeu é criar pânico, mobilizar a casa para resolver o desaparecimento. É parar tudo e todos em nome de uma causa pessoal. E aquele que perde sempre está atrasado, prestes a sair, com a mão na maçaneta, o que agrava a urgência.

A acusação é absurda. Não toquei naquele pertence nos últimos dias. Mas, por ser descabida, fico com vontade de esfregar na cara que não fui eu.Não percebia antes a moral da cilada. O propósito é mesmo sortear a responsabilidade para desfrutar de investigadores de graça. O babaca aqui, disposto a provar algo que não fez, dedica os seus melhores esforços na procura.

Já quem esqueceu o paradeiro do objeto costuma se tranquilizar com a movimentação frenética das equipes de busca e permanece parado, apenas coordenando de longe a gincana. Ele cria uma história de que é vítima de um enxerido, da arrumação alheia, e não se mexe. É a maior malandragem da vida familiar. Quando a coisa sumida reaparece é num lugar engraçado, deixado por nada menos do que o seu próprio dono. Ele, aliviado, enterra o assunto e a difamação dos próximos. Nem pede desculpa aos suspeitos.

Acabo sempre recrutado para caça ao tesouro. Os filhos e esposa se aproveitam da minha ansiedade. Reencontrei brinquedos escondidos nas estantes, celulares no estofo do sofá, brincos no tapete fofo da sala. Sou um Google Maps dos extravios.

Da próxima vez, não sofrerei à toa, chamarei de pronto o meu advogado.

Publicado em Jornal Zero Hora em 20/08/17

O GRANDE VEXAME QUE É DESAMAR

Foto: Getty Images/iStockphoto

Não existe maior constrangimento do que deixar de amar. Dificilmente haverá uma vergonha maior. Nem a traição, muito menos a deslealdade gera colossal timidez. Pois, com a traição e a deslealdade, você ainda acredita que pode se redimir e pedir perdão com trabalho forçado. Já a falta de amor não tem conserto. Acabou em si qualquer dúvida, qualquer vontade de discutir e melhorar. Está seco para segurar o fogo, como um tapete de cera no altar de promessas.
O amor desapareceu e, com ele, o brilho do olhar, a curiosidade da boca e a atenção do corpo. É um morto caseiro, não um morto público. Um morto somente para uma pessoa, para as demais ainda vive.
Ficará absolutamente sem graça para explicar para a parte interessada o que aconteceu. Não há um motivo específico. Deixou de amar simplesmente. Como dar a notícia para quem talvez ainda o ame? Dizer meus pêsames? Abraçar e desejar boa sorte?
Pela primeira vez, enxerga a sua companhia como uma ex. Terá que lidar, ao mesmo tempo, com a novidade, com a estranheza íntima e acalmar os ânimos.
Não é simples. Quem deixa de amar carrega a dramaticidade de um impostor nas palavras. Porque foram feitas promessas de longevidade que não surtem mais efeito. Não mentiu enquanto amava, mas agora que não ama o passado de juras e felizes para sempre será visto como uma mentira. Uma grande e deslavada mentira.
O desejo sumiu, a intenção de permanecer sumiu, não dói fazer a mala, não é mais nenhuma chantagem ou agressão, não provoca uma cena para apressar a reconciliação e vencer a discussão por nocaute, não desfruta sequer da vontade de chorar e de gritar, nada que possa ser dito mudará a natureza do fim, é apenas um desprendimento total. Quer sair dali correndo, entretanto ninguém corre num cemitério, sob o risco de pisar nos falecidos, derrubar as flores e vasos entre as lápides. Precisa caminhar devagar, rezar e enfrentar o vazio.
Estará sozinho frente a alguém desesperado, atormentado, incrédulo, quase sentindo pena. Compaixão de si pela tarefa de comunicar o que não entende.

Publicado em UOL em 18/08/17

O MEL DO AMOR

Foto: Gilberto Perin

O amor começa puro, sem mentiras, sem segredos, sem vergonha. É uma confiança absoluta, uma lealdade invejável. Como o mel lá de casa. Como o mel em todas as casas.
É só ter preguiça e comer o mel no pote, colocando a colher com a saliva de volta no conteúdo que o mel azeda. Quimicamente muda o gosto dos favos. Dali por diante, as confissões são favas contadas.
Quando deixa o pote aberto, a relação escancarada, a umidade pode alterar o mel pois terá água para uma bactéria do ódio se desenvolver.
É só narrar tudo o que acontece para os outros que o mel dos laços estraga.
O risco não é descrever apenas tudo o que acontece na vida a dois. É descrever também tudo o que não acontece, e cobrar desejos com juros e correção.
O romance fica exposto, sujeito a julgamentos e mentiras. Você perde o controle das lembranças a partir de conselhos e intromissões de familiares e de amigos.
Permite o contágio da inveja e do ciúme do mundo externo. Os dias adoecem de suspeitas. Há a descrição de pensamentos como se fossem fatos, e o exagero vai minando a verdade. Ao narrar o que se vive cada ouvinte aumentará um ponto. O que era poesia vira conto de terror e o que era conto de terror vira romance de suspense. Quem é distraído receberá a fama de indiferente, quem é estressado receberá a fama de egoísta.
A difamação sempre começa do casal para fora, não vem de fora para dentro. No momento em que se lambe a colher e se confunde o medo com a realidade e o coração sai pela boca.
Temos que selecionar o que vale ou não vale dizer do namoro ou do casamento. E guardar o que não é certeza e dividir o que é convicção. Jamais jogar fora o esforço secreto das abelhas por bobagens. Jamais inverter o trabalho dos insetos e converter o açúcar em pólen.
O mel do amor morre com a fofoca.

Publicado em O Globo em 17/08/17

DIVIDINDO OS MEDOS

Arte: Eduardo Nasi

A paixão cresce ao dividir os medos.

Os apaixonados dividem a ansiedade, dividem a falta de fome, dividem as madrugadas, dividem a excitação, dividem as distrações, dividem o formigamento, mas principalmente o medo.

Estava no voo ao lado de um casal que começava a ficar junto. Eu percebia o frescor da relação porque um estava tentando desesperadamente ser mais simpático do que o outro. Implicavam e se elogiavam, provocavam a raiva e se amansavam. Não havia trégua na guerrinha de sinais. Um tapa nos ombros e um beijo em seguida. Um empurrão e um abraço. Uma careta e um beicinho. Experimentavam uma alternância assustadora para os demais passageiros, menos para eles, entretidos em se conhecerem e testarem os limites das próprias fronteiras.

O mais fascinante é que brincavam com o medo de voar. Ambos confessavam o pânico com felicidade. Não suavam frio, não arcavam com os sintomas de imobilidade nervosa e taquicardia, não engoliam o fôlego. Demonstravam um contentamento improvável. Tudo era pretexto para dar as mãos e suspirar simultaneamente, segurando o encosto da poltrona da frente, tal barra de um carrinho numa montanha-russa.

Divertiam-se com as turbulências, com as quedas bruscas de altitude, com o aviso fúnebre para afivelar os cintos.

Reconheciam os sustos como se fossem ilusões de um parque, não consequências reais de uma aeronave.

Quando ele comentou que não se importava de morrer, pois morreria com ela, não aguentei, tive que enjaular os meus ouvidos nos fones para conquistar um pouco de paz.

Publicado em Vida Breve em 16/08/17

AS VELAS DA MINHA CORAGEM

Sou amigo de meus medos. Sei que o medo é apenas o começo da valentia.
Puxo conversa com os meus medos. Vejo o que tem dentro deles, o que eles pensam, não deixo irem embora sem uma xícara de café. Medo não é ruim, é um alerta do que é importante para nós.

Sofri muito medo na vida: de não ser aceito, de não ser amado, de simplesmente não ser. Mas fiz terapia com os meus medos, porque eles são portas para resolver e acalmar rejeições antigas.

Não tive facilidades, mesmo sendo branco, de família com recursos, heterossexual. O medo não tem cor, não tem gênero, não tem forma. O medo é democrático e se estende a todos.

Sofria por ser diferente. Diferente significa esquisito. Fala presa, feio e com o raciocínio fora da ordem normal da rotina.

Na escola, era visto como um desvio. Um erro que precisava ser eliminado. Um monstro de circo para se rir e pagar ingresso.

Afinal, a turma não sabia o que fazer comigo. Eu não me mostrava parecido com ninguém. Sofria zoeira, gozação, humilhações. E voltava para casa de mãos dadas com os meus medos.

Sofria corredor polonês, os colegas baixavam a minha calça de abrigo na frente das meninas, ameaçavam me jogar pela janela do refeitório, me esperavam na saída para me bater em grupo.

Toda vez que eu apanhava por não obedecer aos padrões, apanhava por apanhar, apanhava não entendendo de onde vinha tamanha violência e ódio por mim, já que não tinha feito nada a não ser nascer e querer estudar, simplesmente não chorava porque contava com a escolta do irmão Rodrigo, o mais velho dos guris, o pai suplente quando o pai se separou da mãe.

Eu chegava em casa machucado. Ele me recebia em silêncio cicatrizante, me botava na cadeira alta da cozinha e se ajoelhava diante de mim em máxima humildade. Tirava as minhas botas ortopédicas, as meias, limpava as feridas com água oxigenada e passava mercúrio nos meus joelhos esfolados. Pintava a linha pontilhada dos meus machucados, como um desenho preenchido pela caixinha Faber Castell 48 cores.

Em seguida, soprava as feridas para não arder.
Lembro que ele me dizia:

— Estou soprando as velas de aniversário de sua coragem!

Ele não me defendia unicamente das agressões, ele me defendia dos meus próprios medos.

Publicado em Jornal Zero Hora em 15/08/17

NÃO HÁ MAIOR COVARDIA DO QUE ENCORAJAR ALGUÉM SEM AMAR

Foto: iStock

O amor do outro pode ser perigosa vaidade.
Não há nada mais sádico do que encorajar a paixão de alguém quando você não sente o mesmo. Deseja apenas ver até onde vai. Brinca com a seriedade das intenções alheias. Percebe as cantadas e não corta na raiz, pois pretende embelezar o quarto com as rosas. Faz com que a pessoa entenda errada a mensagem intencionalmente. Não quer, não ama, não é o seu tipo, porém curte o prazer da bajulação. Gaba-se da perseguição apaixonada, das mensagens exageradas.
Poderia avisar que não está a fim e liberar a alma antes que seja tarde, antes de um envolvimento comprometedor. Só que exercita a megalomania, não renuncia a distração, aproveita-se da carência e da disponibilidade da companhia. Transforma o pretendente num estagiário de seus caprichos, um office-boy de suas ilusões, pedindo favores inúteis, sem lógica e sem emoção.
Não aceita apenas o flerte, os agrados e as juras, mas dá corda. Perversamente agradece o elogio fingindo não deduzir o interesse por detrás.
Gosta dos paparicos, é um passatempo ajudar na construção de uma idealização e depois destruí-la com um sopro.
Desperta, impulsiona, sustenta a relação platônica com frases ambíguas, mesmo longe de qualquer frenesi.
Enquanto testemunha o circo de presentes e mimos, zomba do candidato com os amigos e amigas pelas costas. Faz com que seja um príncipe na privacidade e um bobo da corte publicamente. Age com duas caras: uma visível para manter a sedução (involuntária) e uma oculta (consciente) para troçar das investidas.
Você coloca uma venda na vítima para ela cair no precipício. É muita maldade a ausência de sinceridade desde o início, com o claro objetivo de gerar enganos e frustrações.
Quem faz isso está prostituindo o amor, quem faz isso está se vingando de decepções antigas, quem faz isso possui um corredor vazio de museu na aorta.
O final previsível acentua o desastre. Quando ele ou ela se declarar, falar o "eu te amo" com os olhos ajoelhados, quando não restar mais chances de fingir, usará a frieza mais mórbida e dirá que é um engano, que houve o entendimento errado da aproximação e que gostaria que continuassem amigos.
Causar a dor de modo desnecessário é papel de covardes.

Publicado em UOL em 14/08/17

CENTOPEIA DE ESPÍRITO

Nunca vi nenhuma mulher selecionar os seus sapatos para a campanha de agasalho (até porque elas acreditam que sapato não é agasalho). São generosas, e oferecem roupas novas, recentes, que não servem mais. Realizam limpas no armário mensalmente, separam o que não agrada com bonança. Nunca deixam nada parado, sem utilidade para o próximo. Mas sapato, não. Sapato é imortal para a mulher. Sapato pode estragar, adoecer, só que não morre. Sapato pode perder a sola, o bico, arrebentar as tiras, porém recebe a condecoração da permanência. Ou ele é levado para um sapateiro de confiança ou fica em coma numa sacolinha com sachê.Mulher ama sapatos, de homens apenas gosta e nem todo dia.

Quando o sapato não corresponde às expectativas, ela repassa a uma amiga torcendo para a felicidade dos dois. É o máximo de caridade que alcança nesse quesito. Jogar fora, nunca. Tampouco das caixas consegue se desfazer. Não elimina coisa alguma: conserva o ventre dos sapatos, a placenta dos sapatos, o cordão umbilical dos sapatos.

Já observei botas, tênis e calçados masculinos na rua, no lixo e no meio-fio, gestos impensáveis para o universo feminino. Mulher é uma centopeia de espírito. Não compra quando precisa. Compra para criar necessidades. Jamais conta quantos pares possui _ é um número aberto e infinito. Apesar das mil e uma noites, ela sabe de cor os que usou e onde fez a sua estreia. Por maior que seja a coleção, acha que ainda tem pouco. Não considera o estoque suficiente. Vive uma repescagem nas lojas, caçando tipos favoritos de edições passadas. Tanto que a mulher não lamenta amores perdidos, e sim chora por não ter adquirido um par a mais daquele salto predileto.

Sapato é o xamã para as mulheres. Cura demissões, tristezas e depressões. Em casos graves, a solução é a superdose: arrebatar vários em um único dia.
Se o homem deseja terminar um relacionamento, existe uma receita ideal que poupa saliva e dispensa enfrentamentos exaustivos. Basta arremessar scarpins de sua esposa na parede. Ou despejar a gaveta de sandálias pela janela. Ou arrebentar os fechos das botas. Ou preparar macarrão com as rasteirinhas.
Não sofrerá discutindo. A porta baterá para sempre e ela, certamente, não colocará também você na campanha de agasalho.

Publicado em Jornal Zero Hora em 13/08/17

O FIM RECOMEÇO

Foto: Gilberto Perin

O fim e o início são próximos. Não estão distanciados nem por um passo.
O que já testemunhei de amigo convicto da separação e logo depois marcava casamento. E a noiva era a futura ex. O que já testemunhei de parceiro que diz que a relação acabou num dia e noutro dia parte em viagem apaixonada de férias. Ou que cantou o término do romance para engravidar na sequência.
Discussão de relacionamento é paranormal. Fantasmas ressuscitam, garfos entortam, aparecem vozes na cabeça, casais levitam. Não há como definir os desdobramentos espíritas e acertar o resultado. Sempre surge um gol nos descontos da partida mudando o vencedor.
A pessoa pode ensaiar o discurso de despedida no espelho, e puxar um diferente do bolso na hora H.
As decisões sozinhas não persistem frente a frente. Um sexo selvagem é capaz de arrancar as certezas. Uma declaração apaixonada é capaz de roubar as ofensas. Um pedido de desculpa é capaz de enfraquecer o ódio.
A véspera da ruptura é enlouquecedora. Quando está prestes a se separar, o que costuma ocorrer é o contrário: uma forçada e inesperada renovação dos votos, uma surpreendente prorrogação dos laços. Você se sente culpado e se compromete ainda mais. Terá que telefonar para todos os amigos explicando o recálculo abrupto de rota. Ninguém entenderá, como sempre, o amor é um mistério até para quem ama.

Publicado em O Globo em 10/08/17

SUJOS E MALVADOS

Arte: Eduardo Nasi

Mulher toma banho mais vezes que o homem. Não neurotiza o gesto, simples e prático como pentear os cabelos ou se olhar no espelho.
Já o homem complica. Quando casa, volta à infância e retoma a sua mania de economizar a pele. Cabula o máximo possível, como se estivesse na estação da Antártida. Adia, finge que não é com ele, partidário da água como urgência para sair ou honrar algum compromisso profissional. Não difere do tempo de pequeno, quando escondia os pés sujos da mãe para dormir em paz, sem o pedágio do chuveiro.
A mulher é limpinha, obcecada em se lavar mesmo quando não é necessário. O homem compra briga mesmo quando é necessário.
Dificilmente a mulher virá para o sexo antes de um toque de higiene. Sempre dá uma conferida no banheiro. Renova o perfume. Ajeita a sensualidade da roupa. Coloca um jato de água nas partes pudendas. Prepara-se para a dança dos corpos nos lençóis. Preocupa-se realmente com o seu estado.
Em contraste, o homem passa reto. Vai direto para a travas. Crê que não depende de nada, de nenhuma flor na lapela do peito, porque defende o cheiro  natural. Defender o cheiro natural é defender somente a sua preguiça ancestral. A mulher que se vire. O desleixo sempre foi machismo.
A questão é que nem sofre pois jamais se habituou a se cuidar para o outro, ou agradar ao outro. Confia que quem gosta dele tem que aceitar do jeito que ele é. Mesmo que seja estilo mecânico depois do serviço. Entende a graxa como a sua graça.
Comete o engano de desprezar o detalhe. Está com o desodorante vencido, suado e cavernoso e não vê nenhum mal nisso. Acha que é um gato e um banho de língua resolve. Mas não com a sua língua, claro. Não há Halls no mundo que disfarce o odor de xixi.

Publicado em Vida Breve em 09/08/17

PESSOAS RETRÔ

Pagamos caro por objetos retrô. Não economizamos para ter uma geladeira Steigleder branca igualzinha à que existia na casa da avó. Ou um aparelho três em um idêntico ao que reinava na estante da sala. Somos colecionadores de nossos hábitos.

E aceitamos até os defeitos de volta. Queremos uma geladeira barulhenta como a de outrora, onde secávamos as meias nas grades de trás durante o inverno. E queremos um vinil que traga ruídos de cigarras e que pare mesmo em algumas canções.

Nossa vontade é pelo retorno da afetividade das coisas, somos capazes de girar o mundo à cata de relíquias, somos capazes de imersão digital em sites de busca, somos capazes de lances absurdos e irreais no pregão da infância. Não nos assustamos com os valores abusivos e agimos com ansiedade pelos negócios fechados a martelo das bolsas.

Parece bonito o apego, mas não é. Porque não damos valor nenhum para as pessoas retrô de nossas vidas.

Nossa avó, mais do que a geladeira, está ali disponível com a sua prodigiosa tapeçaria da memória e não a acolhemos em nossa casa. Nossos pais, mais do que o três em um, estão ali disponíveis com as suas histórias dentro de trilhas favoritas e sequer contamos com a paciência de ouvi-los.

Procuramos reaver um tempo sem os seus personagens principais. Acabamos nos interessando por um tempo vazio, absolutamente decorativo. E desprezamos o tempo real, vivo e biológico que corre em nossas veias e em nossos nomes.

As pessoas retrô são postas de lado, abandonadas. Logo elas, loucas por atenção. Reclamamos de suas falhas, naturais para a idade, para justificar um confortável distanciamento.

Por que se preocupar com a pele do passado se podemos garantir o luxo da alma, a reconstituição exata e emocional do que vivemos com quem nos criou?

Não há livro antigo que reproduza a sabedoria de minha mãe. Em vez de comprar uma edição rara em sebo, basta convidá-la a almoçar, que já desfruto de uma biblioteca inteira de primeiras edições.

É o sobrenatural da simplicidade me ensinando a ser feliz. Uma encadernação em movimento soltando as suas folhas e frases marcantes.

Ela me contou, por exemplo, que está grávida aos 78 anos. É um milagre mesmo. Disse para mim que "onde toca, engravida". Eu acredito. Pois ela toca em uma orquídea e fica grávida da mais sincera gargalhada. Ela toca em um parapeito de uma janela e fica grávida de uma rua. Ela toca em uma roupa no varal e fica grávida do sol. Ela toca em um castiçal e fica grávida das estrelas.

Não há como permanecer longe e indiferente a tantos novos irmãos surgindo a todo instante.

Publicado em Jornal Zero Hora em 08/08/17

ONDE COLOCAR AS UNHAS?

Foto: Reprodução Donna

Nunca vi minha mulher cortando as unhas em casa. Se ela faz, é de modo discreto e imperceptível. Seu costume é arrumar no salão.

O meu problema é que deixo as unhas crescerem até furar as meias. E depois não é mais um corte, e sim um abate.

Deveríamos receber um saquinho plástico, tipo o existente em avião para desconforto, com uma cordinha e a recomendação desenhada dos possíveis acidentes.

E não há lugar para cortar em paz, sem ser chamado à atenção. Como são lâminas já, cascos já, é enfiar a tesourinha e a unha salta para nunca mais localizá-la. Deve ir para debaixo de algum móvel, assim como copo quando se despedaça.

Após dois meses, são unhas voadoras, unhas morcegos. Criam asas.

Daí me lembro por que demoro para apará-las, é sempre o mesmo impasse. Retardo ao máximo e apenas tomo uma atitude quando a minha mulher não aguenta mais e reclama dos arranhões com a carícia dos meus pés na cama.

Não raciocino que o adiamento acentua a força do arremesso. Quanto o maior tempo sem ajeitar, maior a compressão do OVNI.

Não tem muito o que fazer: o cortador é uma alavanca para longe. Não há como reunir a sujeira, o montinho, e botar no lixo. Aliás, lixo é o lugar. Uma vez coloquei na privada e uma amostra grátis restou na tampa para nojo da minha adorável companhia.


Onde cortar é um drama masculino. Tentei podar no quarto e foi uma calamidade. Motivo de divórcio a esposa achar um resquício dos meus pés nos lençóis. Tentei na sala e temo que um dia as ossadas sejam localizadas no tapete felpudo e termine condenado pelo crime de porquice. Na cozinha, nem pensar. No banheiro, com os azulejos brancos, é uma odisseia identificar as foragidas. Mais fácil encontrar uma tarraxa de um brinco do que uma unha. Mais fácil encontrar uma tarraxa transparente de um brinco do que uma unha.

Atinjo a curiosa conclusão de que as unhas mijam de pé. Nunca acertam o vaso. É outra disfunção do nosso universo viril.

Publicado em Donna em 07/08/17