Arte de Cy Twombly
Nada substitui a nossa vida. Por mais pequena que seja, ainda é a nossa vida.
Escrevemos "nossa vida" e já sentimos orgulho. Tente.
A falta de confiança nos leva à inveja.
As enquetes e testes das revistas femininas sempre pretendem dizer que a nossa trajetória está errada, da necessidade de modificar logo o relacionamento antes que seja tarde, esquentar a intimidade, aquecer os jogos do casal, viajar e exigir caprichos e cuidados de nosso parceiro.
Ninguém nos dá motivos para permanecer do jeito que somos, percebeu?
Há um interminável apelo a mudar o cabelo, mudar de roupa, mudar de marido, mudar de esposa, mudar de casa, mudar de hábitos, mudar de personalidade.
Se a relação não dá certo, é que faltou se transformar. A rotina invariavelmente é a culpada. O sexo decaiu porque você não aprendeu dança do ventre. Seu par se interessou por colega de profissão porque você não ampliou o repertório de posições sexuais. Não manteve o casamento porque não trocou o cardápio à base do feijão, arroz e massa e não investiu nas iguarias afrodisíacas da Tailândia.
É sempre alguma coisa que não foi feita, criando uma culpa invejosa, a ponto da esposa ou do marido concluir: “Todo mundo faz, menos eu”.
Somos condenados a procurar “o tempero” do relacionamento enquanto deixamos a comida queimar. Leia-se tempero tudo o que não se realiza. Nosso modo de puxar conversa é equivocado. Nosso modo de brigar não é o ideal. Nosso modo de lidar com os filhos complica a independência amorosa.
Se estamos felizes, estamos desinformados. Há uma exigência para se atualizar com dicas e truques, sob a ameaça de que a concorrência (solteiros e solteiras) está preparada.
Não há saída. A paranoia se infiltra na paz ou na guerra. Alimentamos uma permanente insatisfação, uma rejeição premeditada. E cobramos de nossa companhia uma perfeição impossível.
A impressão é que deveríamos estar em outro lugar, em outra biografia, que alguém roubou a nossa história e desfalcou nossos prazeres.
O problema que identificamos é simples: não damos valor para aquilo que somos, para as próprias experiências do casamento. Não cuidamos do que temos.
Desejamos um armário novo, não apenas uma roupa. Não queremos menos. É tudo ou nada.
Não enxergamos as delicadas novidades dentro dos hábitos. Subestimamos as variações da correnteza diária. Ganhar uma nova peça é poder arrumar as antigas, reencontrar combinações e reavivar acessórios.
A ambição enfraquece os significativos e discretos avanços.
Cansei da futilização do amor. Amor é essencial, é tão importante quanto o orçamento doméstico ou pagar as contas. Amor é economia. É cuidar com elogio para evitar a falência. É zelar pelo patrimônio das palavras para ter o que lembrar e falar.
A mulher fica a responsável por compreender e salvar a relação. É uma infantilização do homem. Em vez de chamar para a cumplicidade, a mulher aproveita e fortalece o preconceito, antecipando que ele não se dispõe a debater os rumos da casa, que não gosta do assunto, que nem vale a pena, que terminará por debochar e chamar de ridículo. Será que não é teimosia? Ou preguiça para rebater as discordâncias? Será que não é apenas a vontade de decidir sozinha?
Talvez não seja o homem que boicota a intimidade, mas a mulher que não tolera o retrabalho de uma segunda opinião.
Um exemplo é quando o marido decide ajudar nas tarefas domésticas, após longa insistência da esposa. Ele vai limpar o fogão. Fica uma hora passando esponja, areando, procurando brilho metálico. Quando termina, a esposa não perde a chance de mostrar que ele é incompetente para aquilo:
- Você está confundindo o fogão com carro? Não sabe limpar.
Finalmente, quando seu parceiro atende seu chamado, em vez de animá-lo a prosseguir em novas oportunidades, trata de castigá-lo como um filho desobediente. Uma hipótese é que a mulher tem dificuldade de repartir as atividades porque as coisas não serão feitas como ela costuma arrumar. É óbvio que não. Então, ela ordena:
- Deixa que eu faço.
“Deixa que eu faço” é o equivalente a concluir “Você não serve para nada”. E ele não se candidatará a atividade novamente para evitar humilhações. O homem terá que cozinhar mal para cozinhar bem, terá que lavar superficialmente as roupas para entender a arte da espuma, terá que varrer pelo centro até localizar as sujeiras dos cantos.
O que não acontece é suportar o período de adaptação do voluntário. Ansiamos que acerte de primeira, e sem vacilação. A esposa pretende que ele colabore, porém não pretende perder tempo ensinando.
Esqueça o conto de fadas por um momento. Encontrar alguém é fazer por merecer, não é deixar que o relacionamento se faça sozinho.
Localizar o par ideal é fácil, difícil é suportá-lo.
Vem a convivência e estraga a telepatia do início: ele tem mania de palitar os dentes, ela usa calcinha cor de pele; ele ama a solidão mais que a própria vida, ela deseja filhos; ele toma cerveja, ela é adepta do suco natural; ele joga futebol, ela consulta a cartomante; ele sonha em montar negócio próprio, ela idealiza meditar em centro budista; ele espera assistir corridas em Interlagos, ela torce para um dia ver o grupo de balé Bolshoi.
Por um tempo, durante a paixão, acreditamos ter encontrado o perfil sonhado. Mas paixão é férias, amor é trabalho.
Amar é se esforçar o dobro para permanecer junto: como conciliar as vontades? Como organizar as doutrinas? Como parar de adivinhar o desenlace futuro?
Para fazer um matambre recheado, precisamos de linha de costura; para assar o peixe na brasa, dependemos de papel alumínio; para a longa vida do motor, só trocando o óleo a cada cinco mil quilômetros.
É mais feliz quem compreende que estar triste é parte natural da vida. E quem compreende essa simplicidade, não precisa mais vencer sempre.
A vida exige ciência. A ciência de conviver nada tem a ver com truques visuais: meia-calça de seda, cinta-liga, cueca boxer branca. Os efeitos especiais ajudam a formar um clima agradável, entretanto, não garantem o desempenho emocional.
A ciência de conviver depende da coragem, isso sim. Coragem de defender o amor. A coragem é o verdadeiro ingrediente secreto, a pimenta dedo-de-moça do acarajé, o leite condensado do brigadeiro.
Salgado, doce, coragem.
É quando não importa mais quem colocou a bola em campo: todos podem jogar.
É quando não tem diferença nenhuma definir quem errou, mas quem se prontifica a consertar.
É quando o senso de justiça cede lugar ao apelo da união.
É quando o ímpeto de estar bem juntos supera a ansiedade de dominar e ter razão.
É quando a insegurança larga a intolerância e entende o improviso e a limitação de cada um.
É quando a coragem aparece. Porque saberemos que dependeremos para sempre daquela pessoa para assumir a própria individualidade. Amar, portanto, não é mudar, é se aceitar.
Amamos para que o outro nos ajude a não apagar aquilo que somos. É certo que esqueceremos um dia, entraremos em desvalia, desconheceremos nosso tamanho, mas o outro nos lembrará do que já foi feito e do que necessita ser feito.
Amamos para que a nossa vida nos seja devolvida de repente. O marido ou a esposa é a chave reserva de nossa memória. Nosso backup.
Melhor do que confiança no relacionamento é coragem.
Coragem para aceitar alguém de volta. Coragem para perdoar o erro e a fraqueza. Coragem para assumir o que o coração anseia, apesar da aparência e dos outros.
Coragem é reconhecer o medo e seguir adiante mesmo assim.