domingo, 29 de junho de 2014

SEPARAÇÕES LÍQUIDAS

Arte de Félix Vallotton

Casar virou namorar, namorar virou ficar, ficar virou provar.
 
Acredito que todo mundo casa fácil porque é também muito fácil se separar.
 
Nos anos 70, o casamento era medido por décadas. Mesmo quando um casamento fracassava, durava no mínimo duas décadas.
 
Nos anos 80, o casamento era medido por anos. Mesmo quando um casamento desmoronava, durava no mínimo cinco anos.
 
O casamento hoje é por dia. Como se fosse hotel.
 
Agora, o matrimônio cobra diária. Todo dia é dia de se separar. E por qualquer coisa.
 
Las Vegas do divórcio é aqui.
 
Você pode sair de manhã, eufórico e confiante, extremamente disposto, seguro do romance, e quando voltar à noite não encontrar mais ninguém ao seu lado.
 
Se cometeu uma falha, nem terá oportunidade de se explicar. Se não errou, nem terá chance de entender e desfazer confusões.
 
É tão simples se divorciar que ninguém mais pretende se estressar. Não há nem o civilizado e educado aviso de despejo. É dar as costas, largar o passado e seguir adiante. Quebrou o amor, troca! Quebrou o amor, compra outro! Quebrou o amor, não vale investir consertando!
 
Os casais não brigam mais até cansar para, então, se separar. Não brigam mais até esgotar as possibilidades para, então, se separar. Não tentam durante semanas e semanas expor as dores, as feridas e a raiva para, então, se separar. Não recorrem ao choro, à histeria, ao perdão, ao abraço, ao exorcismo, aos centros religiosos, aos amigos, aos parentes para, então, se separar.
 
A separação vem antes. A separação é a regra. A separação é o hábito. A separação é seca, definitiva, sem explicações.
 
As pessoas se separam primeiro para depois discutir. As pessoas se separam primeiro para depois conversar. As pessoas se separam primeiro para depois desabafar o que incomoda.
 
Elas arrumam todas as malas, esvaziam os armários, realizam a limpa no apartamento e depois, se houver vontade, se encontram e sentam frente a frente para resolver as diferenças.
 
São uniões interrompidas com silenciadores, distante de estampidos e gritos.
 
Ninguém se separa de fato, todo mundo deserta, todo mundo abandona a convivência.
 
É uma irresponsabilidade extraordinária com o outro, é uma indiferença tremenda ao que foi construído com o outro, é um desprezo ao que foi sonhado a dois.
 
E os motivos podem ser os mais loucos e insignificantes. O desenlace não ocorre mais por justificativas duras como adultério e deslealdade.
 
Há gente que se separa por incompatibilidade de gênios (expressão que denuncia megalomania, o correto seria incompatibilidade de burros).
 
Há gente que se separa porque não suporta o medo de ser traído.
 
Há gente que se separa porque estava muito feliz e não aguentava tamanha pressão.
 
Há gente que se separa porque se viu entregue ao relacionamento e estava perdendo a identidade.
 
Há gente que se separa porque não sabia mais o que estava fazendo da vida.
 
Há gente que se separa porque não esperava que fosse assim.
 
Atualmente entra-se numa relação e não se fecha a porta – a porta permanece encostada o tempo inteiro.
  
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 29/6/2014 Edição N° 17844

sexta-feira, 27 de junho de 2014

SÓ UM MINUTINHO

Arte de Villemard

Tenho um péssimo costume de falar ao telefone quando estou sendo atendido no comércio.

Entro na fila já conversando no celular. Tagarelando. Todo mundo ouvindo minha indiscrição.

No momento em que chego na boca do caixa, não desligo.

Continuo falando para azar do atendente.

O funcionário me pergunta: Crédito ou débito?

E faço mímica.

O funcionário me pergunta: CPF na nota?

E mexo a cabeça.

O funcionário me pergunta se quero sacola.

E estico as sobrancelhas.

Coitado do funcionário. Desligue o celular quando é atendido.

No táxi, é mais grave e irritante. Vou no trololó no fone enquanto o motorista espera o caminho e o destino.

É aquela angústia de andar às cegas com o passageiro gritando de repente: esquerda, direita, direita, aqui, mais adiante.

Manter alguém aguardando porque está no celular é falta de educação e de respeito. É como falar e mastigar ao mesmo tempo.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (27/6) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

quarta-feira, 25 de junho de 2014

CHICO NÃO CONTA

Arte de Eduardo Nasi

Geni vivia alertando:

— Chico Buarque não é traição!

O compositor era um desconto essencial na monogamia, nem poderia ser considerado infidelidade, já que ele entendia as mulheres como ninguém.

Moisés não morava no Rio de Janeiro, não corria o risco de esbarrar com o compositor de olhos verdes marinhos, nem de extraviar  sua companheira  em um mergulho nas águas geladas da Barra da Tijuca. Morava longe da gloriosa exceção, protegido em Porto Alegre, o que lhe trazia tranqüilidade.

O gênio de Meu Guri, Valsinha e Construção não simbolizava uma ameaça direta, apenas uma implicância platônica e idealizada a todo momento:

— Poderia compreender um pouco nossa alma como o Chico, né?

— Desculpa, amor, mas eu dava para o Chico. Como pode alguém escrever que a saudade é arrumar o quarto de um filho que já morreu? É muita sensibilidade!

— O Chico é rei, Chico é Deus, diz tudo o que uma mulher gostaria de ouvir: “Ainda vou penar com essa pequena, mas o blues já valeu a pena”.

Moisés buscava inutilmente criar atenuantes: Chico está barrigudo, completou 70 anos, tem idade para ser seu avô, deve usar viagra.

Geni ficava ainda mais atiçada.

— Chico é eterno, não adianta se defender. Ele não conta como traição!

E saia cantarolando pela casa:  “Meu coração/ que você sem pensar/ ora brinca de inflar/ ora esmaga/ igual que nem/ fole de acordeão/ tipo assim num baião/ do Gonzaga”.

Enquanto Chico permanecia longe da capital gaúcha, Moisés não se percebia corneado. O desastre emocional foi quando Geni apareceu com dois ingressos para show no Teatro do SESI.

Moisés suou frio, imaginou Geni se esfregando no cantor, imaginou Geni trancada no camarim, imaginou Geni gemendo chansons e sambas no ouvido de Chico. Foram dias repletos de angústia, paranóia, aflição. Não se alimentava direito, não trabalhava concentrado, extraviou o apetite sexual.

Quando chegou a hora do espetáculo, quando Moisés viu os olhos brilhando de Geni na platéia, quando as cortinas se abriram, quando ouviu o início da primeira música da noite — “Hoje o inimigo veio me espreitar/ Armou tocaia lá na curva do rio/ Trouxe um porrete a mó de me quebrar/ Mas eu não quebro porque sou macio” — não sei o que aconteceu com Moisés, talvez tenha sido o medo desesperado e irracional de perder a esposa, talvez tenha sido o pânico do concorrente famoso, mas Moisés correu em direção ao palco e beijou Chico na boca, inesperadamente, interrompendo a canção “Meu Querido Diário”. Um beijo estranho, de língua, assustado, deixando o músico extremamente constrangido.

Ninguém entendeu nada, muito menos Geni. O público aplaudiu timidamente jurando que se tratava de mais um fã alucinado e carente.

Levado pelos seguranças para fora do teatro, Moisés ainda conseguiu gritar para sua mulher:

— Chico não conta, não vale, não é traição!






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
25/6/2014

terça-feira, 24 de junho de 2014

ESPERANÇA É O QUE MAIS DÓI

Arte de Sônia Menna Barreto

É me acomodar no avião e já adormeço. Nem espero o comissário fechar as portas.

Durante conexão de Galeão para Salgado Filho, escorado na janela, pronto para babar, escuto uma mulher chorando na poltrona da frente.

Sempre vou acordar quando ouvir uma mulher chorando. Meu sono não resiste a mulher chorando.

Ela soluçava ao telefone:

– Você disse que a gente moraria junto depois que terminasse seu treinamento. Você mentiu, você só está me enrolando com promessas. Promessa dói. Esperança dói.

Não alcançava qual o contexto da conversa, mas sua frase produziu muito sentido.

Esperança dói!

Eu quase chorava junto. Ela estava coberta de sentimento mais do que coberta de razão.

Concordava com ela: não minta com esperanças. Minta com qualquer outro sentimento, menos com esperança. Não ofereça esperança se não acredita na relação.

Pense bem antes de falar, pense se realmente deseja cada verbo. Cuidado com aquilo que sonha em voz alta.

Todas as palavras são estrelas cadentes. Prometer é sério, prometer é se comprometer.

Não adianta dizer que só falou, alegar que não fez nada de errado e lavar as mãos no vento. Falar é fazer.

Entenda que a esperança é o que mais machuca. Não há maior tortura do que gerar esperança em vão: é oferecer para tirar.

Não estimule projetos se não está disposto a cumprir, se não é sincero, se não é verdadeiro.

Não diga da boca para fora pelo prazer da hora, pelo romantismo, pelo arrebatamento.

Imaginar já é concretizar. Se não tem segurança com sua companhia, não iluda. Não fique fantasiando casa própria, filhos, cachorro, viagens ao Exterior. Não insufle o porvir para agradar. Não disfarce o pouco sentimento com a eternidade. Não chame o futuro impunemente. Não apele para a emoção à toa.

A fantasia é uma responsabilidade do casal. Pois o amor é o que se vive somado ao que se conversa somado ao que se planeja.

Ao fortalecer intenções, permite que ela ou ele passe a esperar dali por diante.

Somos crianças no amor, ansiosas pela confirmação das expectativas. Enxergamos o que imaginamos, trabalhamos para conseguir o que imaginamos.

Esperança é também parte importante do namoro. Esperança é também lembrança do namoro. Esperança é também memória do namoro. Esperança é também realidade do namoro.

O que foi idealizado a dois é um patrimônio da intimidade, um marco da confiança.

Ninguém sofre numa separação por aquilo que aconteceu, sofrerá por aquilo que não vai mais acontecer. Sofrerá pela perda da esperança mais do que pela perda do amor.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2,  24/6/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17839

COISAS QUE SÓ ACONTECEM NA VIDA DE CASAL

Arte de Fernand Léger

Nunca sei quando minha mulher está me abraçando ou apenas se aproveitando para espremer cravos e espinhas de minhas costas.

O que sei é que a vida de casal é linda.

A possibilidade de dormir no sofá e, na hora de acordar, descobrir que foi vítima da gentileza. Ela tirou seu cinto, seus sapatos, e ainda lhe cobriu com um edredon sem fazer barulho, no mais absoluto silêncio.  

A possibilidade de cancelar uma festa para ficar em casa assistindo a reprise de um filme, sem nenhuma crise de consciência, porque está casado. A preguiça a dois não traz nenhuma culpa.

A possibilidade de falar mal dos outros sem que seja condenado pelas fofocas.

A possibilidade de comer nas panelas para não criar mais louça.

A possibilidade de fazer uma viagem e dividir as memórias, as músicas do carro e as loucuras.

A possibilidade sexual de transformar a manhã em noite e a noite em manhã.

Casamento é cumplicidade, é não ter mais vergonha, é não ter mais medo, é acreditar que tudo tem uma solução, é dar a volta por cima, é não desistir de recomeçar.

Casar é como ganhar na Mega Sena. Você encontrou alguém que você ama e quer repetir todo dia entre duzentos milhões de apostas. O amor é muita sorte.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (24/6) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

domingo, 22 de junho de 2014

TEMPO PARCELADO EM 30X SEM JUROS

 Arte de Marianne von Werefkin
 
Eu ponho o alarme do celular e acordo antes do primeiro toque. Odeio aquele barulho.
 
Meu relógio biológico é suíço, não erra, pontual desde que nasci.
 
Você deve estar perguntando por que ponho o alarme se não preciso dele. O alarme é uma espécie de segurança, para despertar em caso de morte ou coma.
 
Brincadeiras à parte, desperto cinco minutos antes do horário programado pelo prazer de desativar aquela bomba-relógio do meu dia. Já estou competindo com o que eu mesmo programei. Não tenho conserto, minha vida é criar rivalidades.
 
A questão é que sou cricri, colono, caxias. Não faço nenhum adiamento.
 
Tocou, acordei. Não negocio prazos com o meu corpo. Não viro para o lado fingindo que não é comigo.
 
Seja no inverno, seja no verão, seja cama quente, seja cama fria, não irei ronronar e babar no travesseiro por mais alguns instantes.
 
Para um poeta, sou bem prático. É manhã, acabou a mamata, tenho a obrigação de levantar e a responsabilidade de seguir meu trabalho.
 
Só que coço meu cotovelo em reverência aos preguiçosos.
 
Como queria ser aquele que arma o alarme e faz trinta sonecas até seu despertar. Trinta!
 
E não vê nenhum trabalho de pegar o alarme, responder o chamado e esperar tocar de novo.
 
É como atender trinta telefonemas no meio do sossego, e não se irritar, não xingar e não soltar um desaforo.
 
É gostar excessivamente de descansar. Não chamaria de descansar, o ato está mais próximo de hibernar.
 
Eu não consigo, talvez nem entenda, para mim não é mais sono, e sim contagem regressiva, ano novo, explosão de fogos.
 
Minha alma é de cachorro - perco a tranquilidade com barulhos estridentes.
 
Não recupero a fantasia com facilidade.
 
Por absoluta incompetência, o que me resta é invejar os ninjas do relógio.
 
A cada cinco minutos, o bichinho uiva e o dorminhoco não acorda, graceja, mexe no celular e fecha os olhos sucessivamente.
 
Que superioridade auditiva, que soberba onírica.
 
O trim trim trim não incomoda, a dormência não perde sua força de vontade.
 
É alguém que nasceu com Valium no sangue, com Rivotril no sangue.
 
É alguém com alto poder de concentração ou de alienação.
 
O aparelho tocará próximo ao travesseiro durante duas horas, numa espécie de pânico ritmado, e o sujeito somente ficará mais alegre. Alegre, incrivelmente alegre.
 
A pessoa raciocina: ainda tenho uma hora para dormir, ainda tenho meia hora para dormir, ainda tenho vinte minutos para dormir, ainda tenho dez minutos para dormir, ainda tenho cinco minutos para dormir.
 
São pequenas esperanças inventadas de um desespero. O que era castigo torna-se bônus.
 
Na minha lógica, ela está acordando trinta vezes. Na lógica dela, está dormindo trinta vezes.
 
Na minha lógica, acordar é ruim é ela não cansa de repetir. Na lógica dela, dormir é bom e ela não cansa de repetir.
 
Enquanto eu pago o tempo à vista, ela parcela o tempo em trinta vezes sem juros.
 
  
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 22/6/2014 Edição N° 17837

sexta-feira, 20 de junho de 2014

NÃO DECIDIR É UMA GRANDE DECISÃO

Arte de Wassily Kandinsky

Desejamos ter o controle dos fatos, mandar no curso dos acontecimentos, demonstrar poder e se antecipar ao pior. Mas, em alguns momentos, não decidir é a melhor decisão que a gente pode tomar.

Decidir nem sempre nos ajuda. Decidir pode ser burrice, não independência. Decidir pode expressar o nosso egoísmo e vamos nos arrepender logo em seguida. Decidir pode ser a ânsia de se livrar daquela chatice, daquela adversidade. Decidir pode ser apenas desistir.

Não custa nada esperar dois dias, tenta entender por que está sentindo tanta raiva, amadurecer a opinião para não se machucar e não machucar ninguém, cicatrizar o mal-estar com silêncio. Não custa nada levar o assunto para roda dos amigos, para o terapeuta, ouvir o conselho de quem já passou por situações parecidas.

O mais difícil na vida não é jogar a pedra, mas manter a pedra no chão.

Ouça o que falei na manhã de sexta-feira (20/6) na Rádio Gaúcha, no programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

quarta-feira, 18 de junho de 2014

O MELHOR EMPREGO PARA TRAIR

Arte de Eduardo Nasi

Não é plantonista de hospital, não é mafioso, não é motorista de caminhão. Encontrei qual a melhor ocupação para exercer a infidelidade. A melhor de longe.

Não sofrerá nenhuma ameaça de fim de casamento, não será pego em flagrante, muito menos incriminado por vizinhos e denunciado por fofoqueiros. Traz segurança total para as puladas de cerca elétrica.

O trabalho dos sonhos dos adúlteros é o Serviço de Proteção às Testemunhas.

Não precisa dizer nunca onde estava para sua esposa, é somente responder:

— Desculpa, amor, são informações secretas e privilegiadas. Não pretendo colocar a vida de nossa família em risco.

Não precisa se contradizer na mentira e pecar pelo excesso de detalhes, maior trauma masculino.

Não precisa atravessar madrugadas com discussões de relação e acareações com os amigos.

Não precisa ir ao banheiro sempre com o celular.

Não precisa contar como foi seu dia e interromper os programas prediletos de televisão.

Não precisa inventar horas extras e jantares de negócios.

Não precisa se concentrar em decorar suas próprias versões.

Não precisa esconder notas e bilhetes, eliminar conversas pornográficas inbox,  apagar mensagens no whatsapps e SMS.

Não precisa trocar senhas desesperadamente.

Não precisa dormir de olhos abertos.

Não precisa confessar seu nome verdadeiro à amante, já que ostenta uma identidade falsa para preservar sua segurança. O codinome também afastará todos os embaraços virtuais. As outras não terão acesso ao seu Facebook, não saberão o status de seu relacionamento. Manterá a pose de solteiro e descomprometido.

Não precisa forjar trajetos e necessidades para falar ao telefone (como ir ao mercado, levar o cachorro para passear, comprar cigarros). Tem a liberdade de sussurrar dentro do quarto, na cara de sua esposa, sem ter que explicar quem era.

Pode sair a qualquer hora da noite ou retornar tarde, sob a alegação de que cumpria uma missão especial.

Pode desaparecer durante dias seguidos, justificando que houve mudança de planos.

Pode voltar para casa com perfume feminino no casaco, e explicar que era um disfarce.

Pode até mudar de sexo e jamais ser descoberto.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
18/6/2014

terça-feira, 17 de junho de 2014

O SONHO É MINHA IMENSA SAUDADE DE VOCÊ

Arte de Marianne von Werefkin

Os sonhos são conversas que deveriam ter acontecido.

Sonhei com meu amigo Rafael, colega do Ensino Médio, ainda impactado pela sua morte repentina, aos 42 anos, em acidente de carro no final de maio.

Rafa estava sentado em um refeitório, sozinho, olhando para frente.

Ambiente muito claro. Muito iluminado.

Apoiava seus braços na mesa. Não comia nada. Não usava óculos, como na escola. Daquela época, mantinha os cabelos molhados para acalmar redemoinhos.

Cheguei perto e fui cumprimentá-lo com intimidade, colocando meu corpo para frente, disposto ao abraço.

Ele me alertou:

– Você está se confundindo, pensando que sou uma outra pessoa, né?

Eu engasguei, revistei o passado para ciscar na memória se ele tinha um irmão gêmeo, um irmão parecido.

Não. Não. De modo nenhum. Era ele. O riso imenso. O riso com os dentes dos olhos brilhando. O riso sábio. O riso enciclopédico. O riso com todos os risos do mundo.

– Você não é o Rafael? Rafael Lodeiro Müller?

– Não. Depois que a gente morre, a gente é outro.

Ao perceber meu rosto triste, ele buscou me consolar.

– Calma, calma. Eu sei quem foi Rafael.

– Para de loucura! Você é o Rafael!

– Eu fui Rafael. Woody, sei que é inteligente...

(recordei que ele sempre me chamava de Woody, em homenagem ao cineasta Woody Allen, e me explicava os problemas do colégio me elogiando)

– ...sei que vai entender, parece complicado, mas não é. Você morreu para mim, mas eu estou vivo para você.

– Eu é que morri?

– Sim, você é que morreu. Pois não estou mais no mundo para lembrá-lo, para sentir saudade, para sofrer com sua falta. É você que sonha comigo, não sou eu que sonho contigo, há uma diferença importante aí, não posso mais sonhar contigo.

– Então você está vivo para mim e eu estou morto para você?

– Sim. Isso. Rafael nunca esteve tão vivo como agora. Está vivo na mulher, está vivo nos filhos, está vivo nos seus irmãos, está vivo nos seus pais, está vivo nos seus sobrinhos, está vivo nos seus colegas de hospital, de plantão, de consultório, nos seus amigos de infância e adolescência. Nunca poderei morrer naquilo que signifiquei para eles. Não posso morrer em você, Woody. A alma não é um cemitério calmo, é um jardim bem barulhento.

Os sonhos são conversas que aconteceram dentro do coração.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2,  17/6/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17831

TÉCNICAS DOMÉSTICAS

Arte de Diego Rivera

Quando criança, na minha escola pública (Imperatriz Leopoldina), tinha uma disciplina chamada Técnicas Domésticas.

Aprendi a mexer com agulha e linha em sala de aula. Aprendi a passar roupa.

Não era obrigação de menina, era regra de sobrevivência, para conservar e fazer durar o uniforme escolar.

Desde lá, sei pregar botões, sei consertar tecidos. 

Saber costurar é uma demonstração de ternura.

Tão bonito pegar um moletom do filho e fechar um rasgo.

Tão bonito pegar a calça do filho e fazer a bainha.

Tão bonito ver um botão solto da camisa do filho e arrumar em poucos minutos porque ele está atrasado.

Não há cena mais emocionante do que costurar meias. Meias que rasgam nos calcanhares. Fechar com a linha da cor da meia para ninguém perceber.

É muita esperança não jogar fora um par de meias e oferecer uma segunda vida para ele.

Demonstra que você não se desfaz das coisas facilmente, que não vai dispensar as pessoas facilmente, que você tenta primeiro remendar, que não é do tipo que estragou e compra outra, que não descarta simplesmente porque foi barato.

Costurar meia é para aqueles que acreditam na família, acreditam em superação, acreditam no casamento, acreditam que vale a pena almoçar juntos.

(Já cueca, por favor, não dá para costurar. Costurar cueca não é esperança, é muito desespero).

Ouça o que falei na manhã de terça-feira (17/6) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 16 de junho de 2014

CHORO EMPRESTADO

Arte de Andre Masson

Tenho um péssimo hábito de não anotar o sobrenome dos meus contatos do celular. Digito rapidamente o primeiro nome e deu. Livro-me da tarefa.

Assim, quando vou telefonar para meu amigo Everton, enfrento a loteria de cinco Everton na minha lista e não sei qual é o Everton verdadeiro. Não que os outros sejam falsos, mas o Everton mais próximo está ladeado de xarás eventuais e efêmeros do mundo dos negócios.

Para falar com Everton, acumulo gafes. Como não sei sequer os primeiros dígitos de seu número, sou obrigado a perder uma manhã inteira confirmando seu telefone. É ridículo, ligo para vários intermediários para ter a certeza de um destino.

Enfrento enrascada ainda maior diante de nomes tradicionais como Ana, Maria, Pedro e Zé. Daí a roleta russa se converte em guerra ucraniana. São 15 opções de cada um para criar constrangimento, gastar lábia e pedir desculpa.

Minha preguiça sempre me coloca em situações embaraçosas. Esses dias, recebi um SMS de minha amiga Natalia, avisando que não iria para aula porque sua mãe faleceu. Aquilo me calou fundo. Encheu de lágrimas os dois copos de requeijão de meus olhos. Não questionei o contexto “Aula? Que aula?”, afinal não frequentava mais nenhum curso com ela.

Respondi apenas meus pêsames e perguntei onde seria o enterro e qual o horário.

Tinha sido colega de Natália no Ensino Médio. Foi minha confidente e conselheira inseparável. Recordava sua mãe nos servindo sanduíche de mortadela e suco de laranja quando estudávamos no quarto para as provas finais. Conservei essa terna imagem para ter o que desaguar no sofrimento.

Ao chegar no velório no São Miguel e Almas, não localizei a cabeleira loira de Natália.

O silêncio do lugar acentuava os gemidos e miados dos parentes. Cadeiras em L asseguravam ordem e fila na demonstração da dor.

Esperei sentado um pouco para ver se esbarrava em alguma lembrança. Não reconheci ninguém.

Decidi cumprimentar o homem perto do caixão. Raciocinei que era o viúvo e pai de Natália. Eu me aproximei e abracei longamente o sujeito. Chorei copiosamente em seus ombros. Ele retribuiu chorando mais alto. Dei dois socos em suas costas. Ele revidou esmagando meus braços. Eu soltei uma frase consoladora tipo “A vida é terrível!”, ele concordou soluçando.

Sozinho, ao lado da falecida, observei o vidro buscando entender se a morte tinha inchado seu rosto ou ela havia envelhecido em pouquíssimo tempo.

Depois de me desidratar no cemitério, telefonei para Natália e lamentei que não a encontrei na despedida de sua mãe.

- Minha mãe, Fabrício? Isola! Está vivíssima da silva.

Acho que chorei pelo morto errado. Fica como crédito para o próximo enterro.

  
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 15/6/2014 Edição N° 17829

sexta-feira, 13 de junho de 2014

POR QUE MENINO NÃO BRINCA DE BONECA?


Tentei brincar de boneca. Não posso dizer que não experimentei. Esperei minha irmã sair de perto e ir para aula de dança de tarde. De fininho, simulando que seguia ao banheiro no fundo do corredor, entrei em seu quarto rosa e roubei a Barbie para ver qual era. Acho que o ato se enquadrava em sequestro. Desfalquei a dona da casinha enquanto se olhava na penteadeira e corri ao pátio. Ken não notou o sumiço de sua esposa - era vaidoso demais para ser atento.

Com a respiração ofegante, meu primeiro passo foi tirar as roupas dela. Com ânsia, trocando os dedos, decidido a reencontrar as curvas e volúpia que tanto me deslumbrava nas mulheres. Na ausência paterna depois do divórcio, minha mãe me levava a piscina pelo vestiário feminino - desvendei o éden de penugens loiras, morenas, ruivas desfilando com toalhas na cabeça.

Ao arrancar o vestido da Barbie, não reconheci o tremor da minha pele. Veio a decepção: ela tinha o corpo chapado, opaco, reto, sem nenhuma reentrância. Só plástico. Não havia como ser médico, muito menos enfermeiro.

Larguei logo a loira para voltar a me entreter com a bola e carrinhos, operações muito mais emocionantes, envolvendo colisões e malabarismos.

Ninguém me pegou em flagrante, mas não procurei disfarçar o desconforto. Aquilo não atiçava minha curiosidade. Não alimentava o olhar ávido, a sede de biologia, a força da anatomia.

Menina gosta de vestir boneca, menino gostaria de brincar de despir boneca, só que não tem graça. Não dá para imaginar nada. É preciso o mínimo de realidade para suscitar a fantasia.

Quando nua, a Barbie partilhava daquele desinteresse de manequim de loja. A falsidade não era excitante. Não induzia ao erro. Não inspirava expedições. Traduzia um erotismo broxante de tábua de passar.

Sou fã da nudez feminina desde pequeno. Minha alma lúdica sempre dependeu do desenho do corpo. Desenho leal, não croquis e rascunho.

Guri ama a emoção verdadeira do pecado. A visão fidedigna do pecado.


Publicado na Revista Isto É Gente
Junho de 2014 p. 50
Ano 14 Número 709
Colunista

A FALTA DE EDUCAÇÃO É EGOÍSMO

Arte de Chaim Soutine

O egoísta não é aquele que não dá nada, é o que não sabe receber.

Insaciável, não reconhece nunca o que ganha. Jamais é suficiente.

O egoísta vai chamar atenção de algo que não aconteceu. Não agradece, não sente falta, não expõe sua saudade.

O egoísta só ama a si mesmo, não tem espaço para amar mais ninguém.

Usa seu melhor para piorar os outros. Aliás, ele se valoriza desprezando os outros.

Adora reclamar, adora cobrar, sempre tem razão.

Não troca seu orgulho por nada.

Só se preocupa com a sua felicidade.

Toda ajuda que oferece é um investimento.

Não tem amigos, mas bajuladores.

Sua memória é curta para alegria, sua memória é longa para tristeza.

Fácil identificar o egoísta no trânsito, na fila do banco, no estádio.

Todo egoísta é um mal-educado.

Ele não diz “por favor”, “com licença”, “obrigado”, “desculpa”.

Acha que todo mundo tem obrigação de servi-lo.

A educação é o primeiro passo da humildade e o último passo da generosidade.

Ouça meu comentário dessa sexta (13/6) no programa Gaúcha Hoje, na Rádio Gaúcha:

quarta-feira, 11 de junho de 2014

OS PINGUINS DE DINÁ

Arte de Eduardo Nasi

Diná tem uma coleção de pinguins. Mais de 400 pinguins pela casa. De vidro, de plástico, de pano. É pinguim no formato de abajur, de pantufa, de headphone.

Chamo sua residência de Comandante Ferraz, a estação brasileira na Antártida.

Prateleiras são tomadas de seu xodó, enfeitiçadas de cópias, clones e sósias de seu animal predileto de asas curtas e pés juntos.

Não procurei discutir com o fetiche da amiga e ofertei, preguiçosamente, um pinguim cangaceiro de aniversário.

Ao entregar o Lampião do Pólo Norte, esclareci com humor que fui voto vencido:

— É que vi que gosta de pinguim. Não quis magoá-la com minha criatividade.

Ela me fuzilou estranho, encolheu os olhos como se sofresse astigmatismo, esboçou uma cara de Orca.

— O que foi, Diná?

— É que eu odeio pinguim! Odeio!, ela respondeu.

— Como? Sua casa é cheia desse bicho…

Ela puxou meus ombros para que sentasse e explicou:

— Alguém inventou de me dar um pinguim, gostei e coloquei na minha geladeira. Um outro colega viu o pinguim na geladeira, achou que gostava e me ofereceu um pinguim de porcelana. Minha irmã espalhou para a família que adorava pinguim, que tinha até um pinguim de porcelana na minha sala, e passei a receber somente pinguim de natal, dia das mães, dia dos namorados, aniversário, amigo secreto. Eu fui educada e agora a coleção é uma maldição. Ninguém escolhe um presente diferente para mim. Eu odeio pinguim, pinguim é uma ave e não voa.

Era tamanho ódio que eu me senti integrante do Greenpeace e saí em defesa do bichinho:

— É que a asa do pinguim serve como nadadeira. Ele nada até 45 km/h!

— Não me interessa! Adivinha quantos DVDs já ganhei do filme Pinguins do Papai, de Jim Carrey?

— Quantos?

— Vinte!

Diná desandou a chorar. Sua vontade era destruir um por um dos bibelôs. Preparar uma fogueira de São João na rua.

Compreendia seu desespero. Opiniões são provisórias, mas terminam tratadas como definitivas. Nossa adoração é feita por fases, nossos hobbies são formados por épocas, só que somos cristalizados a vida inteira por um único viés.

Meu filho Vicente um dia gostou de ganhar bola de futebol — hoje ele odeia bola de futebol. Meu irmão Miguel um dia gostou de ganhar latinha de cerveja — hoje ele amassa com os pés.

É começar a colecionar algo que corremos o risco de virar museu.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
11/6/2014

terça-feira, 10 de junho de 2014

OLHA O PASSARINHO!

Arte de Georges Grosz

Grandes homens em grandes momentos terão algo em comum: a braguilha aberta.

Vi uma fotografia antiga do técnico Rubens Minelli na decisão do Brasileiro de 1975, quando o Inter ganhou de 1 a 0 do Cruzeiro com o gol iluminado de Figueroa. Ele gesticulava na frente da casamata do Beira-Rio, másculo e viril, a poucos instantes de se tornar campeão nacional, perto da glória da faixa no peito. Estaria perfeito para a posteridade se não fosse sua braguilha escancarada.

Lula tomou posse de braguilha aberta. Obama assumiu também de braguilha aberta. Paul McCartney cansou de cantar Yesterday com a braguilha aberta.

A braguilha aberta é a infância masculina, sua incurável distração. Pode ser um estadista, decidir o destino da humanidade, mas não se lembrará de levantar o zíper. De Napoleão ao príncipe Charles, é uma incompetência do homem. Um desleixo da heterossexualidade.

Não é maldade, não é sem-vergonhice, é um problema de software. Homem que é homem despreza a função do zíper. Aceita a convivência com cadarços e botões, e só. Papas e padres usam batina de propósito, somente para não oferecer mau exemplo.

As mulheres acreditam que seja resultado de nossa pressa. Pois não é. Se contássemos com todo o tempo do mundo, ainda assim esqueceríamos a braguilha aberta.

Não é que a gente foi ao banheiro, mijou e não subiu o zíper. A gente foi ao banheiro com o zíper baixo e o manteve do mesmo jeito. Não mexemos nele desde que saímos de casa.

Calça é cueca. Calça tem corpo fechado para os varões. Não recebe cuidado e controle diurnos. Botamos a calça de manhã e resolvemos o assunto até de noite – não somos adeptos da manutenção, ato exclusivamente feminino, feito da reposição do perfume e do retoque do cabelo e da maquiagem.

Eu fiz minha primeira comunhão de braguilha aberta, eu me formei de braguilha aberta. Em todas as cenas importantes de minha vida, lá está o fecho solto.

Antes de sair de casa, minha mulher decretou um checklist: limpar as remelas dos olhos, tirar as meias das barras da calça e fechar o zíper.

Ela tem a esperança de que vou alcançar a excelência, ou aquilo que chama de decência. Já penso em adotar o abrigo como meu traje oficial.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 24,  10/6/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17824

segunda-feira, 9 de junho de 2014

UM JEANS NUNCA SAI BARATO

Arte de Tom Wesselmann

Não tema quando sua mulher subir numa balança. A balança é de menos. A balança não é de nada.

Se ela pisar numa farmácia e verificar seu peso, não sofra por antecipação, não se amedronte com o resultado. Talvez sua esposa saia rindo, diga que não confia na fidelidade da máquina e que não se preocupará à toa. A ordem das coisas e da casa permanecerá inalterada.

Mas fique tomado de toda a cautela quando ela provar jeans em uma loja.

Não pense que ela está comprando apenas mais uma peça, que ela apenas desejava uma opção escura com cintura alta ou intermediária, que é uma saída de praxe ao shopping. Não entre de patinho nesta conversa furada de provador.

Verá o Apocalipse sem bainhas. Sua tranquilidade pode terminar. Seu mundo pode ruir.

A calça é a real balança da mulher. É a única medição em que ela confia cegamente.

É não entrar em seu número, é não fechar o zíper apesar dos pulinhos, é não entender a falta abrupta de sintonia entre as coxas e a bunda, é perceber os gomos saltando das pernas, que sua esposa irá enlouquecer. Não calará mais a boca dali por diante com dietas do suco, da proteína, do chá verde, do miojo, dos pontos, da sopa, da lua, do sol, de Beverly Hills, do bairro Cavalhada.

Abandonará o shopping com uma longa lista de cortes e restrições, num enxugamento alimentar jamais visto em sua residência.

Acabou o romance entre vocês. Acabou suas mordomias, suas escapadas da rotina a dois, sua pizza pepperoni.

Ela vai cancelar todos os possíveis jantares, vai anular qualquer cinema durante o mês para não comer pipoca e tomar refrigerante, vai suspender a viagem programada para Gramado, vai acabar com os passeios noturnos pelos bares (já que não deve beber).

Ou seja, ela deixará de viver. E por causa do maldito jeans que não serviu nela, você também deixará de viver.

Ninguém engorda sozinho. E, preste atenção, ninguém emagrece sozinho.

O preço de morar junto está embutido na calça.


  
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 8/6/2014 Edição N° 17822

terça-feira, 3 de junho de 2014

GNOMO EM ALTO ESPORTE

Arte de Pedro Friedberg

Logo no segundo encontro com a minha mulher, ela teve que enfrentar um grande teste: o modo como eu estava vestido.

Esperava Katy no bar do cinema. Meu figurino era uma calça amarela de coração, um blusão verde, um casaco de veludo ainda mais verde, sapato vermelho combinando com os óculos. Em suma, um gnomo em alto esporte. Um arco-íris na curva da tempestade.

Não precisava levantar o braço para denunciar minha localização.

Ela, que se preocupava com o que colocar para me agradar, descobriu que deveria é se preocupar comigo. Vinha a ser, mesmo vestido, um atentado violento ao pudor.

Por generosidade do destino, não tive irmão gêmeo.

Andar comigo pelo shopping seria o equivalente a dar a mão para uma árvore de Natal. Os cadarços desamarrados serviam de tomada.

Ela confessou, um ano depois, que não ficou assustada.

– Eu me assusto com baratas. Contigo daquele jeito, fiquei apavorada.

Acho que rezou para não esbarrar com algum familiar e amigo pelas galerias e lojas. Suou frio, gaguejou, contornou o constrangimento com a elegância das meias palavras.

Foi muito amor e provação da parte dela. Não comentou nada, fingiu normalidade. Não teceu nenhum comentário irônico. Elogiou o que podia naquele momento, o meu perfume.

Hoje, aposentei as calças coloridas e extravagantes, as camisetas P brilhosas, os casacos estranhos. Fiz uma limpa nos cabides. Tirei a drag queen do meu armário. Separei as roupas para dar. Finalizei uma era de minha vida. Não desprezava quem fui, apenas não me atendia mais.

Nossa empregada Cléo recebeu a responsabilidade de levar as sacolas aos necessitados.

Qual minha surpresa quando ela volta no dia seguinte com todas as minhas peças. Nenhuma ganhou a simpatia de entidades beneficentes e brechós.

– Pode ainda interessar as escolas de samba –, Cléo buscou me consolar.

Terminei recusado pela campanha do agasalho. Devo ter sido o primeiro caso da história de Porto Alegre.

Não há caridade que justifique a cafonice.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 24,  3/6/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17817

PROVA PARA CONFIRMAÇÃO DA FEIÚRA

Quer descobrir se é feio?

Tem ainda alguma desconfiança diante do espelho?

Não se acostumou com a ideia?

Guarda esperança cosmética ou uma fé de que pode melhorar com o tempo?

Posso alcançar a receita, o exame final.

Eu não precisei disso. Eu vi minha cara desde o início de minha vida e não tive dúvida.

Mas para os indecisos, recomendo uma imbatível prova com 100% de aproveitamento. 

Coloque a roupa de sua mulher. Ponha sutiã e vestido. Arrume o cabelo. Passe batom, blush, rímel. Pegue o salto alto dela emprestado. 

Agora vê se ficou bonita. Vê se você realmente se parece com uma mulher. 

Se não consegue nem se travestir, desculpe, significa que você é muito feio.

Não virou boneca, somente um boneco de vodu. 

Aceite o fracasso. É tão feio que não pode nunca deixar de ser homem.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (3/6) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

MEU COLEGA RAFAEL

Quando a gente se conheceu na adolescência, não sabíamos que você morreria aos 42 anos.

Quando a gente atravessava o recreio comendo pastelina e tomando guaraná, não sabíamos que você morreria aos 42 anos.

Quando a gente produzia misturas estranhas no laboratório da escola até o tubo de ensaio explodir, não sabíamos que você morreria aos 42 anos.

Quando decidiu ser médico e eu decidi ser jornalista, não sabíamos que você morreria aos 42 anos.

Quando a gente ficava horas discutindo o que faríamos se ganhássemos a Mega Sena, não sabíamos que você morreria aos 42 anos.

Quando a gente cantava Legião Urbana durante as madrugadas na companhia de um garrafão de vinho, não sabíamos que você morreria aos 42 anos.

Quando me ensinava matemática e biologia para escapar da recuperação, não sabíamos que você morreria aos 42 anos.

Quando nos formamos no Colégio Aplicação e renovamos o pacto de amizade, não sabíamos que você morreria aos 42 anos.

Quando passamos no Vestibular da UFRGS, não sabíamos que você morreria aos 42 anos.

Quando cada um casou e descobriu a mulher de sua vida, não sabíamos que você morreria aos 42 anos.

Quando descobrimos o que é ser pai e o que é ter uma casa própria, não sabíamos que você morreria aos 42 anos.

Quando se mudou para Curitiba e prometemos nos rever em breve, não sabíamos que você morreria aos 42 anos.

Quando comemorou seu aniversário na semana passada, ainda não sabíamos que você morreria aos 42 anos.

Ninguém sabia. A gente só foi feliz porque ninguém sabia que você morreria aos 42 anos.

Minha homenagem ao meu colega de escola, o médico Rafael Lodeiro Müller, que morreu aos 42 anos em um acidente de carro na madrugada da última terça-feira (27/5).

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (30/5) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

domingo, 1 de junho de 2014

A MÃO DA FILHA

Arte de Salvador Dalì

Rituais me comovem. E ainda mais quando são desnecessários.

Um deles é quando o jovem pede a filha em namoro para os pais.

Ninguém usa cerimônia para começar um relacionamento. Namoros se iniciam com um clique no Facebook e terminam com o bloqueio no Facebook.

Por isso me espanta quem enfrenta a família da pretendente. Quem se importa com a opinião dos mais velhos, em empenhar a palavra, em olhar nos olhos, em indicar firmeza de laços.

Não é tarefa pequena criar um compromisso com o futuro, transparecer intenções sérias, evidenciar que não está brincando, admitir que está apaixonado e arcar com as consequências da escolha.

Há uma tendência em ser imediatista e descomprometido, em privilegiar o presente e a independência do desejo. É cômodo manter o romance a dois, qualquer ruptura não terá efeitos públicos, é sair e se desligar com facilidade. Os segredos ficam restritos e não interessa aos demais.

Sou absolutamente sentimental com a coragem dos românticos.

O adolescente que rompe com o egoísmo e divide suas expectativas é um louco de minha mais completa admiração. Olha que coisa estranha de se dizer: loucura hoje é ser tradicional, é se apegar, é honrar o núcleo familiar, é oficializar o arrebatamento.

Quem pede em namoro diante da família não pode fugir de repente, mudar de ideia e desaparecer. Declara o endereço de seu coração, o CEP, o CPF, mostra quem é e o que deseja.

Quem tem essa ousadia de não voltar atrás em seus próprios sentimentos e honrar promessas? De se incomodar em ouvir o que os outros pensam, em suportar o constrangimento do primeiro encontro e a secura da garganta?

Ficar na sala aguardando o momento certo de abrir a boca entre o comercial e a novela. Escolher as frases mais sensatas e tentar encontrar clareza para expor pensamentos confusos e emaranhados da paixão.

E não é somente falar, é estar receptivo a um sermão, a uma negativa, a restrições, a represálias. É se colocar dentro de um convívio, com regras e ritmo desconhecidos.

Mais do que educação, significa respeito. É cuidar daqueles que cuidaram dela antes. É proteger aqueles que dedicaram a vida a protegê-la.

É valorizar o passado da mulher, abrir um novo ciclo e arcar com as expectativas dos atos.

É avisar a família antes do mundo — quer uma prova maior de reverência?

Meu amigo Claiton teve essa dádiva. Quando o rapaz pediu sua filha em namoro, ele baqueou pelo reconhecimento, surpreendido pelo tamanho cuidado.

Recebeu o candidato para um café. Aguardou que ele falasse, falasse, falasse de toda sua fé e o quanto estava sendo feliz.

Assim que ele pediu a mão de sua filha, Claiton não facilitou. Emudeceu longos minutos. Encarou ambos, respirou fundo e confessou:

– Não lhe dou a mão de minha filha, deixa a mão comigo, tá? Você já tem todo o corpo e alma dela, a mão é minha. A mão é do pai se ela precisar voltar, se ela precisar que eu a puxe de volta. Combinado?

Quando o homem faz um pedido formal de namoro, ele oferece algo muito importante e inesquecível à sua namorada: a declaração de amor do pai.

Permita essa delicadeza para sua mulher.

  
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 1/6/2014 Edição N° 17815