Meu umbigo é uma fábrica de lã.
Algo que nunca corrigi na vida. Não cortei o cordão umbilical por inteiro, é uma sensação de purgatório.
Ele sempre guarda resquícios das camisas e camisetas. Fica tapado com a flufa. Todo o dia preciso efetuar a manutenção.
Antes do sexo, dou uma olhadinha para ver se está tudo bem. Não quero que a minha mulher mexa no meu umbigo durante o calor do vaivém. Ou que diga: só posso continuar quando o seu umbigo estiver limpo. A possibilidade da sentença me atordoa.
A sujeirinha criou uma paranoia desnecessária de limpeza. Como ninguém fala nada sobre o assunto, imagino que sofro uma doença rara, algo tipo flufalência. Jamais toquei no assunto com o meu terapeuta.
O curioso é que descobri que meu iPhone sofre do mesmo mal. Nenhum carregador mais funcionava com o aparelho. Estava cansado de adquirir extensões novas mensalmente, originais e bastardas. Nenhuma vingava. Terminava preso a uma tomada mudando de posição incansavelmente, apertando e afrouxando o cabo.
Disposto a pôr um ponto final no suplício, fui numa assistência autorizada da Apple. O técnico, de cara, desentortou um clipe e alertou: é sujeira no umbigo. Como assim? Nem sabia que o meu telefone tinha umbigo. E retirou um novelo de poeira do contato por onde entra o fio.
Voltei para casa disposto a fazer uma atualização do meu sistema.
Não me elogiar não quer dizer que ela não está me enxergando. Na hora em que precisar, surgirá batendo à porta e oferecerá o seu colo. Não sofro do desespero de perdê-la, estou eternamente em seus traços e manias.
Identifico o seu esforço de lutar contra a saudade, e reconheço o seu mérito.
Você só tenta escapar daquilo que é importante. Ela procura construir a sua personalidade longe de minha influência.
Eu compreendo: realizei semelhante oposição aos meus pais, escritores.
A beleza do conflito é que não existe bajulação, a relação é profundamente mais sincera.
Publicado em O Globo em 28/12/2017
segunda-feira, 15 de janeiro de 2018
O QUANTO AMO MINHA FILHA PARA ENTENDER SUA IMPLICÂNCIA
Minha filha hoje completa 24 anos.
Minha filha não usa o meu sobrenome para não criar ligação direta comigo.
Agendar um encontro com minha filha é uma operação de guerra. Chamo para almoço, jantar, café, viagem, cinema, e costuma arrumar uma desculpa e uma urgência para não aceitar.
Minha filha não comenta os meus textos. Muito menos revela se leu os meus livros.
Minha filha não usa as redes sociais para não criar parentesco com as minhas postagens.
Minha filha me deixa no vácuo quatro dias numa mensagem – eu até uso emojis para sensibilizá-la, sem efeito.
Minha filha não atende às minhas ligações – depois de algum tempo, pergunta se eu telefonei.
Minha filha não sofre com os meus problemas – avisa que é para parar de drama.
Minha filha não se emociona com o meu abraço escandaloso na rua, pelo contrário, faz um gesto de menos.
Minha filha reclama quando beijo o seu rosto e roço as bochechas com a minha barba.
Minha filha sugere que tem vergonha de mim, e é, no fundo, orgulho. Quando o filho se opõe ao pai, significa respeito e admiração. Eu não fracassei, eduquei alguém capaz de me encarar de igual para igual e me testar para descobrir o quanto a amo.
Não me elogiar não quer dizer que ela não está me enxergando. Na hora em que precisar, surgirá batendo à porta e oferecerá o seu colo. Não sofro do desespero de perdê-la, estou eternamente em seus traços e manias.
Identifico o seu esforço de lutar contra a saudade, e reconheço o seu mérito.
Você só tenta escapar daquilo que é importante. Ela procura construir a sua personalidade longe de minha influência.
Eu compreendo: realizei semelhante oposição aos meus pais, escritores.
A beleza do conflito é que não existe bajulação, a relação é profundamente mais sincera.
Ela vem aprendendo a se defender do mundo comprando briga em casa. Há sempre um porém. Já entendi que não está à minha sombra. Cursa Letras, porém confessa que é para seguir um caminho diferente do meu. Escreve, porém mente que não é escritora. Compõe e canta, porém guarda as suas músicas para o seu próprio prazer.
Ela não admite o quanto somos parecidos. Logo descobrirá que não somos. Ela é muito melhor do que eu. Paternidade é rascunho.
Publicado em Jornal Zero Hora em 26/12/2017
Minha filha não usa o meu sobrenome para não criar ligação direta comigo.
Agendar um encontro com minha filha é uma operação de guerra. Chamo para almoço, jantar, café, viagem, cinema, e costuma arrumar uma desculpa e uma urgência para não aceitar.
Minha filha não comenta os meus textos. Muito menos revela se leu os meus livros.
Minha filha não usa as redes sociais para não criar parentesco com as minhas postagens.
Minha filha me deixa no vácuo quatro dias numa mensagem – eu até uso emojis para sensibilizá-la, sem efeito.
Minha filha não atende às minhas ligações – depois de algum tempo, pergunta se eu telefonei.
Minha filha não sofre com os meus problemas – avisa que é para parar de drama.
Minha filha não se emociona com o meu abraço escandaloso na rua, pelo contrário, faz um gesto de menos.
Minha filha reclama quando beijo o seu rosto e roço as bochechas com a minha barba.
Minha filha sugere que tem vergonha de mim, e é, no fundo, orgulho. Quando o filho se opõe ao pai, significa respeito e admiração. Eu não fracassei, eduquei alguém capaz de me encarar de igual para igual e me testar para descobrir o quanto a amo.
Não me elogiar não quer dizer que ela não está me enxergando. Na hora em que precisar, surgirá batendo à porta e oferecerá o seu colo. Não sofro do desespero de perdê-la, estou eternamente em seus traços e manias.
Identifico o seu esforço de lutar contra a saudade, e reconheço o seu mérito.
Você só tenta escapar daquilo que é importante. Ela procura construir a sua personalidade longe de minha influência.
Eu compreendo: realizei semelhante oposição aos meus pais, escritores.
A beleza do conflito é que não existe bajulação, a relação é profundamente mais sincera.
Ela vem aprendendo a se defender do mundo comprando briga em casa. Há sempre um porém. Já entendi que não está à minha sombra. Cursa Letras, porém confessa que é para seguir um caminho diferente do meu. Escreve, porém mente que não é escritora. Compõe e canta, porém guarda as suas músicas para o seu próprio prazer.
Ela não admite o quanto somos parecidos. Logo descobrirá que não somos. Ela é muito melhor do que eu. Paternidade é rascunho.
Publicado em Jornal Zero Hora em 26/12/2017
O CHEIRO DA MÃE
Logo que a criança nasce, nas primeiras semanas depois do parto, a mãe deve evitar o uso de perfume. Para não confundir o filho.
O cheiro do corpo materno será a maior ligação que o bebê terá com o mundo. Tanto que ele costuma chorar no colo de que qualquer um, menos no colo da mãe, pois reconhecerá imediatamente o cheiro do pescoço. Só o olfato já o acalmará.
Pôr o pequeno no peito, ainda que não seja para mamar, trará o conforto da pele conhecida, o agrado de pertencer a um lugar definido depois do ventre.
É pela respiração que nos sentimos amados, antes das palavras, antes dos gestos.
O bebê mal pode enxergar, mas já sabe quem é quem pelo suor, pela química dos poros. É uma conexão primitiva, quase inexplicável, de animal com o seu ninho.
Quando ele inspira a pele da mãe, estabelece um endereço de proteção. Talvez represente o momento oficial de seu nascimento: quando ele liga o Wi-Fi da personalidade. Todo perigo se apresentará fora daquele corpo, daqueles quadrantes, daquela bússola.
A maior parte de suas lágrimas decorre de quando se vê distante do seu cheiro de existir, presente na mãe. É o seu primeiro cueiro, a sua primeira manta. É o seu esconderijo na luz, o seu ferrolho para entender o que está acontecendo e onde veio parar.
Suas lembranças primevas descendem do faro, o seu canal de comunicação com os outros.
Não é por menos que, adultos, nos comovemos com um olor, sem fixar a origem da atração. Surgiu certamente do berço, da nossa fulminante e arrebatadora estreia. Eu, por exemplo, sou apaixonado por hortelã. Numa conversa à toa com a mãe, descobri que era o seu chá predileto nas minhas semanas iniciais de vida.
Dos 3 mil odores que um ser humano pode colecionar ao longo de sua trajetória, há um apenas que lhe dará segurança.
Quando abraçamos a nossa mãe, refazemos a mágica da fragrância fundadora. Não há melhor abrigo para nascer de novo.
Publicado em Donna ZH em 25/12/2017
O cheiro do corpo materno será a maior ligação que o bebê terá com o mundo. Tanto que ele costuma chorar no colo de que qualquer um, menos no colo da mãe, pois reconhecerá imediatamente o cheiro do pescoço. Só o olfato já o acalmará.
Pôr o pequeno no peito, ainda que não seja para mamar, trará o conforto da pele conhecida, o agrado de pertencer a um lugar definido depois do ventre.
É pela respiração que nos sentimos amados, antes das palavras, antes dos gestos.
O bebê mal pode enxergar, mas já sabe quem é quem pelo suor, pela química dos poros. É uma conexão primitiva, quase inexplicável, de animal com o seu ninho.
Quando ele inspira a pele da mãe, estabelece um endereço de proteção. Talvez represente o momento oficial de seu nascimento: quando ele liga o Wi-Fi da personalidade. Todo perigo se apresentará fora daquele corpo, daqueles quadrantes, daquela bússola.
A maior parte de suas lágrimas decorre de quando se vê distante do seu cheiro de existir, presente na mãe. É o seu primeiro cueiro, a sua primeira manta. É o seu esconderijo na luz, o seu ferrolho para entender o que está acontecendo e onde veio parar.
Suas lembranças primevas descendem do faro, o seu canal de comunicação com os outros.
Não é por menos que, adultos, nos comovemos com um olor, sem fixar a origem da atração. Surgiu certamente do berço, da nossa fulminante e arrebatadora estreia. Eu, por exemplo, sou apaixonado por hortelã. Numa conversa à toa com a mãe, descobri que era o seu chá predileto nas minhas semanas iniciais de vida.
Dos 3 mil odores que um ser humano pode colecionar ao longo de sua trajetória, há um apenas que lhe dará segurança.
Quando abraçamos a nossa mãe, refazemos a mágica da fragrância fundadora. Não há melhor abrigo para nascer de novo.
Publicado em Donna ZH em 25/12/2017
BROXADA GERA RELACIONAMENTOS LONGOS
Homem jura que perderá a mulher ao broxar. Mas, curiosamente, é broxando uma vez que nunca vai se separar.
A impotência eventual traz longevidade ao casal. Ainda mais nas noites iniciais.
Ele pedirá a mulher em namoro de bate-pronto, na primeira semana. Casará com a mulher sem frescura, já no primeiro mês. Tudo para ela não contar a mais ninguém o que aconteceu. Fará tudo pela relação para manter o segredo intacto. Será submisso e obediente, incansável e compreensivo. Suportará crises, barracos, ciúme, explosões. Encontrará o ponto de equilíbrio digno de Dalai Lama: o olhar infinito e cordial.
A broxada se apresentará como fiador do apartamento a dois. Ele não vai se arriscar a encerrar um romance e sofrer com a boataria. Prefere largar a sua vida de solteiro para manter a reputação.
Quando o homem falha, deixa de ser galinha, Don Juan, Casanova, comedor. Vira automaticamente um sujeito sério, comportado, disciplinado para o amor. Não espiará aos lados, não pulará a cerca.
Sua vulnerabilidade lhe salva da infalibilidade. Como já errou, não terá uma postura arrogante, de cobrar os vacilos dos outros. Nem cogitará a deslealdade. Passará o tempo inteiro lembrando e renovando a dívida de gratidão. Homem que já broxou é fiel. Irreversivelmente fiel.
Já a mulher não largará o flerte que fracassa na cama. Achará o nervosismo honesto e bonito. Julgará o parceiro como sensível, diferente dos antecedentes que apenas queriam sexo. Ao broxar, ele prova que o sexo não é tão importante.
Da mesma forma, ela vai querer ajudá-lo a superar o bloqueio. Oferecerá mais chances, mais disponibilidade, mais oportunidades. Muito mais do que um caso comum e tradicionais paqueras.
Ela assumirá o fiasco masculino como uma missão pessoal, até para se confirmar desejável. Abusará dos artifícios da luz, da trilha sonora, dos figurinos, dos fetiches, disposta a vingar a noite em seco.
Quando o homem broxa, a mulher se desespera em criatividade e ele tem o luxo inigualável de vê-la se matando com todos os seus recursos e artimanhas de sedução.
Homem que broxa é o único a desfrutar de um banquete.
Publicado em UOL em 22/12/2017
A impotência eventual traz longevidade ao casal. Ainda mais nas noites iniciais.
Ele pedirá a mulher em namoro de bate-pronto, na primeira semana. Casará com a mulher sem frescura, já no primeiro mês. Tudo para ela não contar a mais ninguém o que aconteceu. Fará tudo pela relação para manter o segredo intacto. Será submisso e obediente, incansável e compreensivo. Suportará crises, barracos, ciúme, explosões. Encontrará o ponto de equilíbrio digno de Dalai Lama: o olhar infinito e cordial.
A broxada se apresentará como fiador do apartamento a dois. Ele não vai se arriscar a encerrar um romance e sofrer com a boataria. Prefere largar a sua vida de solteiro para manter a reputação.
Quando o homem falha, deixa de ser galinha, Don Juan, Casanova, comedor. Vira automaticamente um sujeito sério, comportado, disciplinado para o amor. Não espiará aos lados, não pulará a cerca.
Sua vulnerabilidade lhe salva da infalibilidade. Como já errou, não terá uma postura arrogante, de cobrar os vacilos dos outros. Nem cogitará a deslealdade. Passará o tempo inteiro lembrando e renovando a dívida de gratidão. Homem que já broxou é fiel. Irreversivelmente fiel.
Já a mulher não largará o flerte que fracassa na cama. Achará o nervosismo honesto e bonito. Julgará o parceiro como sensível, diferente dos antecedentes que apenas queriam sexo. Ao broxar, ele prova que o sexo não é tão importante.
Da mesma forma, ela vai querer ajudá-lo a superar o bloqueio. Oferecerá mais chances, mais disponibilidade, mais oportunidades. Muito mais do que um caso comum e tradicionais paqueras.
Ela assumirá o fiasco masculino como uma missão pessoal, até para se confirmar desejável. Abusará dos artifícios da luz, da trilha sonora, dos figurinos, dos fetiches, disposta a vingar a noite em seco.
Quando o homem broxa, a mulher se desespera em criatividade e ele tem o luxo inigualável de vê-la se matando com todos os seus recursos e artimanhas de sedução.
Homem que broxa é o único a desfrutar de um banquete.
Publicado em UOL em 22/12/2017
O ROSTO DESAPARECIDO
Já tive a tristeza de olhar alguns amigos queridos no caixão, pálidos, cobertos de flores. Eu não reconheci nenhum deles. Sempre levei um susto, como se eu tivesse entrado no velório errado.
A morte modifica o rosto, a ponto dele ficar irreconhecível. O rosto do morto não é o rosto de quem dorme. A face adormecida ainda é bonita, com a respiração bombeando a tez da pele. Durante o sono, nossos traços têm o contorno do lápis e a tridimensionalidade da luz.
O rosto do morto é impessoal, uma máscara de gesso, uma moldura barroca numa tela em branco, uma dor sem grito e sem socorro.
Antes acreditava que não havia olhado bem o meu amigo em nossos encontros, não gravei as suas nuances, pois ele me parecia distinto. Depois fui aceitando a ideia de que o fim transfigura a identidade. Aquele não era mais o meu amigo. Nem um gêmeo extraviado de meu amigo. Meu amigo não estava mais ali como eu o conhecia dentro da alegria. Toda morte troca o corpo. Nascemos e morremos em corpos diferentes.
Havia um estranho em seu lugar: feição sugada, queixo contraído, lábios menores do que o hábito da fala.
O choro vem porque nunca mais o verei, é a prova de que não mais o verei.
Até o morto não está em seu enterro - concluo, assoberbado. Chora-se pela sua lembrança mais do que pela referência presente daquele lugar sombrio de castiçais.
A impressão é que estou diante de um berço de madeira e ele se apequenou, regrediu de tamanho, tornou-se um bebê adulto, de colo. Na morte, somos pequenos e encolhidos, longe da imponência do movimento.
O que me confere a certeza de que temos um espírito nos aquecendo pelo interior dos músculos, temos um sopro milagroso e extraordinário dentro da gente, um vento divino de sentido.
A diferença entre o vivo e o morto é a alma. Quando a alma sobe, não resta mais nada. Por mais que a saudade procure forçar os olhos.
Publicado em O Globo em 20/12/2017
A morte modifica o rosto, a ponto dele ficar irreconhecível. O rosto do morto não é o rosto de quem dorme. A face adormecida ainda é bonita, com a respiração bombeando a tez da pele. Durante o sono, nossos traços têm o contorno do lápis e a tridimensionalidade da luz.
O rosto do morto é impessoal, uma máscara de gesso, uma moldura barroca numa tela em branco, uma dor sem grito e sem socorro.
Antes acreditava que não havia olhado bem o meu amigo em nossos encontros, não gravei as suas nuances, pois ele me parecia distinto. Depois fui aceitando a ideia de que o fim transfigura a identidade. Aquele não era mais o meu amigo. Nem um gêmeo extraviado de meu amigo. Meu amigo não estava mais ali como eu o conhecia dentro da alegria. Toda morte troca o corpo. Nascemos e morremos em corpos diferentes.
Havia um estranho em seu lugar: feição sugada, queixo contraído, lábios menores do que o hábito da fala.
O choro vem porque nunca mais o verei, é a prova de que não mais o verei.
Até o morto não está em seu enterro - concluo, assoberbado. Chora-se pela sua lembrança mais do que pela referência presente daquele lugar sombrio de castiçais.
A impressão é que estou diante de um berço de madeira e ele se apequenou, regrediu de tamanho, tornou-se um bebê adulto, de colo. Na morte, somos pequenos e encolhidos, longe da imponência do movimento.
O que me confere a certeza de que temos um espírito nos aquecendo pelo interior dos músculos, temos um sopro milagroso e extraordinário dentro da gente, um vento divino de sentido.
A diferença entre o vivo e o morto é a alma. Quando a alma sobe, não resta mais nada. Por mais que a saudade procure forçar os olhos.
Publicado em O Globo em 20/12/2017
O MENINO DONO DA BOLA
A bola era cara antes dos anos 80. Não se reproduzia em série como hoje, não havia oferta do produto por diferentes marcas, não se adquiria a bola oficial da Copa, da Libertadores, do Campeonato Brasileiro e do Gaúcho, não podia ser encontrada em camelôs, muito menos tinha a aparência como a conhecemos: impermeável, sem costura, realmente esférica e de várias cores.
A bola tinha gomos de couro, que caíam conforme o uso. Ia se desfolhando como massa de pastel, até aparecer a bexiga, que saía para fora como uma espinha gigante pronta a estourar. Não durava muito. Costurada à mão, artesanal mesmo, exigia cuidados especiais, como esfregar sebo no couro, assim como um surfista passa parafina em sua prancha. Tudo para deixá-la mais resistente aos paralelepípedos e campos de terra batida.
O risco de perdê-la costumava ser imenso. Jogávamos também nas ruas, com traves de tijolos e, invariavelmente, diante do chute desesperado do zagueiro para desafogar o ataque, a bola quebrava uma vidraça ou parava no pátio de alguma residência, e os vizinhos não a devolviam, para compensar o prejuízo. Isso quando não terminava atropelada por um carro. O estouro ou a apreensão de uma bola poderia significar o término da brincadeira por meses, suspender o campeonato do bairro, pois a turma não desfrutava de condições de comprar outra.
Receber uma bola de presente costumava ser uma dádiva da classe média alta para cima. Coisa rara para nós, molecada descalça.
O que criou condições para o surgimento de uma figura odiada no meu tempo: o menino rico que dava carteiraço porque trazia a bola. Ele nunca jogava nada, inábil e desastrado, com alma perna de pau, mas mandava e desmandava nas partidas. Agia como um híbrido de gandula, técnico e cartola. Abusava da autoridade de sua posse. A pelada só começava quando ele autorizava, do lado do time que ele desejava, com o regulamento inesperado de seu humor. Quando perdia, ele apitava o fim do duelo. Do nada, estragava a disputa, enervava o adversário dizendo que não havia vencedor já que o jogo foi suspenso e corria para casa com a desculpa de que a mãe o estava esperando. Queríamos bater em sua lata esnobe, enchê-lo de porrada devido a sua tirania, oferecer uma lição ao seu egoísmo filhinho da mamãe, porém pensávamos melhor e aceitávamos a cartolagem, passivos e obedientes, porque só ele possuía a bola, no raio de 10 quilômetros.
Todas as pessoas de que não gosto na vida, eu as imagino com uma bola debaixo do braço fugindo para casa. Nunca me recuperei dessa submissão na infância.
Publicado em Jornal Zero Hora em 19/12/2017
A bola tinha gomos de couro, que caíam conforme o uso. Ia se desfolhando como massa de pastel, até aparecer a bexiga, que saía para fora como uma espinha gigante pronta a estourar. Não durava muito. Costurada à mão, artesanal mesmo, exigia cuidados especiais, como esfregar sebo no couro, assim como um surfista passa parafina em sua prancha. Tudo para deixá-la mais resistente aos paralelepípedos e campos de terra batida.
O risco de perdê-la costumava ser imenso. Jogávamos também nas ruas, com traves de tijolos e, invariavelmente, diante do chute desesperado do zagueiro para desafogar o ataque, a bola quebrava uma vidraça ou parava no pátio de alguma residência, e os vizinhos não a devolviam, para compensar o prejuízo. Isso quando não terminava atropelada por um carro. O estouro ou a apreensão de uma bola poderia significar o término da brincadeira por meses, suspender o campeonato do bairro, pois a turma não desfrutava de condições de comprar outra.
Receber uma bola de presente costumava ser uma dádiva da classe média alta para cima. Coisa rara para nós, molecada descalça.
O que criou condições para o surgimento de uma figura odiada no meu tempo: o menino rico que dava carteiraço porque trazia a bola. Ele nunca jogava nada, inábil e desastrado, com alma perna de pau, mas mandava e desmandava nas partidas. Agia como um híbrido de gandula, técnico e cartola. Abusava da autoridade de sua posse. A pelada só começava quando ele autorizava, do lado do time que ele desejava, com o regulamento inesperado de seu humor. Quando perdia, ele apitava o fim do duelo. Do nada, estragava a disputa, enervava o adversário dizendo que não havia vencedor já que o jogo foi suspenso e corria para casa com a desculpa de que a mãe o estava esperando. Queríamos bater em sua lata esnobe, enchê-lo de porrada devido a sua tirania, oferecer uma lição ao seu egoísmo filhinho da mamãe, porém pensávamos melhor e aceitávamos a cartolagem, passivos e obedientes, porque só ele possuía a bola, no raio de 10 quilômetros.
Todas as pessoas de que não gosto na vida, eu as imagino com uma bola debaixo do braço fugindo para casa. Nunca me recuperei dessa submissão na infância.
Publicado em Jornal Zero Hora em 19/12/2017
BEIJO DIÁRIO DE DESPEDIDA
Conservo um costume com a minha esposa: o primeiro a trabalhar não pode sair de casa sem dar um beijo de despedida. Mesmo que acorde o outro. Mesmo que derrube um objeto no escuro. Mesmo que sacrifique o seu mundo onírico.
Dói entrar no no quarto e ter que informar a minha partida. Talvez esteja quebrando o sono leve de minha mulher, rompendo a casca fina do insconsciente. Nem sempre ela pode dormir mais. Nem sempre ela tem uma folguinha nos horários. Mas é o nosso pacto. E acordos entre nós dois são inquebrantáveis - nos lixamos se os demais compreenderão a nossa rotina como dependência e submissão.
Chego de leve e arrisco um toque manso de boca. Seguro a respiração ofegante do café tomado, tento me conter, não quebrar os cristais do descanso, só que é ela me perceber partindo, com o perfume da loção na barba feita, que logo fica espalhafatosa: já me abraça forte e troca juras. Depois se amansa e vira ao seu lado, com o prazer do romance renovado.
Ela diz que a minha aparição não a atrapalha, ela até gosta. Confessa que dorme melhor sabendo que a amo. Espia a minha roupa, faz um check-in em meu terno e gravata, e fecha os olhos docemente. Eu sou uma espécie de despertador de celular, um alarme do amor. Ela já se habitou a ativar o tempo da soneca a parir da minha entrada para o tchau.
Ela acredita que a despedida diária mantém o casal unido. Quem não avisa que está saindo se desapega e pode não voltar. O hábito constrói o respeito e mantém acesa a paixão.
É a grande diferença entre o casamento e colegas dividindo a casa: a intimidade declarada. Quando avisamos da partida com os olhos dos lábios não deixaremos de nos procurar e nos enxergar durante a distância dos empregos.
Nossos bilhetinhos são feitos de pele, com a tinta da saliva. São dois anos invictos, com as datas presas ao calendário do ritual.
Não cumprir o nosso combinado me deixaria mal durante o resto da jornada. Não quero nem pensar viver diferente. Eu sussurro histórias de nosso romance em seus ouvidos, de manhã cedo, para ela adormecer e sonhar comigo.
Publicado em Donna ZH em 17/12/2017
Dói entrar no no quarto e ter que informar a minha partida. Talvez esteja quebrando o sono leve de minha mulher, rompendo a casca fina do insconsciente. Nem sempre ela pode dormir mais. Nem sempre ela tem uma folguinha nos horários. Mas é o nosso pacto. E acordos entre nós dois são inquebrantáveis - nos lixamos se os demais compreenderão a nossa rotina como dependência e submissão.
Chego de leve e arrisco um toque manso de boca. Seguro a respiração ofegante do café tomado, tento me conter, não quebrar os cristais do descanso, só que é ela me perceber partindo, com o perfume da loção na barba feita, que logo fica espalhafatosa: já me abraça forte e troca juras. Depois se amansa e vira ao seu lado, com o prazer do romance renovado.
Ela diz que a minha aparição não a atrapalha, ela até gosta. Confessa que dorme melhor sabendo que a amo. Espia a minha roupa, faz um check-in em meu terno e gravata, e fecha os olhos docemente. Eu sou uma espécie de despertador de celular, um alarme do amor. Ela já se habitou a ativar o tempo da soneca a parir da minha entrada para o tchau.
Ela acredita que a despedida diária mantém o casal unido. Quem não avisa que está saindo se desapega e pode não voltar. O hábito constrói o respeito e mantém acesa a paixão.
É a grande diferença entre o casamento e colegas dividindo a casa: a intimidade declarada. Quando avisamos da partida com os olhos dos lábios não deixaremos de nos procurar e nos enxergar durante a distância dos empregos.
Nossos bilhetinhos são feitos de pele, com a tinta da saliva. São dois anos invictos, com as datas presas ao calendário do ritual.
Não cumprir o nosso combinado me deixaria mal durante o resto da jornada. Não quero nem pensar viver diferente. Eu sussurro histórias de nosso romance em seus ouvidos, de manhã cedo, para ela adormecer e sonhar comigo.
Publicado em Donna ZH em 17/12/2017
SUBIR A MÃO É O VERDADEIRO TALENTO NA SEDUÇÃO
Os homens têm pressa pelo sexo. E a ansiedade só destrói a intimidade.
Sofrem com a mania de descer a mão assim que começa o envolvimento. E costumam tomar a iniciativa em festas e baladas.
Não sei da onde que julgam que a bolinação em público é agradável. É apenas constrangedor, não desenvolve a libido, não arrebata nenhuma mulher. Ainda demonstra uma falta de cuidado com a privacidade e com aquilo que os outros podem pensar.
Homem às vezes trata a mulher como homem logo querendo tudo de uma vez, chamando para o atrito (com semelhanças histéricas de uma briga), não importando a hora e o lugar.
Colocou na cabeça que precisa de uma atitude depois do beijo, que não pode ficar somente no beijo. Ou que o beijo é um semáforo verde para o resto do corpo. Engana-se, o beijo não é uma pulseira VIP para o camarote. O beijo já é tudo, já é explosivo suficiente para garantir a excitação. É no beijo que encontramos quem é capaz de voar no trapézio da nossa língua.
Como o homem jura que a pegação deve ser selvagem, ele se esparrama como um polvo em toques sem perícia alguma. Seria cômico se não fosse invasivo. E ele acha que a mulher segura a mão dele como provocação, ela segura a mão dele para que ele realmente pare, não está sendo divertido mesmo.
Pegada não é sair metendo os dedos. Mas exercitar o mistério do olhar e do elogio. Um beijo no pescoço arrepia mais do que alisar a calcinha, uma dicção séria cochichada no ouvido desperta mais estremecimento do que apertar o peito, uma carícia no rosto gera mais calor do que esfregar a bunda.
Segurar a cintura com firmeza, por exemplo, costuma obter grande sucesso na conquista, e revela uma destreza maior que qualquer afobação.
Isso não é um pedido conservador por recato e romantismo, é química. A sensualidade depende exatamente da mistura dos elementos, da hesitação e da insinuação, jamais da explosão direta do laboratório.
As palavras são as preliminares. Homem que não tem capacidade para falar nunca tocará o coração de uma mulher.
Publicado em UOL em 15/12/2017
Sofrem com a mania de descer a mão assim que começa o envolvimento. E costumam tomar a iniciativa em festas e baladas.
Não sei da onde que julgam que a bolinação em público é agradável. É apenas constrangedor, não desenvolve a libido, não arrebata nenhuma mulher. Ainda demonstra uma falta de cuidado com a privacidade e com aquilo que os outros podem pensar.
Homem às vezes trata a mulher como homem logo querendo tudo de uma vez, chamando para o atrito (com semelhanças histéricas de uma briga), não importando a hora e o lugar.
Colocou na cabeça que precisa de uma atitude depois do beijo, que não pode ficar somente no beijo. Ou que o beijo é um semáforo verde para o resto do corpo. Engana-se, o beijo não é uma pulseira VIP para o camarote. O beijo já é tudo, já é explosivo suficiente para garantir a excitação. É no beijo que encontramos quem é capaz de voar no trapézio da nossa língua.
Como o homem jura que a pegação deve ser selvagem, ele se esparrama como um polvo em toques sem perícia alguma. Seria cômico se não fosse invasivo. E ele acha que a mulher segura a mão dele como provocação, ela segura a mão dele para que ele realmente pare, não está sendo divertido mesmo.
Pegada não é sair metendo os dedos. Mas exercitar o mistério do olhar e do elogio. Um beijo no pescoço arrepia mais do que alisar a calcinha, uma dicção séria cochichada no ouvido desperta mais estremecimento do que apertar o peito, uma carícia no rosto gera mais calor do que esfregar a bunda.
Segurar a cintura com firmeza, por exemplo, costuma obter grande sucesso na conquista, e revela uma destreza maior que qualquer afobação.
Isso não é um pedido conservador por recato e romantismo, é química. A sensualidade depende exatamente da mistura dos elementos, da hesitação e da insinuação, jamais da explosão direta do laboratório.
As palavras são as preliminares. Homem que não tem capacidade para falar nunca tocará o coração de uma mulher.
Publicado em UOL em 15/12/2017
A VIDA NÃO MAIS NOS PERTENCE
Os encontros deveriam ser marcados na última hora. Pena que não funcionam.
Agendamos compromissos quando estamos dispostos de manhã e não nos damos conta da exaustão do final do dia. Planejamos um cinema, um show, uma balada com amigos no momento de tranquilidade, e não percebemos que ainda teremos que atravessar um percurso inteiro de preocupações. Não há como ter conhecimento prévio do estresse que nos espera. Programamos o lazer noturno como se desfrutássemos do mesmo fôlego do despertar. Persiste o desejo de se divertir, porém o corpo não responde aos comandos da euforia.
Sempre ocorre um desgaste mental, um jogo de nervos, um dilema moral: será que vou ou não vou?
O contentamento vai desaparecendo lentamente, devido às atribulações da rotina.
No anoitecer, aquilo que foi anotado na agenda com ânimo e entusiasmo logo cedo já não parece tão agradável. Pelo contrário, a vontade é de cancelar sumariamente e achar as desculpas mais loucas para deitar na cama, colocar roupas confortáveis e procrastinar na frente da televisão.
Somos um ao combinar saídas e outro completamente diferente na véspera de sair. Não é desamor pelas amizades, não é velhice ou depressão, é simplesmente cansaço inesperado. Não possuímos controle do que virá pela frente, dos improvisos e desmandos profissionais. Somos sugados pela carga cada vez maior do emprego, pois não descansamos nem um minuto dos apelos das obrigações, dos e-mails, do WhatsApp e das ligações. Não há trégua e respiro. Morreu o lanche da tarde que animava o serviço e renovava o gás - o recreio e a sirene ficaram enterrados na vida escolar. É uma atenção em tempo integral que não vigorava antes da web. A jornada de 8 horas é folclore - não conheço quem não se dedique mais de 12 horas para a sobrevivência. A CLT está longe da realidade, prevê o que recebemos no salário, nunca o que efetivamente trabalhamos.
Quando um amigo desmarca um encontro, não condeno. Perdoo os furões. Sei que ele também é vítima da insalubridade digital.
Publicado em O Globo em 14/12/2017
Agendamos compromissos quando estamos dispostos de manhã e não nos damos conta da exaustão do final do dia. Planejamos um cinema, um show, uma balada com amigos no momento de tranquilidade, e não percebemos que ainda teremos que atravessar um percurso inteiro de preocupações. Não há como ter conhecimento prévio do estresse que nos espera. Programamos o lazer noturno como se desfrutássemos do mesmo fôlego do despertar. Persiste o desejo de se divertir, porém o corpo não responde aos comandos da euforia.
Sempre ocorre um desgaste mental, um jogo de nervos, um dilema moral: será que vou ou não vou?
O contentamento vai desaparecendo lentamente, devido às atribulações da rotina.
No anoitecer, aquilo que foi anotado na agenda com ânimo e entusiasmo logo cedo já não parece tão agradável. Pelo contrário, a vontade é de cancelar sumariamente e achar as desculpas mais loucas para deitar na cama, colocar roupas confortáveis e procrastinar na frente da televisão.
Somos um ao combinar saídas e outro completamente diferente na véspera de sair. Não é desamor pelas amizades, não é velhice ou depressão, é simplesmente cansaço inesperado. Não possuímos controle do que virá pela frente, dos improvisos e desmandos profissionais. Somos sugados pela carga cada vez maior do emprego, pois não descansamos nem um minuto dos apelos das obrigações, dos e-mails, do WhatsApp e das ligações. Não há trégua e respiro. Morreu o lanche da tarde que animava o serviço e renovava o gás - o recreio e a sirene ficaram enterrados na vida escolar. É uma atenção em tempo integral que não vigorava antes da web. A jornada de 8 horas é folclore - não conheço quem não se dedique mais de 12 horas para a sobrevivência. A CLT está longe da realidade, prevê o que recebemos no salário, nunca o que efetivamente trabalhamos.
Quando um amigo desmarca um encontro, não condeno. Perdoo os furões. Sei que ele também é vítima da insalubridade digital.
Publicado em O Globo em 14/12/2017
PERIGOSA SUPERPROTEÇÃO
Talvez um dos grandes dilemas da vida seja deixar o outro fazer. Aguentar o outro empreender algo que você domina bem, sem interferir, é uma proeza.
Você vive reclamando de que realiza tudo sozinho em casa. Já cogitou a ideia de que você é que não cede espaço?
Você lava a louça todo dia porque não permite que ninguém se habilite. Você prepara a refeição todo dia porque não permite que ninguém tente. Você arruma a casa todo dia porque não permite que ninguém execute devagar e diferente.
Como você ama os filhos, às vezes quer ajudar e termina cumprindo as tarefas no lugar deles.
Não adotar a superproteção é difícil. A síndrome samaritana que aflige os pais surge quando as crianças começam a caminhar, a falar e comer sozinhas. Na verdade, você está apavorado com a hipótese de não ser mais necessário e carrega o bebê no colo quando ele pode caminhar, põe comida na boca quando ele já pode segurar a colher, responde por mímica quando ele já pode pronunciar as palavras.
Quando pensa por dois, pelos dois, não colabora para a independência de quem gosta.
Ajuda, por motivos nobres mas tortos, a formar pessoas vulneráveis, fragilizadas, despreparadas para a rotina. E o filho que julga que criou bem de repente não entende como é riscar um fósforo.
Existe uma hora virtuosa da incompetência, de suportar a bagunça, ficar de lado e aceitar que as pessoas aprendam na marra, dentro da sua solidão. Um momento de se ausentar para que os demais possam aparecer e se desenvolver. Mesmo que isso signifique que elas se deem mal. Mesmo que isso custe sofrimento e frustração.
O caso engloba, inclusive, os tratos entre marido e mulher. Há casais em que somente um trabalha, um dirige, um paga as contas, um organiza o futuro. E não vigora equilíbrio pela exclusividade de funções por um lado apenas do relacionamento.
É preciso combater a falta de amor e também o excesso de amor. Pois o amor escraviza. E o escravo é, estranhamente, aquele que não faz nada. Ou melhor, não pode fazer nada.
Publicado em Jornal Zero Hora em 12/12/2017
Você vive reclamando de que realiza tudo sozinho em casa. Já cogitou a ideia de que você é que não cede espaço?
Você lava a louça todo dia porque não permite que ninguém se habilite. Você prepara a refeição todo dia porque não permite que ninguém tente. Você arruma a casa todo dia porque não permite que ninguém execute devagar e diferente.
Como você ama os filhos, às vezes quer ajudar e termina cumprindo as tarefas no lugar deles.
Não adotar a superproteção é difícil. A síndrome samaritana que aflige os pais surge quando as crianças começam a caminhar, a falar e comer sozinhas. Na verdade, você está apavorado com a hipótese de não ser mais necessário e carrega o bebê no colo quando ele pode caminhar, põe comida na boca quando ele já pode segurar a colher, responde por mímica quando ele já pode pronunciar as palavras.
Quando pensa por dois, pelos dois, não colabora para a independência de quem gosta.
Ajuda, por motivos nobres mas tortos, a formar pessoas vulneráveis, fragilizadas, despreparadas para a rotina. E o filho que julga que criou bem de repente não entende como é riscar um fósforo.
Existe uma hora virtuosa da incompetência, de suportar a bagunça, ficar de lado e aceitar que as pessoas aprendam na marra, dentro da sua solidão. Um momento de se ausentar para que os demais possam aparecer e se desenvolver. Mesmo que isso signifique que elas se deem mal. Mesmo que isso custe sofrimento e frustração.
O caso engloba, inclusive, os tratos entre marido e mulher. Há casais em que somente um trabalha, um dirige, um paga as contas, um organiza o futuro. E não vigora equilíbrio pela exclusividade de funções por um lado apenas do relacionamento.
É preciso combater a falta de amor e também o excesso de amor. Pois o amor escraviza. E o escravo é, estranhamente, aquele que não faz nada. Ou melhor, não pode fazer nada.
Publicado em Jornal Zero Hora em 12/12/2017
CARTAS MUSICADAS
Quando adolescente, eu sempre andava com uma caneta Bic no bolso da camisa. Não era para escrever, mas para desenrolar a fita-cassete de 10 cm por 7 cm. O rolo às vezes escapava das duas bobinas e precisava rebobinar.
Não havia CDs, streaming, aplicativos, nem celular, o único jeito de montar trilhas sonoras consistia em gravar a programação direto das rádios.
Custava muito esforço. Significava noites em claro para localizar as músicas favoritas. Não existia a possibilidade de cochilo e distração. Fazia-se plantão na frente do som 2 em 1. Com xícaras obsessivas de café, a tarefa exigia concentração absoluta. A habilidade estava em apertar e soltar rapidamente os botões REC e PLAY, eliminar os comerciais e organizar uma coletânea parecida com a continuidade de um LP.
A voz do locutor complicava o trabalho. Aparecia do nada para identificar a estação. Já no finalzinho da canção, despontava o reclame, como relâmpago impossível de conter. A propaganda inesperada no meio do refrão arruinava o trabalho.
Obrigava-me a treinar a telepatia. Adivinhar quando iria surgir o apresentador, para suspender por alguns segundos a gravação e retomar o fio da meada em seguida. Emendava lacunas, sem nenhuma ilha de edição, no dedo mesmo, num artesanato puro, suando frio. Tinha que ocupar trinta minutos do primeiro lado e mais trinta do segundo. O espaço comportava uma seleta de duas dezenas, sendo que cada uma das composições passava pelo corte e costura das teclas.
Na época, não nos declarávamos com flores e cartão, caixa de bombons e ursinho de pelúcia. Preparávamos fita-cassete para quem amávamos. Ninguém queria sofrer o vexame de receber um fora pessoalmente das meninas, ainda mais diante dos colegas e da turma. Assim, o recurso romântico utilizado era montar uma trilha para expressar a atração. As baladas traduziam os nossas emoções mais secretas. As letras demonstravam o que não conseguíamos falar cara a cara. Você conquistava alguém com cartas musicadas. Vinha a ser o jeito daquele tempo para vencer a timidez e declarar o amor.
Ninguém ousava dizer eu te amo, o que se dizia:
- Fiz uma fita para você.
E se esperava, com ansiedade, o telefonema na semana seguinte, a voz do outro lado que valia as nossas 20 canções prediletas.
Publicado em Donna ZH em 10/12/2017
Não havia CDs, streaming, aplicativos, nem celular, o único jeito de montar trilhas sonoras consistia em gravar a programação direto das rádios.
Custava muito esforço. Significava noites em claro para localizar as músicas favoritas. Não existia a possibilidade de cochilo e distração. Fazia-se plantão na frente do som 2 em 1. Com xícaras obsessivas de café, a tarefa exigia concentração absoluta. A habilidade estava em apertar e soltar rapidamente os botões REC e PLAY, eliminar os comerciais e organizar uma coletânea parecida com a continuidade de um LP.
A voz do locutor complicava o trabalho. Aparecia do nada para identificar a estação. Já no finalzinho da canção, despontava o reclame, como relâmpago impossível de conter. A propaganda inesperada no meio do refrão arruinava o trabalho.
Obrigava-me a treinar a telepatia. Adivinhar quando iria surgir o apresentador, para suspender por alguns segundos a gravação e retomar o fio da meada em seguida. Emendava lacunas, sem nenhuma ilha de edição, no dedo mesmo, num artesanato puro, suando frio. Tinha que ocupar trinta minutos do primeiro lado e mais trinta do segundo. O espaço comportava uma seleta de duas dezenas, sendo que cada uma das composições passava pelo corte e costura das teclas.
Na época, não nos declarávamos com flores e cartão, caixa de bombons e ursinho de pelúcia. Preparávamos fita-cassete para quem amávamos. Ninguém queria sofrer o vexame de receber um fora pessoalmente das meninas, ainda mais diante dos colegas e da turma. Assim, o recurso romântico utilizado era montar uma trilha para expressar a atração. As baladas traduziam os nossas emoções mais secretas. As letras demonstravam o que não conseguíamos falar cara a cara. Você conquistava alguém com cartas musicadas. Vinha a ser o jeito daquele tempo para vencer a timidez e declarar o amor.
Ninguém ousava dizer eu te amo, o que se dizia:
- Fiz uma fita para você.
E se esperava, com ansiedade, o telefonema na semana seguinte, a voz do outro lado que valia as nossas 20 canções prediletas.
Publicado em Donna ZH em 10/12/2017
NÃO EXAGERE NA MENTIRA DE SEU PERFIL NA WEB
Até o fingimento tem ética. Até o fingimento tem limite.
Se você quer falsear em conversa online sobre as suas características não extrapole o bom senso. Tenha a decência de não propor uma cirurgia plástica nas palavras. Minta proporcionalmente, não a ponto de transfigurar o seu perfil.
Entendo que deseja agradar, respeito a sua insegurança diante da ditadura do padrão estético, nem todos estão prontos para dizer a verdade de cara limpa, às vezes a carência fala o que não deve, mas não exagere. Não apresente traços impossíveis e contrastantes. Não nasça de novo para agradar pretendentes. A paixão permite dez por cento de invenção.
Se no chat ou nos aplicativos de namoro recorrer a uma superdose de distorção, dificultará o café presencial e o envolvimento real. Ficará constrangedor aparecer com a cor de cabelo e dos olhos mudados. Ou com uma profissão nova. Ou ainda falido, depois de ostentar viagens e uma mansão imaginária. Ou casado e com uma penca de filhos, quando pregava a completa solteirice.
Lembre que existe a opção de pesquisa online e de confirmação dos dados antes do encontro. As suas fotos e antecedentes dependem de uma razoabilidade para a comparação. Causa mal-estar e medo de possível psicopatia quando um crush destoa grosseiramente de sua descrição inicial.
Há uma licença poética, o que não significa permissividade. É admissível a margem de erro de Ibope na sedução de cinco percentuais para cima ou para baixo. Pode mentir cinco quilos a menos, cinco anos a menos, cinco centímetros a mais, não passe disso. Não se mostre com 60 anos e depois surja envelhecido milagrosamente, em duas semanas, com 80. Não dará certo. Será patético, será revoltante. Acabará descartado não devido a um preconceito com a idade, porém pelo preconceito com a mentira.
Oscilações são perdoáveis, desde que pequenas. O que incomoda é se passar por outro. Já mostra que não se aceita e não se ama. Sem amor próprio, é impossível amar alguém. A confiança é a maior beleza que existe.
Publicado em UOL em 08/12/2017
Se você quer falsear em conversa online sobre as suas características não extrapole o bom senso. Tenha a decência de não propor uma cirurgia plástica nas palavras. Minta proporcionalmente, não a ponto de transfigurar o seu perfil.
Entendo que deseja agradar, respeito a sua insegurança diante da ditadura do padrão estético, nem todos estão prontos para dizer a verdade de cara limpa, às vezes a carência fala o que não deve, mas não exagere. Não apresente traços impossíveis e contrastantes. Não nasça de novo para agradar pretendentes. A paixão permite dez por cento de invenção.
Se no chat ou nos aplicativos de namoro recorrer a uma superdose de distorção, dificultará o café presencial e o envolvimento real. Ficará constrangedor aparecer com a cor de cabelo e dos olhos mudados. Ou com uma profissão nova. Ou ainda falido, depois de ostentar viagens e uma mansão imaginária. Ou casado e com uma penca de filhos, quando pregava a completa solteirice.
Lembre que existe a opção de pesquisa online e de confirmação dos dados antes do encontro. As suas fotos e antecedentes dependem de uma razoabilidade para a comparação. Causa mal-estar e medo de possível psicopatia quando um crush destoa grosseiramente de sua descrição inicial.
Há uma licença poética, o que não significa permissividade. É admissível a margem de erro de Ibope na sedução de cinco percentuais para cima ou para baixo. Pode mentir cinco quilos a menos, cinco anos a menos, cinco centímetros a mais, não passe disso. Não se mostre com 60 anos e depois surja envelhecido milagrosamente, em duas semanas, com 80. Não dará certo. Será patético, será revoltante. Acabará descartado não devido a um preconceito com a idade, porém pelo preconceito com a mentira.
Oscilações são perdoáveis, desde que pequenas. O que incomoda é se passar por outro. Já mostra que não se aceita e não se ama. Sem amor próprio, é impossível amar alguém. A confiança é a maior beleza que existe.
Publicado em UOL em 08/12/2017
UM CHICLETE NO SAPATO
A esposa descobriu que o marido era infiel pelo chiclete. Nem quis discutir. Quando viu o marido mascando sem parar por mais de uma semana, flagrou a traição. Não precisou de prova, de foto, de vídeo, de batom e blush na roupa, de mordida, de arranhão, de celular estranhamente desligado. Ela sumariamente dispensou o homem, sem direito a liminar. Como nos julgamentos sumários de guerra, que se parte direto para execução.
Ela conhecia muito bem o seu cônjuge (ideal é chamar de cônjuge que fica mais fácil se separar). Chegou próxima dele, anunciou e virou as costas:
- Você voltou a mascar chiclete. Desejo o divórcio. Pode arrumar as suas coisas.
Não era uma promessa que ele havia quebrado de nunca mais pôr uma goma na boca. É que o chiclete estava ligado ao período da paixão do casal. Quando começaram o relacionamento, ele inventou de confessar:
- Só tenho vontade de chiclete quando fico apaixonado.
Ela guardou a informação irrelevante por cinco anos. Manteve o áudio vivo na memória, para uso indefinido. Pois mulher não esquece nada nunca, cuidado com o que fala no início do namoro.
Ele revelou, na época, que usava o chiclete como isca dos beijos, para perfumar a boca e insuflar a atração. Jamais cogitou que estava dando um testemunho contra si a ser empregado no futuro.
Logo a esposa concluiu que ele se enrabichou por outra e se aventurava em motéis nas horas vagas. O chiclete não poderia ser uma homenagem ao matrimônio, já que ultimamente a relação se caracterizava pela distância e formalidade na cama.
O homem não muda as suas estratégias de sedução. Não se atualiza. Não faz reciclagem. Sempre será pego pela imensa previsibilidade de suas velhas armas.
Publicado em O Globo em 07/12/2017
Ela conhecia muito bem o seu cônjuge (ideal é chamar de cônjuge que fica mais fácil se separar). Chegou próxima dele, anunciou e virou as costas:
- Você voltou a mascar chiclete. Desejo o divórcio. Pode arrumar as suas coisas.
Não era uma promessa que ele havia quebrado de nunca mais pôr uma goma na boca. É que o chiclete estava ligado ao período da paixão do casal. Quando começaram o relacionamento, ele inventou de confessar:
- Só tenho vontade de chiclete quando fico apaixonado.
Ela guardou a informação irrelevante por cinco anos. Manteve o áudio vivo na memória, para uso indefinido. Pois mulher não esquece nada nunca, cuidado com o que fala no início do namoro.
Ele revelou, na época, que usava o chiclete como isca dos beijos, para perfumar a boca e insuflar a atração. Jamais cogitou que estava dando um testemunho contra si a ser empregado no futuro.
Logo a esposa concluiu que ele se enrabichou por outra e se aventurava em motéis nas horas vagas. O chiclete não poderia ser uma homenagem ao matrimônio, já que ultimamente a relação se caracterizava pela distância e formalidade na cama.
O homem não muda as suas estratégias de sedução. Não se atualiza. Não faz reciclagem. Sempre será pego pela imensa previsibilidade de suas velhas armas.
Publicado em O Globo em 07/12/2017
A MOEDA DAS FRALDAS
Os amigos Daniel e Gabriella recém tiveram uma filha: Joana.
Eles não estão mais no nosso mundo contábil e financeiro. Falam um idioma novo, de exclamações e onomatopeias.
Convivem entre nós, mas não acreditem na materialidade de seus corpos. As suas cabeças habitam um outro país, de formato de sapatinhos de crochê, com a bandeira do cueiro e a moeda da fralda. Não lidam mais com o real no dia a dia, os seus cálculos se resumem a fraldas.
As fraldas são os seus dólares e euros. As fraldas são os seus bitcoins. As fraldas são o seu fundo de investimentos. As fraldas são o seu IGP-DI (índice de inflação).
Como todos os cuidadores de bebê, precisam estocar fraldas. Só pensam nisso. São 12 por dia, média de 370 por mês. Limparam um armário para colocar as novas barras de ouro da residência.
Fralda virou uma obsessão, uma luta pela sobrevivência. É como insulina para diabético, não dá para contar com a sorte. Tornou-se uma urgência inadiável, dependente de rápida reposição.
Fundamenta o início e o término de qualquer telefonema. Antes se despediam com "tchau, eu te amo", agora é "tchau, não esquece de ver fraldas".
Não voltam mais do trabalho com a sacola de pães quentinhos, mas com fraldas. Festejam quando encontram uma promoção. Abrem um vinho quando acham um pacote de 46 por menos de R$ 1 cada fralda. Qualquer saída requer uma espiada nos preços das farmácias e dos supermercados.
Mesmo sem necessidade iminente, perdem o tempo de seus compromissos e verificam os valores nas prateleiras – vá que tenha uma barbada.
Calculam os seus salários por fraldas, convertem saídas para jantar e cinema em fraldas, fixaram uma tabela mental que reverte feijão, arroz, carne, ovos em fraldas. A cesta básica é comparada com fraldas. As únicas cotações que lhes interessam na bolsa de valores são a da Pampers e a da Huggies.
Serão dois anos e pouco com um raciocínio estranho, com uma matemática mágica, com divagações incessantes de estatísticos do amor.
Trocar o filho é realmente trocar de vida.
Publicado em Jornal Zero Hora em 05/12/2017
Eles não estão mais no nosso mundo contábil e financeiro. Falam um idioma novo, de exclamações e onomatopeias.
Convivem entre nós, mas não acreditem na materialidade de seus corpos. As suas cabeças habitam um outro país, de formato de sapatinhos de crochê, com a bandeira do cueiro e a moeda da fralda. Não lidam mais com o real no dia a dia, os seus cálculos se resumem a fraldas.
As fraldas são os seus dólares e euros. As fraldas são os seus bitcoins. As fraldas são o seu fundo de investimentos. As fraldas são o seu IGP-DI (índice de inflação).
Como todos os cuidadores de bebê, precisam estocar fraldas. Só pensam nisso. São 12 por dia, média de 370 por mês. Limparam um armário para colocar as novas barras de ouro da residência.
Fralda virou uma obsessão, uma luta pela sobrevivência. É como insulina para diabético, não dá para contar com a sorte. Tornou-se uma urgência inadiável, dependente de rápida reposição.
Fundamenta o início e o término de qualquer telefonema. Antes se despediam com "tchau, eu te amo", agora é "tchau, não esquece de ver fraldas".
Não voltam mais do trabalho com a sacola de pães quentinhos, mas com fraldas. Festejam quando encontram uma promoção. Abrem um vinho quando acham um pacote de 46 por menos de R$ 1 cada fralda. Qualquer saída requer uma espiada nos preços das farmácias e dos supermercados.
Mesmo sem necessidade iminente, perdem o tempo de seus compromissos e verificam os valores nas prateleiras – vá que tenha uma barbada.
Calculam os seus salários por fraldas, convertem saídas para jantar e cinema em fraldas, fixaram uma tabela mental que reverte feijão, arroz, carne, ovos em fraldas. A cesta básica é comparada com fraldas. As únicas cotações que lhes interessam na bolsa de valores são a da Pampers e a da Huggies.
Serão dois anos e pouco com um raciocínio estranho, com uma matemática mágica, com divagações incessantes de estatísticos do amor.
Trocar o filho é realmente trocar de vida.
Publicado em Jornal Zero Hora em 05/12/2017
BLACK FRIDAY DA ETERNIDADE
Todos recebem um bônus. A vida dá uma segunda chance, um período extra, uma dilatação de prazo, um visto a mais. Ela não nos entrega para o fim sem um anúncio, sem nos colocar em uma ante-sala aqui mesmo.
A dificuldade é aproveitar a black friday da eternidade. O que atrapalha é a soberba.
Há pessoas que ficam humildes depois de um acidente e refazem os seus hábitos. Percebem que estavam no caminho errado, contrárias à ternura e recuam prodigiosamente para recuperar os laços com a família e amigos. Mudam o jeito de encarar os limites. Tornam-se mais abertas e confessionais, começam a se despedir dia-a-dia pelo medo de não definir mais qual será o dia derradeiro. Criam férias nas folgas, esticam os lazeres nos finais de semana. Possuídos pela delicadeza, falam o eu te amo com a naturalidade de um cumprimento, abraçam e beijam com uma intensidade incomum. A quase morte passa a ser um trailer da existência. Compreendem o significado do puxão de orelhas do vento e dos anjos e escutam com afinco o som de um pássaro e da chuva. São empresários que largam o acúmulo dos bens pelo bem partilhado, são sujeitos roçados pela suavidade do perdão. Antes ricos de números e vazios de palavras, invertem o julgamento e se predispõem a praticar a fragilidade com coragem. Pois é só cuidando dos outros que revelamos o cuidado consigo.
Mas a maior parte dos sobreviventes não vê a luz em extinção, não coloca as mãos em concha para proteger a chama da vela. Despreza os avisos e as profecias. Pelo contrário, como superou uma tragédia iminente, acha-se agora invencível. Acredita que nada pode mais levá-lo embora. Internaliza uma onipotência que agrava os defeitos e os vícios. Dedica-se ainda mais à carreira e à fortuna e abandona de vez os semelhantes, já que eles são inferiores e não desfrutaram da mesma experiência de ressurreição.
Não percebe a promoção, a liquidação dos ideais, o céu se abrindo. Não acorda as horas mortas, não renasce diferente dos escombros, não compra a sua vida de volta, aquela vida que se consumia na indiferença e no egoísmo. Descarta Deus e os homens, como se respirar fosse um dom vitalício.
O susto da morte pode gerar arrependimento ou arrogância, agradecimento ou acusação. Nem sempre é entendido como milagre.
Quem acha que nunca vai morrer não encontra tempo para amar.
Publicado em Donna ZH em 03/12/2017
A dificuldade é aproveitar a black friday da eternidade. O que atrapalha é a soberba.
Há pessoas que ficam humildes depois de um acidente e refazem os seus hábitos. Percebem que estavam no caminho errado, contrárias à ternura e recuam prodigiosamente para recuperar os laços com a família e amigos. Mudam o jeito de encarar os limites. Tornam-se mais abertas e confessionais, começam a se despedir dia-a-dia pelo medo de não definir mais qual será o dia derradeiro. Criam férias nas folgas, esticam os lazeres nos finais de semana. Possuídos pela delicadeza, falam o eu te amo com a naturalidade de um cumprimento, abraçam e beijam com uma intensidade incomum. A quase morte passa a ser um trailer da existência. Compreendem o significado do puxão de orelhas do vento e dos anjos e escutam com afinco o som de um pássaro e da chuva. São empresários que largam o acúmulo dos bens pelo bem partilhado, são sujeitos roçados pela suavidade do perdão. Antes ricos de números e vazios de palavras, invertem o julgamento e se predispõem a praticar a fragilidade com coragem. Pois é só cuidando dos outros que revelamos o cuidado consigo.
Mas a maior parte dos sobreviventes não vê a luz em extinção, não coloca as mãos em concha para proteger a chama da vela. Despreza os avisos e as profecias. Pelo contrário, como superou uma tragédia iminente, acha-se agora invencível. Acredita que nada pode mais levá-lo embora. Internaliza uma onipotência que agrava os defeitos e os vícios. Dedica-se ainda mais à carreira e à fortuna e abandona de vez os semelhantes, já que eles são inferiores e não desfrutaram da mesma experiência de ressurreição.
Não percebe a promoção, a liquidação dos ideais, o céu se abrindo. Não acorda as horas mortas, não renasce diferente dos escombros, não compra a sua vida de volta, aquela vida que se consumia na indiferença e no egoísmo. Descarta Deus e os homens, como se respirar fosse um dom vitalício.
O susto da morte pode gerar arrependimento ou arrogância, agradecimento ou acusação. Nem sempre é entendido como milagre.
Quem acha que nunca vai morrer não encontra tempo para amar.
Publicado em Donna ZH em 03/12/2017
iFOOD SEXUAL
As pessoas não se conhecem mais presencialmente. Estão medrosas na sedução. Os aplicativos e as redes sociais vem matando a coragem. O que noto é uma fobia da intimidade. É sexo sem intimidade, é sexo sem o mais bonito da relação: a amizade do corpo e das palavras.
São cenas patéticas: o homem descobre o nome da mulher interessada e some do bar, evapora da balada, não entabula nenhuma curiosidade, não realiza nenhum pergunta, não desenvolve nenhuma aproximação, não explora o seu raciocínio, prefere chamar no inbox do Facebook para conversar em segredo aquilo que deveria fazer presencialmente. Isso quando não caça a pessoa no Tinder ou no Happn para cortejar mais diretamente. Ele se tornou preguiçoso, crianção, infantil, confinado na bolha tecnológica da facilidade. Tem medo frente a frente, de encarar respostas imprevisíveis e improvisar. Ele não sabe mais agir no calor dos acontecimentos. Não deseja se machucar e enfrentar a vida. Não se mexe para articular a fala e criar afinidades. Treme com a possibilidade de ser sabatinado por uma turma estranha e interagir em grupo para estreitar os laços e ganhar o espaço ao lado de uma atração. Seu projeto é conquistar alguém sem sair do quarto.
A timidez coletiva é pavor do sofrimento real, das cicatrizes e dissabores. O enamoramento virou um game, com bonecos de emojis e joystick na mão.
Assim como ele tampouco quer perder tempo com gentilezas e agrados. Ambiciona o iFood carnal, a tele-entrega virtual imediata, o sexo rápido desprovido de envolvimento, inteligência e memória. A operação canhestra se desenvolve em duas frases: gostei de você e vamos nos encontrar. O contato depende apenas de duas frases tecladas absolutamente genéricas para se chegar à cama.
Ou seja, foge-se do encontro inicial para agendar pela web, de modo lacônico, um encontro de verdade. Mas o encontro somente pode acontecer quando tudo estiver resolvido e nada mais precisa ser dito.
O flerte digital também disfarça o assédio e as grosseiras que seriam mais visíveis cara a cara. É um silenciador de ofensas e ameaças, já que tem a impunidade do jogo rápido do celular e do bloqueio do número e da conta.
Vivemos um conto de fadas de avatares. Nem o amor nem a dor são reais, dando lugar a felicidade e tesão artificiais.
Publicado em UOL em 01/12/2017
São cenas patéticas: o homem descobre o nome da mulher interessada e some do bar, evapora da balada, não entabula nenhuma curiosidade, não realiza nenhum pergunta, não desenvolve nenhuma aproximação, não explora o seu raciocínio, prefere chamar no inbox do Facebook para conversar em segredo aquilo que deveria fazer presencialmente. Isso quando não caça a pessoa no Tinder ou no Happn para cortejar mais diretamente. Ele se tornou preguiçoso, crianção, infantil, confinado na bolha tecnológica da facilidade. Tem medo frente a frente, de encarar respostas imprevisíveis e improvisar. Ele não sabe mais agir no calor dos acontecimentos. Não deseja se machucar e enfrentar a vida. Não se mexe para articular a fala e criar afinidades. Treme com a possibilidade de ser sabatinado por uma turma estranha e interagir em grupo para estreitar os laços e ganhar o espaço ao lado de uma atração. Seu projeto é conquistar alguém sem sair do quarto.
A timidez coletiva é pavor do sofrimento real, das cicatrizes e dissabores. O enamoramento virou um game, com bonecos de emojis e joystick na mão.
Assim como ele tampouco quer perder tempo com gentilezas e agrados. Ambiciona o iFood carnal, a tele-entrega virtual imediata, o sexo rápido desprovido de envolvimento, inteligência e memória. A operação canhestra se desenvolve em duas frases: gostei de você e vamos nos encontrar. O contato depende apenas de duas frases tecladas absolutamente genéricas para se chegar à cama.
Ou seja, foge-se do encontro inicial para agendar pela web, de modo lacônico, um encontro de verdade. Mas o encontro somente pode acontecer quando tudo estiver resolvido e nada mais precisa ser dito.
O flerte digital também disfarça o assédio e as grosseiras que seriam mais visíveis cara a cara. É um silenciador de ofensas e ameaças, já que tem a impunidade do jogo rápido do celular e do bloqueio do número e da conta.
Vivemos um conto de fadas de avatares. Nem o amor nem a dor são reais, dando lugar a felicidade e tesão artificiais.
Publicado em UOL em 01/12/2017
FAZER GOSTOSO
A feiúra é uma noção secundária para quem faz gostoso.
O sexo prende. O sexo cativa. O sexo caprichado é a moldura para a janela da alma.
É deixar de enxergar no plano unidimensional dos preconceitos e pôr os óculos 3D da fissura.
Tarados não se prendem às fachadas.
Porque fazer gostoso é confiança, é desenvoltura, é merecimento.
Queima a vaidade das selfies, dispensa a futilidade de manter alguém para exibir aos amigos, descarta a insegurança de namorar para impressionar nas redes sociais.
Fazer gostoso é ser inteiro na cama, devoto ao momento e ao monumento, sincero com o gozo, alucinado de tesão, independente do que os demais pensam.
É quando o prazer manda no amor e liberta a sensualidade das aparências.
Fazer gostoso é encontrar o ritmo do outro, o encaixe perfeito, definir o que realmente excita, descobrir as fantasias prediletas e executar as poses favoritas. As palavras sussurradas são as certas, os desaforos são os exatos, a entrega é a ideal.
Nariz grande desaparece com a ginga. Barriguinha some com o rebolado. Estrias não existem com a volúpia.
Se você não entende como que o amigo namora uma mulher nada bonita, até acima do peso, sem nenhum atributo suntuoso, saiba que ela transa bem, muito bem, fora do normal. Nunca terá condições de competir com a sua sabedoria secreta.
Publicado em O Globo em 30/11/2017
O sexo prende. O sexo cativa. O sexo caprichado é a moldura para a janela da alma.
É deixar de enxergar no plano unidimensional dos preconceitos e pôr os óculos 3D da fissura.
Tarados não se prendem às fachadas.
Porque fazer gostoso é confiança, é desenvoltura, é merecimento.
Queima a vaidade das selfies, dispensa a futilidade de manter alguém para exibir aos amigos, descarta a insegurança de namorar para impressionar nas redes sociais.
Fazer gostoso é ser inteiro na cama, devoto ao momento e ao monumento, sincero com o gozo, alucinado de tesão, independente do que os demais pensam.
É quando o prazer manda no amor e liberta a sensualidade das aparências.
Fazer gostoso é encontrar o ritmo do outro, o encaixe perfeito, definir o que realmente excita, descobrir as fantasias prediletas e executar as poses favoritas. As palavras sussurradas são as certas, os desaforos são os exatos, a entrega é a ideal.
Nariz grande desaparece com a ginga. Barriguinha some com o rebolado. Estrias não existem com a volúpia.
Se você não entende como que o amigo namora uma mulher nada bonita, até acima do peso, sem nenhum atributo suntuoso, saiba que ela transa bem, muito bem, fora do normal. Nunca terá condições de competir com a sua sabedoria secreta.
Publicado em O Globo em 30/11/2017
PRATO PREDILETO
– O que você deseja comer antes da prova?
Assim como os condenados à pena de morte têm direito a escolher sua última refeição, a mãe criou um método pessoal de incentivo na superação de exames.
Em todo concurso, nas vinte e quatro horas anteriores à aplicação da prova, ela se prontificava a atender à minha súbita fantasia gastronômica.
Buscava me animar com um prato predileto e demonstrar que estava me apoiando no estudo. Formava uma manifestação silenciosa que surtia mais efeito do que os interrogatórios e frases de autoajuda.
Poderia responder uma extravagância que ela cumpriria. Poderia exigir comida vietnamita que caçaria os ingredientes no Mercado Público.
Ela surgia como um Aladim de avental. Eu desempenhava a tarefa fácil de esfregar a lâmpada e exigir o cardápio.
De manhãzinha, a mãe sumia para catar os itens. Voltava carregada de sacolas e receitas inesperadas. Arrumava a mesa com toalha de linho, abria uma exceção para o refrigerante e retirava os talheres da caixa de seu enxoval.
Na seletiva para técnico judiciário, optei por quibe frito. Recebi porções generosas com um sádico detalhe: unicamente destinadas para mim. Os irmãos me suportavam comendo e suspirando. Ainda oferecia um pedacinho para debochar. Não aceitavam por orgulho.
No concurso de escriturário do Banco do Brasil, solicitei feijoada. Na seleção de auxiliar administrativo, garanti bobó de camarão.
Desfrutei de almoços de imperador, refeições nababescas, luxos imperiais.
O que nunca contei para mãe é que ela, na ânsia de me ajudar, acabava me atrapalhando. Claro que comia demais, passava mal e jamais alcançava a classificação para a segunda etapa das provas.
Publicado em Vida Breve em 29/11/2017
Assim como os condenados à pena de morte têm direito a escolher sua última refeição, a mãe criou um método pessoal de incentivo na superação de exames.
Em todo concurso, nas vinte e quatro horas anteriores à aplicação da prova, ela se prontificava a atender à minha súbita fantasia gastronômica.
Buscava me animar com um prato predileto e demonstrar que estava me apoiando no estudo. Formava uma manifestação silenciosa que surtia mais efeito do que os interrogatórios e frases de autoajuda.
Poderia responder uma extravagância que ela cumpriria. Poderia exigir comida vietnamita que caçaria os ingredientes no Mercado Público.
Ela surgia como um Aladim de avental. Eu desempenhava a tarefa fácil de esfregar a lâmpada e exigir o cardápio.
De manhãzinha, a mãe sumia para catar os itens. Voltava carregada de sacolas e receitas inesperadas. Arrumava a mesa com toalha de linho, abria uma exceção para o refrigerante e retirava os talheres da caixa de seu enxoval.
Na seletiva para técnico judiciário, optei por quibe frito. Recebi porções generosas com um sádico detalhe: unicamente destinadas para mim. Os irmãos me suportavam comendo e suspirando. Ainda oferecia um pedacinho para debochar. Não aceitavam por orgulho.
No concurso de escriturário do Banco do Brasil, solicitei feijoada. Na seleção de auxiliar administrativo, garanti bobó de camarão.
Desfrutei de almoços de imperador, refeições nababescas, luxos imperiais.
O que nunca contei para mãe é que ela, na ânsia de me ajudar, acabava me atrapalhando. Claro que comia demais, passava mal e jamais alcançava a classificação para a segunda etapa das provas.
Publicado em Vida Breve em 29/11/2017
A IMPORTÂNCIA DA SOBREMESA PARA A FAMÍLIA
Sou da cultura do doce. Almoço e jantar são apenas aperitivos. Eu me interesso por aquilo que vem depois para acompanhar o cafezinho.
A infância me condicionou. A gente comia o básico, feijão com arroz, bife e salada, com variações de acordo com o dia. Às vezes massa, às vezes bolo de carne, às vezes pastelão, dependendo do tamanho da conta e do fiado no armazém.
Não reclamávamos da mesmice do cardápio, desde que não faltasse a cobiçada guloseima.
O escândalo residia na primeira prateleira da geladeira, com pudim ou ambrosia ou sagu ou cassata ou doce de leite ou torta de bolacha ou pavê. A mãe se esmerava nas surpresas (onde arranjava horário para preparar? Não sei, não faço nem ideia, magias inexplicáveis da maternidade).
Morava numa involuntária confeitaria. Ninguém dispensava a sobremesa naquele tempo. Guardava um espaço imaginário no estômago para não desperdiçá-la, não repetia as porções e recuava o apetite antes de me empanturrar.
Podia-se estar atrasado para o trabalho ou para a escola, não permitíamos a pressa apagar os nossos caprichos e o momento solene dos pratinhos pequenos.
Os garfos e facas não conseguiam vencer a importância das colheres.
Não se falava nada durante o almoço familiar. O silêncio imperava naquele instante, cortávamos a carne instintivamente, máquinas de triturar e moer a comida. O que se escutava se resumia aos barulhos dos talheres na porcelana.
Mas todo mundo abria a matraca milagrosamente na sobremesa. Vinham confissões, risadas, bobagens, lembranças. Éramos desconhecidos no sal, íntimos no açúcar. Abraços aconteciam mais fáceis, carinhos nos cabelos surgiam aos borbotões.
Acredito que as famílias hoje deixaram de falar porque extinguimos a sobremesa. Os filhos não mais relatam as suas façanhas nas aulas porque abolimos a sobremesa. Os pais não trocam mais beijos e juras de amor na frente dos outros porque erradicamos a sobremesa da rotina.
A glicose sempre salvou as amizades e os relacionamentos. As palavras nadam quando estamos com água na boca.
Publicado em Jornal Zero Hora em 28/11/2017
A infância me condicionou. A gente comia o básico, feijão com arroz, bife e salada, com variações de acordo com o dia. Às vezes massa, às vezes bolo de carne, às vezes pastelão, dependendo do tamanho da conta e do fiado no armazém.
Não reclamávamos da mesmice do cardápio, desde que não faltasse a cobiçada guloseima.
O escândalo residia na primeira prateleira da geladeira, com pudim ou ambrosia ou sagu ou cassata ou doce de leite ou torta de bolacha ou pavê. A mãe se esmerava nas surpresas (onde arranjava horário para preparar? Não sei, não faço nem ideia, magias inexplicáveis da maternidade).
Morava numa involuntária confeitaria. Ninguém dispensava a sobremesa naquele tempo. Guardava um espaço imaginário no estômago para não desperdiçá-la, não repetia as porções e recuava o apetite antes de me empanturrar.
Podia-se estar atrasado para o trabalho ou para a escola, não permitíamos a pressa apagar os nossos caprichos e o momento solene dos pratinhos pequenos.
Os garfos e facas não conseguiam vencer a importância das colheres.
Não se falava nada durante o almoço familiar. O silêncio imperava naquele instante, cortávamos a carne instintivamente, máquinas de triturar e moer a comida. O que se escutava se resumia aos barulhos dos talheres na porcelana.
Mas todo mundo abria a matraca milagrosamente na sobremesa. Vinham confissões, risadas, bobagens, lembranças. Éramos desconhecidos no sal, íntimos no açúcar. Abraços aconteciam mais fáceis, carinhos nos cabelos surgiam aos borbotões.
Acredito que as famílias hoje deixaram de falar porque extinguimos a sobremesa. Os filhos não mais relatam as suas façanhas nas aulas porque abolimos a sobremesa. Os pais não trocam mais beijos e juras de amor na frente dos outros porque erradicamos a sobremesa da rotina.
A glicose sempre salvou as amizades e os relacionamentos. As palavras nadam quando estamos com água na boca.
Publicado em Jornal Zero Hora em 28/11/2017
CAPITÃO GANCHO
Quando está sozinho, os braços são um problema para o homem. Um estorvo. Ele não decidiu muito bem o que fazer com os gestos. Vacila no controle da marionete de si mesmo. Quer manter uma postura séria, compenetrada e não relaxa o tronco. Costuma escolher duas posições de defesa: braços cruzados e mãos no bolso. Neste momento, metade dos homens do universo estão com a mão no bolso e outra metade de braços cruzados.
O que o macho gostaria é de pegar tudo com os pés. Seu maior desejo é nunca parar de jogar futebol e fazer embaixadinha com os objetos e roupas. Se possível, inventando um gol na cesta da lavanderia ou na gaveta.
Se largo uma cueca no chão, jamais vou me abaixar para buscar, raciocino o custo-benefício da situação, vejo que será mais fácil não me mexer e ergo a roupa com o dedão. Jogo para cima e seguro depois em festa, como se fossem cupons de urna de shopping no Natal.
Não é uma atitude isolada. Tento abrir portas com os pés, mexer na geladeira com os pés, segurar elevador com os pés, recolher xampu com os pés. Os pés são sempre mais rápidos. É também uma forma de me divertir, de manter a infância da molecagem, de realizar malabarismo de circo, de ser engraçado. Até para tirar ou colocar o tênis dispenso as mãos. Vou enfiando os pés e pulando pela casa esperando me encaixar na fôrma.
A praticidade não me seduz, opero por desafios nas atividades prosaicas e domésticas. É um rapel estranho pelas paredes do apartamento. Realizo simpatias e cumpro metas _ falta apenas me fantasiar de Capitão Gancho.
Quem não gosta nem um pouco das minhas brincadeiras é a minha esposa. Vive cortando o meu barato. Acha que sou preguiçoso e não entende nada do meu incurável universo infantil. As mãos são o fracasso do homem, somente usadas em último caso.
Publicado em Donna ZH em 26/11/2017
O que o macho gostaria é de pegar tudo com os pés. Seu maior desejo é nunca parar de jogar futebol e fazer embaixadinha com os objetos e roupas. Se possível, inventando um gol na cesta da lavanderia ou na gaveta.
Se largo uma cueca no chão, jamais vou me abaixar para buscar, raciocino o custo-benefício da situação, vejo que será mais fácil não me mexer e ergo a roupa com o dedão. Jogo para cima e seguro depois em festa, como se fossem cupons de urna de shopping no Natal.
Não é uma atitude isolada. Tento abrir portas com os pés, mexer na geladeira com os pés, segurar elevador com os pés, recolher xampu com os pés. Os pés são sempre mais rápidos. É também uma forma de me divertir, de manter a infância da molecagem, de realizar malabarismo de circo, de ser engraçado. Até para tirar ou colocar o tênis dispenso as mãos. Vou enfiando os pés e pulando pela casa esperando me encaixar na fôrma.
A praticidade não me seduz, opero por desafios nas atividades prosaicas e domésticas. É um rapel estranho pelas paredes do apartamento. Realizo simpatias e cumpro metas _ falta apenas me fantasiar de Capitão Gancho.
Quem não gosta nem um pouco das minhas brincadeiras é a minha esposa. Vive cortando o meu barato. Acha que sou preguiçoso e não entende nada do meu incurável universo infantil. As mãos são o fracasso do homem, somente usadas em último caso.
Publicado em Donna ZH em 26/11/2017
OS TORMENTOS AMOROSOS DAS PESSOAS SENSÍVEIS
Conviver com pessoas sensíveis é uma proeza. Tem o lado ruim. Elas farejam uma briga na véspera do desentendimento. Pescam no ar que as coisas não estão bem. A palavra nem ficou torta e já notam a insinuação da curva na linguagem. Discutem por premonições, na ânsia de resolver crises antecipadamente. Flagram os problemas por imperceptíveis mudanças de hábitos. Não aguardam a eclosão da raiva, a pétala do ódio, colhem as folhas como se fossem flores. São antenas das ações dos mais próximos. Intuem o estranhamento e já puxam o assunto: Você não está legal, né?
O sujeito em questão ainda não tem consciência da esquisitice, sempre acaba informado por sua companhia. É algo que vai acontecer dali a dois dias, mas o sensível notou a diferença com larga antecedência.
Pela sintonia incomum com o outro, os sentimentos correm mais rápido nos olhos. Parece que o sensível está normalmente puxando briga, porque nunca descansa em observar, comparar e questionar. Jamais relaxa, jamais põe o seu instinto a dormir. Adivinha mais do acredita naquilo que escuta.
Arca com o preconceito da profecia. Pois o profeta é culpado socialmente também pelas catástrofes que anunciou. Se ele enxerga uma enchente, mesmo sendo inocente de qualquer envolvimento, torna-se responsável por não ter feito nada para conter as águas.
Na intimidade então, é muito mais grave, o adivinho não conta com a compreensão de ninguém. O sexto sentido não ajuda o relacionamento, somente atrapalha. Prevenir é incomodar e chamar as crises para perto.
O sensível passa a ser taxado de louco e paranoico, porque usa a emoção como fiadora de suas atitudes. Por exemplo, é capaz de captar o interesse de seu namorado ou namorada por alguém com uma antecedência assustadora, somente pelo jeito que menciona o nome em casa. Seu dom é confundido com a natureza de um defeito e de constante ameaça. Assim começa a ser visto apenas como ciumento. E um ciumento sem motivos.
Não há provas, não há infidelidade, não há dados concretos, existe unicamente a percepção quase sobrenatural de uma atração se desenvolvendo para justificar a desconfiança.
Não deseje estar na pele de um sensível. Ele sofre o dobro antes para não sofrer na hora.
Publicado em UOL em 24/11/2017
O sujeito em questão ainda não tem consciência da esquisitice, sempre acaba informado por sua companhia. É algo que vai acontecer dali a dois dias, mas o sensível notou a diferença com larga antecedência.
Pela sintonia incomum com o outro, os sentimentos correm mais rápido nos olhos. Parece que o sensível está normalmente puxando briga, porque nunca descansa em observar, comparar e questionar. Jamais relaxa, jamais põe o seu instinto a dormir. Adivinha mais do acredita naquilo que escuta.
Arca com o preconceito da profecia. Pois o profeta é culpado socialmente também pelas catástrofes que anunciou. Se ele enxerga uma enchente, mesmo sendo inocente de qualquer envolvimento, torna-se responsável por não ter feito nada para conter as águas.
Na intimidade então, é muito mais grave, o adivinho não conta com a compreensão de ninguém. O sexto sentido não ajuda o relacionamento, somente atrapalha. Prevenir é incomodar e chamar as crises para perto.
O sensível passa a ser taxado de louco e paranoico, porque usa a emoção como fiadora de suas atitudes. Por exemplo, é capaz de captar o interesse de seu namorado ou namorada por alguém com uma antecedência assustadora, somente pelo jeito que menciona o nome em casa. Seu dom é confundido com a natureza de um defeito e de constante ameaça. Assim começa a ser visto apenas como ciumento. E um ciumento sem motivos.
Não há provas, não há infidelidade, não há dados concretos, existe unicamente a percepção quase sobrenatural de uma atração se desenvolvendo para justificar a desconfiança.
Não deseje estar na pele de um sensível. Ele sofre o dobro antes para não sofrer na hora.
Publicado em UOL em 24/11/2017
CUPIDO NÃO TEM SEXO
Uma das desculpas prediletas femininas para prevenir o ciúme era a de dizer que o amigo era gay.
Sempre que nada surtia efeito para acalmar a cisma do namorado ou do marido com alguém próximo no trabalho ou nos grupos de convívio, a mulher encontrava um jeito de denunciar a orientação e afastar a chance de envolvimento. O afeto e o carinho passavam a ser justificados como mera espontaneidade de um confidente incomum.
O recurso surgia como um escudo, um álibi, para não configurar traição. Assim ela poderia sair livremente com um outro homem para tomar café e conversar, sem risco do celular tocando a cada quinze minutos. Enganava a paranoia dele, livrava-se da prestação de contas.
- Não tem sentido a desconfiança porque ele é gay.
A sentença abafava qualquer rumor de discussão de relacionamento, desarmava qualquer ameaça de fim e chantagem de malas na porta.
Como se o gay não demonstrasse perigo. Como se o gay fosse uma melhor amiga. Como se o gay fosse uma carta fora do baralho e houvesse uma ditadura heteronormativo em vigor.
Isso perdeu a validade atualmente, onde o amor não segue símbolos de porta de banheiro. Ama-se uma pessoa independente do gênero. A atração não mais obedece tabus e restrições antes de acontecer. A paixão é livre para desejar e experimentar, ainda que seja para contrariar um passado de predileções e as tendências de uma vida.
O ciúme não tem mais nenhuma barreira. É ecumênico e democrático. Os homens estão liberados para temer mulheres e homens, olhar para todos os lados e não afrouxar a dedicação. Não há exceção diante do reinado absoluto do sentimento.
Na verdade, raciocinando historicamente, apartado dos medos e dos preconceitos, não é uma novidade. Desde o princípio, os cupidos avisavam que não tinham sexo.
Publicado em O Globo em 23/11/2017
Sempre que nada surtia efeito para acalmar a cisma do namorado ou do marido com alguém próximo no trabalho ou nos grupos de convívio, a mulher encontrava um jeito de denunciar a orientação e afastar a chance de envolvimento. O afeto e o carinho passavam a ser justificados como mera espontaneidade de um confidente incomum.
O recurso surgia como um escudo, um álibi, para não configurar traição. Assim ela poderia sair livremente com um outro homem para tomar café e conversar, sem risco do celular tocando a cada quinze minutos. Enganava a paranoia dele, livrava-se da prestação de contas.
- Não tem sentido a desconfiança porque ele é gay.
A sentença abafava qualquer rumor de discussão de relacionamento, desarmava qualquer ameaça de fim e chantagem de malas na porta.
Como se o gay não demonstrasse perigo. Como se o gay fosse uma melhor amiga. Como se o gay fosse uma carta fora do baralho e houvesse uma ditadura heteronormativo em vigor.
Isso perdeu a validade atualmente, onde o amor não segue símbolos de porta de banheiro. Ama-se uma pessoa independente do gênero. A atração não mais obedece tabus e restrições antes de acontecer. A paixão é livre para desejar e experimentar, ainda que seja para contrariar um passado de predileções e as tendências de uma vida.
O ciúme não tem mais nenhuma barreira. É ecumênico e democrático. Os homens estão liberados para temer mulheres e homens, olhar para todos os lados e não afrouxar a dedicação. Não há exceção diante do reinado absoluto do sentimento.
Na verdade, raciocinando historicamente, apartado dos medos e dos preconceitos, não é uma novidade. Desde o princípio, os cupidos avisavam que não tinham sexo.
Publicado em O Globo em 23/11/2017
LIBERDADE SEXUAL
No sexo, podemos ser qualquer um, sem pegar cadeia por falsa identidade. Podemos mudar a cor do cabelo, podemos usar roupas fetichistas, podemos simular dominação ou submissão, contrariar traumas, zombar das terapias, demonstrar imaturidade, dispensar a razão e o equilíbrio, esquecer condicionamentos e o CPF, descrever o que nem entendemos, puxar histórias sem pé nem cabeça, encarnar segredos que jamais serão confirmados publicamente.
O sexo é invenção de si mesmo. Um jogo de aparências. Nada será julgado, abre-se ao teatro de graça, um exorcismo dos medos, onde a palavra comanda o gemido. Não é para ter pudor de falar. Não é para se envergonhar de se expor. Não é para sofrer censuras e julgamento.
Sexo é libertação. Não há pose proibida, pedido exagerado, súplica estranha.
Os desejos também estão nus. Não é para se controlar, temer represálias. O que acontece no quarto morre nos lençóis.
O ridículo é essencial, a cumplicidade abole os preconceitos. Alguns se vestem de bombeiro, outros de enfermeiros, existe gente que brinca de polícia-ladrão. Não é para se levar a sério, os instintos brincam com as suas possibilidades.
O sexo é uma feira de profissões, um baile à fantasia. Quando podemos fingir algo para se descobrir diferente e ter saudade depois do que realmente somos.
O sexo é a chance de ser pela metade, aos poucos, em capítulos, opondo-se aos diagnósticos e versões oficiais. Não resolve a vida, mas é não resolvendo que nos mostramos mais sinceros.
Publicado em Vida Breve em 22/11/2017
O sexo é invenção de si mesmo. Um jogo de aparências. Nada será julgado, abre-se ao teatro de graça, um exorcismo dos medos, onde a palavra comanda o gemido. Não é para ter pudor de falar. Não é para se envergonhar de se expor. Não é para sofrer censuras e julgamento.
Sexo é libertação. Não há pose proibida, pedido exagerado, súplica estranha.
Os desejos também estão nus. Não é para se controlar, temer represálias. O que acontece no quarto morre nos lençóis.
O ridículo é essencial, a cumplicidade abole os preconceitos. Alguns se vestem de bombeiro, outros de enfermeiros, existe gente que brinca de polícia-ladrão. Não é para se levar a sério, os instintos brincam com as suas possibilidades.
O sexo é uma feira de profissões, um baile à fantasia. Quando podemos fingir algo para se descobrir diferente e ter saudade depois do que realmente somos.
O sexo é a chance de ser pela metade, aos poucos, em capítulos, opondo-se aos diagnósticos e versões oficiais. Não resolve a vida, mas é não resolvendo que nos mostramos mais sinceros.
Publicado em Vida Breve em 22/11/2017
GAÚCHO APOSENTADO
Um gaúcho se aposenta de ser gaúcho não quando para de tomar chimarrão, o que já é grave, não quando deixa de conjugar o tu e adota o você, o que é muito suspeito, não quando corta o "bah" de suas exclamações, o que é esquisito, mas quando transforma a sua churrasqueira em depósito de tralhas.
Um gaúcho que ocupa a sua churrasqueira como se fosse extensão de lixo seco já é paulista. Ele profanou o altar sagrado da picanha. Ele sublocou o território de suas tradições.
Pode faltar espaço na casa, pode ter que pedir arrego na garagem da mãe, mas gaúcho que é gaúcho não cede a churrasqueira para fins espúrios. Não empresta a sua churrasqueira para mais nada. O máximo permitido é usá-la para guardar as suas armas de guerra: os espetos e o saco de carvão.
Na hora em que o lugar do churrasquinho quinzenal é posto a pique para esconder caixas, revistas e badulaques significa o fim vexaminoso do CTG da família.
Não existe como negociar aquele vão. É o poço artesiano da camaradagem e da cumplicidade com os amigos. Nenhum outro emprego é justificável. Mesmo que a mulher destile o seu charme e merchandising da sedução para conservar as caixas de sapatos. Mesmo que o filho venha com manha para estacionar o seu skate ou patinete.
Churrasqueira é cova aberta para a eternidade das brasas. É o nosso quartinho de fumaça. É o nosso pebolim de adultos. É o nosso jeito vitalício de agradar às visitas e exercitar a cordialidade. Não tem como ser rifado, bloqueado.
Não há lenço colorado no pescoço, bombacha e esporas que sejam capazes de restaurar a honra depois.
Pior que isso é só converter a churrasqueira em lareira. Mas daí o gaúcho não abandona o seu bairrismo, despede-se também de ser brasileiro. Assume o exílio definitivo dos trópicos e adquire o passaporte da União Europeia.
Publicado em Jornal Zero Hora em 21/11/2017
Um gaúcho que ocupa a sua churrasqueira como se fosse extensão de lixo seco já é paulista. Ele profanou o altar sagrado da picanha. Ele sublocou o território de suas tradições.
Pode faltar espaço na casa, pode ter que pedir arrego na garagem da mãe, mas gaúcho que é gaúcho não cede a churrasqueira para fins espúrios. Não empresta a sua churrasqueira para mais nada. O máximo permitido é usá-la para guardar as suas armas de guerra: os espetos e o saco de carvão.
Na hora em que o lugar do churrasquinho quinzenal é posto a pique para esconder caixas, revistas e badulaques significa o fim vexaminoso do CTG da família.
Não existe como negociar aquele vão. É o poço artesiano da camaradagem e da cumplicidade com os amigos. Nenhum outro emprego é justificável. Mesmo que a mulher destile o seu charme e merchandising da sedução para conservar as caixas de sapatos. Mesmo que o filho venha com manha para estacionar o seu skate ou patinete.
Churrasqueira é cova aberta para a eternidade das brasas. É o nosso quartinho de fumaça. É o nosso pebolim de adultos. É o nosso jeito vitalício de agradar às visitas e exercitar a cordialidade. Não tem como ser rifado, bloqueado.
Não há lenço colorado no pescoço, bombacha e esporas que sejam capazes de restaurar a honra depois.
Pior que isso é só converter a churrasqueira em lareira. Mas daí o gaúcho não abandona o seu bairrismo, despede-se também de ser brasileiro. Assume o exílio definitivo dos trópicos e adquire o passaporte da União Europeia.
Publicado em Jornal Zero Hora em 21/11/2017
RECEITA PARA MANTER A SOGRA LONGE
Você não suporta a sogra insistentemente por perto?
Não tem mais paciência para vê-la aparecendo de repente e assumindo o controle de casa?
Você conversou com o marido, pediu limites e providências e nada foi feito?
Você descobriu que está casada com um filhinho da mamãe, de sangue de barata, e que ele jamais vai se opor a invasão do espaço e desembaraçar a confusão de papéis?
Você já está no último auge da escravidão, quando ela abre a geladeira como uma fiscal da vigilância sanitária para verificar o que tem e determina o que deve ser descartado e o que deve subir no congelador?
Tenho a receita de olho de sogra, a simpatia para ela nunca mais incomodar.
Pense comigo. Não funcionou a clara oposição: ou ela ou eu, pois ele ainda continua pendendo para as razões e tirania materna, sob a alegação de que ela somente pretende ajudar. Não surtiu efeito o boicote ao sexo, a birra, as intermináveis discussões de relacionamento chamando atenção para a manutenção da privacidade e dos segredos, sem que sejam partilhados com a matriarca.
A fórmula é realizar exatamente o contrário: seja a melhor amiga da sogra. Convide-a para todos os eventos a dois, até para aquele restaurante romântico que costumam frequentar uma vez por semana. Só fale dela para o marido durante dois meses seguidos, elogiando-a, defendendo-a, achando estranho que ele não vem dando a devida atenção à própria mãe, que ele precisava agradecer, com esforço redobrado, o mérito do nascimento e da vida. Compre presentes de decoração estranhíssimos, com bilhetes açucarados: “Segui o conselho de sua mãe, um exemplo de mulher!”.
Transforme a admiração em obsessão. Traga a sogra para assistir a uma longa série de Netflix de noite com direito a cobertor no sofá e pipoca. Desligue o celular e faça longas incursões com ela pelos shoppings _ ao chegar tarde, o esposo se sentirá excluído dos planos de passeio e perguntará "onde estavam?". Confidencie manias na cama para a sogra e depois encerre o assunto com muitas gargalhadas quando ele se aproximar.
Trate de ser mais filha que o filho. Nenhum marido aguenta disputar a mãe com uma irmã. Ele romperá os laços com a mãe por ciúme e desfrutará de longeva exclusividade. Ainda poderá colocar a culpa nele, telefonar para a sogra dizendo não entender o que está acontecendo, que ele é um filho ingrato e que ela foi sempre excelente e não merecia nem um pouco tamanha desconsideração.
Publicado em Donna ZH em 19/11/2017
Não tem mais paciência para vê-la aparecendo de repente e assumindo o controle de casa?
Você conversou com o marido, pediu limites e providências e nada foi feito?
Você descobriu que está casada com um filhinho da mamãe, de sangue de barata, e que ele jamais vai se opor a invasão do espaço e desembaraçar a confusão de papéis?
Você já está no último auge da escravidão, quando ela abre a geladeira como uma fiscal da vigilância sanitária para verificar o que tem e determina o que deve ser descartado e o que deve subir no congelador?
Tenho a receita de olho de sogra, a simpatia para ela nunca mais incomodar.
Pense comigo. Não funcionou a clara oposição: ou ela ou eu, pois ele ainda continua pendendo para as razões e tirania materna, sob a alegação de que ela somente pretende ajudar. Não surtiu efeito o boicote ao sexo, a birra, as intermináveis discussões de relacionamento chamando atenção para a manutenção da privacidade e dos segredos, sem que sejam partilhados com a matriarca.
A fórmula é realizar exatamente o contrário: seja a melhor amiga da sogra. Convide-a para todos os eventos a dois, até para aquele restaurante romântico que costumam frequentar uma vez por semana. Só fale dela para o marido durante dois meses seguidos, elogiando-a, defendendo-a, achando estranho que ele não vem dando a devida atenção à própria mãe, que ele precisava agradecer, com esforço redobrado, o mérito do nascimento e da vida. Compre presentes de decoração estranhíssimos, com bilhetes açucarados: “Segui o conselho de sua mãe, um exemplo de mulher!”.
Transforme a admiração em obsessão. Traga a sogra para assistir a uma longa série de Netflix de noite com direito a cobertor no sofá e pipoca. Desligue o celular e faça longas incursões com ela pelos shoppings _ ao chegar tarde, o esposo se sentirá excluído dos planos de passeio e perguntará "onde estavam?". Confidencie manias na cama para a sogra e depois encerre o assunto com muitas gargalhadas quando ele se aproximar.
Trate de ser mais filha que o filho. Nenhum marido aguenta disputar a mãe com uma irmã. Ele romperá os laços com a mãe por ciúme e desfrutará de longeva exclusividade. Ainda poderá colocar a culpa nele, telefonar para a sogra dizendo não entender o que está acontecendo, que ele é um filho ingrato e que ela foi sempre excelente e não merecia nem um pouco tamanha desconsideração.
Publicado em Donna ZH em 19/11/2017
VIAGEM COM OUTRO CASAL É MANCADA
Não recomendo viajar com casal de amigos. Será uma lua-de-mel ao contrário. Nunca é agradável, com raras exceções.
Em vez de relaxar, atravessará uma tensa terapia coletiva, consolando, dando conselhos e procurando relativizar a crise.
Você desejava ardentemente descansar, pôr os pés para cima numa rede e somente se incomodará, arremessado para uma zona de guerra e precisando negociar com sequestrador para atender exigências extravagantes e liberar reféns.
Quando não é você que briga com a sua companhia, é o outro casal que se desentende por uma bobagem. Um emburrece, embirra, trava e já deseja antecipar a volta para casa.
Sempre acontece um mal-estar do nada, suspendendo passeios, cortando festas pela metade e aguando o café da manhã.
Viajar em casais é um inferno imprevisível. Talvez a convivência com modelos diferentes de afetos gere incontrolável inveja. Os casais começam a se comparar, a fiscalizar as atitudes, a vigiar a quantidade de beijos e afagos, a determinar quem é mais ou menos feliz.
São naturais comentários como “viu o jeito que ele trata ela?” ou “ela não se mexe para a relação!”
Quanto maior o percurso, maiores os danos e as possibilidades de atrito.
Depois do escândalo e do cansaço psicológico do drama, quem discute logo faz as pazes, esquece a rusga, mas não percebe que estragou o final de semana e as férias. Repassou apenas adiante o infortúnio: estragou o ânimo e a confiança dos demais. É um efeito dominó, as peças da racionalidade vão caindo em sequência, abrindo espaço para catarse, aborrecimentos e ataque de nervos.
E quando não ocorre nenhuma discussão evidente, aflora o contraste de personalidades e de dinâmica. Existirá um par amoroso hiperativo que baterá no seu quarto às 5h30 para não perder o amanhecer na praia. Você foi lá para dormir até mais tarde, namorar calmamente, com um objetivo absolutamente divergente dos seus companheiros de estrada, e sofrerá para negar expectativas de suor, caminhada, trilhas e aventuras.
Viajamos em casais pela nostalgia das excursões de turma da escola. Com a diferença de que não há professores para abafar as confusões e resolver os impasses.
Publicado em UOL em 17/11/2017
Em vez de relaxar, atravessará uma tensa terapia coletiva, consolando, dando conselhos e procurando relativizar a crise.
Você desejava ardentemente descansar, pôr os pés para cima numa rede e somente se incomodará, arremessado para uma zona de guerra e precisando negociar com sequestrador para atender exigências extravagantes e liberar reféns.
Quando não é você que briga com a sua companhia, é o outro casal que se desentende por uma bobagem. Um emburrece, embirra, trava e já deseja antecipar a volta para casa.
Sempre acontece um mal-estar do nada, suspendendo passeios, cortando festas pela metade e aguando o café da manhã.
Viajar em casais é um inferno imprevisível. Talvez a convivência com modelos diferentes de afetos gere incontrolável inveja. Os casais começam a se comparar, a fiscalizar as atitudes, a vigiar a quantidade de beijos e afagos, a determinar quem é mais ou menos feliz.
São naturais comentários como “viu o jeito que ele trata ela?” ou “ela não se mexe para a relação!”
Quanto maior o percurso, maiores os danos e as possibilidades de atrito.
Depois do escândalo e do cansaço psicológico do drama, quem discute logo faz as pazes, esquece a rusga, mas não percebe que estragou o final de semana e as férias. Repassou apenas adiante o infortúnio: estragou o ânimo e a confiança dos demais. É um efeito dominó, as peças da racionalidade vão caindo em sequência, abrindo espaço para catarse, aborrecimentos e ataque de nervos.
E quando não ocorre nenhuma discussão evidente, aflora o contraste de personalidades e de dinâmica. Existirá um par amoroso hiperativo que baterá no seu quarto às 5h30 para não perder o amanhecer na praia. Você foi lá para dormir até mais tarde, namorar calmamente, com um objetivo absolutamente divergente dos seus companheiros de estrada, e sofrerá para negar expectativas de suor, caminhada, trilhas e aventuras.
Viajamos em casais pela nostalgia das excursões de turma da escola. Com a diferença de que não há professores para abafar as confusões e resolver os impasses.
Publicado em UOL em 17/11/2017
DEDO PODRE LEVA ALIANÇA
O dedo podre faz com que perca a mão cheia de bons relacionamentos. Quando você se envolve com uma louca ou louco, um obsessor ou uma obsessora, não estraga apenas uma relação, mas também as relações futuras. Não cria unicamente trauma em sua história, prolonga-se em conflitos e crises em, pelo menos, dois romances futuros.
Pois não tem como terminar o envolvimento com alguém fora de si. É impossível. A pessoa jamais aceitará o desenlace, jamais acolherá a negativa, jamais admitirá o fim e o abandono, seguirá como um zumbi desgovernado perseguindo os seus passos e multiplicando os cadáveres com as suas mordidas. Vai criar contas fakes e avatares fantasmas para infernizar a sua vida e a de possíveis pretendentes.
Assim você não terá descanso. Provará do mais constrangedor dos arrependimentos, sonhando em mudar o passado e apagar certas lembranças. Sofrerá uma avalanche de fotos, insinuações e segredos para desestabilizar a sua alegria.
Não existe modo seguro para se isolar da ofensiva. Haverá descrição de detalhes de sua sexualidade e de suas manias, a ex ou o ex pretende disseminar a crença de que ainda são amantes e continuam se encontrando.
Suportará a ira e a vingança apocalíptica de um hacker do amor. Enfrentará um inimigo poderoso com conhecimento de causa de seus defeitos e fraquezas.
Todos os seus domínios serão contaminados por distorções e inverdades. Não terá descanso, trégua, até que a xiita ou o xiita liquide com as novas possibilidades de namoro. A sentença que move a alma atormentada é própria do camicase, lixando-se para as censuras morais: “já que não ficou comigo, então não ficará com mais ninguém”.
Como os começos são frágeis e a paixão é quebradiça, os ataques são vitoriosos e convincentes, despertando ciúme e desconfiança. Dificilmente a vítima desfrutará de tempo para se explicar. A ideia é espalhar a incerteza nos acontecimentos mais corriqueiros, transformando a intimidade antiga em suspeita e ameaça onipresentes.
A escolha errada de um parceiro ou de uma parceira, sem nenhuma base razoável, grangrena a esperança. Traz um preço muito alto a pagar, comprometendo o orçamento afetivo com parcelas infinitas. É o mesmo que continuar pagando prestações de um carro roubado.
O maluco e a maluca não largarão de seu pé até amputar inteiramente a sua mão. Só estarão satisfeitos quando não sobrar dedo nenhum para a aliança.
Publicado em O Globo em 16/11/2017
Pois não tem como terminar o envolvimento com alguém fora de si. É impossível. A pessoa jamais aceitará o desenlace, jamais acolherá a negativa, jamais admitirá o fim e o abandono, seguirá como um zumbi desgovernado perseguindo os seus passos e multiplicando os cadáveres com as suas mordidas. Vai criar contas fakes e avatares fantasmas para infernizar a sua vida e a de possíveis pretendentes.
Assim você não terá descanso. Provará do mais constrangedor dos arrependimentos, sonhando em mudar o passado e apagar certas lembranças. Sofrerá uma avalanche de fotos, insinuações e segredos para desestabilizar a sua alegria.
Não existe modo seguro para se isolar da ofensiva. Haverá descrição de detalhes de sua sexualidade e de suas manias, a ex ou o ex pretende disseminar a crença de que ainda são amantes e continuam se encontrando.
Suportará a ira e a vingança apocalíptica de um hacker do amor. Enfrentará um inimigo poderoso com conhecimento de causa de seus defeitos e fraquezas.
Todos os seus domínios serão contaminados por distorções e inverdades. Não terá descanso, trégua, até que a xiita ou o xiita liquide com as novas possibilidades de namoro. A sentença que move a alma atormentada é própria do camicase, lixando-se para as censuras morais: “já que não ficou comigo, então não ficará com mais ninguém”.
Como os começos são frágeis e a paixão é quebradiça, os ataques são vitoriosos e convincentes, despertando ciúme e desconfiança. Dificilmente a vítima desfrutará de tempo para se explicar. A ideia é espalhar a incerteza nos acontecimentos mais corriqueiros, transformando a intimidade antiga em suspeita e ameaça onipresentes.
A escolha errada de um parceiro ou de uma parceira, sem nenhuma base razoável, grangrena a esperança. Traz um preço muito alto a pagar, comprometendo o orçamento afetivo com parcelas infinitas. É o mesmo que continuar pagando prestações de um carro roubado.
O maluco e a maluca não largarão de seu pé até amputar inteiramente a sua mão. Só estarão satisfeitos quando não sobrar dedo nenhum para a aliança.
Publicado em O Globo em 16/11/2017
ANOS SETENTA
A mesa da escola era a minha caverna. Desenhava longamente quando não prestava atenção na aula. Caracterizava o nosso jeito de nos comunicarmos com o colega ao lado. Deixávamos sinais engraçados, lembretes sérios, avisos da nossa existência mais recôndita.
Os dizeres por debaixo dos livros formavam nosso código morse, nossa rede de informações, nosso muro de lamentações, nossas pichações transgressoras.
Cada um tinha uma mesinha, do tamanho de uma prancheta de arquiteto, para expor os seus conflitos e desejos a lápis. Tiago fazia monstros. Ricardo transformava o espaço em parede de banheiro, para criar safadezas. Giselle enchia a sua classe de corações e cupidos. Dorotea respondia desaforos aos pais que se separavam no momento, em louco diálogo imaginário (divórcios doíam naquela época).
As personalidades e temperamentos se mostravam inteiros naquele território pré-WhatsApp. Como o caderno custava caro, não usávamos as folhas, poupávamos o material escolar exclusivamente para as aulas. Nosso escape terminava sendo desabafos e caricaturas naquele quadro mágico. Nosso quartinho de grafite para não ser sufocado por fórmulas matemáticas e regras gramaticais.
Todo dia cobria a sua extensão de rabiscos e garatujas. Toda manhã seguinte estava tudo apagado. Como um castelo de areia que não durava vinte e quatro horas com a maré alta. Insistia em escrever, já entendendo que a posteridade não existia por ali. Da minha turma, só eu e Alice chegamos ao curso superior, mais ninguém dos quarenta estudantes.
Os professores não precisavam nos botar de castigo ou mandar para o SOE para descobrir os nossos pensamentos secretos. Bastava conferir as mesas no fim da aula, diários escritos na fórmica de pequenos prisioneiros de seus sonhos.
Publicado em Vida Breve em 15/11/2017
Os dizeres por debaixo dos livros formavam nosso código morse, nossa rede de informações, nosso muro de lamentações, nossas pichações transgressoras.
Cada um tinha uma mesinha, do tamanho de uma prancheta de arquiteto, para expor os seus conflitos e desejos a lápis. Tiago fazia monstros. Ricardo transformava o espaço em parede de banheiro, para criar safadezas. Giselle enchia a sua classe de corações e cupidos. Dorotea respondia desaforos aos pais que se separavam no momento, em louco diálogo imaginário (divórcios doíam naquela época).
As personalidades e temperamentos se mostravam inteiros naquele território pré-WhatsApp. Como o caderno custava caro, não usávamos as folhas, poupávamos o material escolar exclusivamente para as aulas. Nosso escape terminava sendo desabafos e caricaturas naquele quadro mágico. Nosso quartinho de grafite para não ser sufocado por fórmulas matemáticas e regras gramaticais.
Todo dia cobria a sua extensão de rabiscos e garatujas. Toda manhã seguinte estava tudo apagado. Como um castelo de areia que não durava vinte e quatro horas com a maré alta. Insistia em escrever, já entendendo que a posteridade não existia por ali. Da minha turma, só eu e Alice chegamos ao curso superior, mais ninguém dos quarenta estudantes.
Os professores não precisavam nos botar de castigo ou mandar para o SOE para descobrir os nossos pensamentos secretos. Bastava conferir as mesas no fim da aula, diários escritos na fórmica de pequenos prisioneiros de seus sonhos.
Publicado em Vida Breve em 15/11/2017
O ÚNICO HOMEM HONESTO QUE EU CONHECI
Meu avô sempre dizia que honesto era o seu pai. Para qualquer situação. Quando ouvia as notícias do rádio de manhã na cozinha, no almoço, quando aprontava alguma malandragem e me passava o pito, quando colocava o seu calção e seu chinelo para o entardecer de chimarrão, antes de me dar boa-noite e, de novo, no bom-dia.
Eu confabulava com os meus botões: o que será que ele fez com descomunal excelência e honradez, para ser um exemplo perfeito e recorrente? Chegava a ser chata a evocação, mas não podia menosprezar o amor da sentença, havia uma homenagem a um caráter de exceção, um reverência a um padrão de vida e de clareza. Quisera que os meus filhos pensassem o mesmo de mim no futuro.
- Meu pai é que era honesto. O único homem honesto que conheci.
Já imaginava o seu pai como um super-herói de Guaporé, de sunga por cima do collant, meias coloridas e capa esvoaçante, prendendo assaltantes de banco, ajudando velhinhas a subir no ônibus, desmoralizando os políticos na Câmara de Vereadores, criticando a indolência dos mendigos nos bancos de pedra da praça, devolvendo o troco dos caixas aos aposentados. Sua figura tomou boa parte da memória de minha infância. Pretendia atingir o mesmo grau de retidão, prometi a mim mesmo não mentir mais, com exceção da hora de comer rúcula, que eu detestava.
Ele devia nunca ter atrasado uma conta, nunca ter passado ninguém para trás, nunca ter enganado esposa, nunca ter faltado ao trabalho, nunca ter omitido a sua opinião, aposto que pedia desculpas no exato momento de uma falha e não cedia à tentação da soberba. Pois o antônimo da honestidade não é a mentira, mas o orgulho.
Surpreso fiquei quando o meu avô pediu que eu buscasse correspondência na agência de Correios da esquina e me entregou a sua identidade para a retirada do volume. Constava que ele era filho de Honesto Carpi.
Nunca um documento causou tanto estrago em minha personalidade. Demorei a minha adolescência inteira para desfazer a fantasia.
Publicado em Jornal Zero Hora em 14/11/2017
Eu confabulava com os meus botões: o que será que ele fez com descomunal excelência e honradez, para ser um exemplo perfeito e recorrente? Chegava a ser chata a evocação, mas não podia menosprezar o amor da sentença, havia uma homenagem a um caráter de exceção, um reverência a um padrão de vida e de clareza. Quisera que os meus filhos pensassem o mesmo de mim no futuro.
- Meu pai é que era honesto. O único homem honesto que conheci.
Já imaginava o seu pai como um super-herói de Guaporé, de sunga por cima do collant, meias coloridas e capa esvoaçante, prendendo assaltantes de banco, ajudando velhinhas a subir no ônibus, desmoralizando os políticos na Câmara de Vereadores, criticando a indolência dos mendigos nos bancos de pedra da praça, devolvendo o troco dos caixas aos aposentados. Sua figura tomou boa parte da memória de minha infância. Pretendia atingir o mesmo grau de retidão, prometi a mim mesmo não mentir mais, com exceção da hora de comer rúcula, que eu detestava.
Ele devia nunca ter atrasado uma conta, nunca ter passado ninguém para trás, nunca ter enganado esposa, nunca ter faltado ao trabalho, nunca ter omitido a sua opinião, aposto que pedia desculpas no exato momento de uma falha e não cedia à tentação da soberba. Pois o antônimo da honestidade não é a mentira, mas o orgulho.
Surpreso fiquei quando o meu avô pediu que eu buscasse correspondência na agência de Correios da esquina e me entregou a sua identidade para a retirada do volume. Constava que ele era filho de Honesto Carpi.
Nunca um documento causou tanto estrago em minha personalidade. Demorei a minha adolescência inteira para desfazer a fantasia.
Publicado em Jornal Zero Hora em 14/11/2017
UM CRUCIFIXO NO JARDIM
Um pouco de sofrimento dá saudade e pode apressar reconciliações. Uma colher de sopa de dor, não mais que isso.
Qualquer um aguenta um mês longe, inclusive dois meses, um constrangimento, um desentendimento sério, uma ausência muda de telefonemas e aparições.
Angústia breve é salutar, permite ajustes necessários na convivência, trazendo à tona exigências e reivindicações até então secretas. Uma briguinha não é ruim, revela o que não foi acertado no início, aumenta com a lupa as cláusulas minúsculas do contrato afetivo.
Já não deixe o seu amor sofrer demais, o risco da superdose é fatal. É necessário não passar do ponto, evitando de converter teorias dissonantes em grosserias e aviltamento da personalidade.
A generosidade do enamoramento tem o seu limite. Logo a distância perde o charme e expõe que, de repente, não vigora nenhuma aceitação e compatibilidade de gênios.
O sofrimento excessivo termina relacionamentos. O sofredor é capaz de realmente cansar de amar e não querer mais nada em seguida. Ficará vacinado para qualquer nova aproximação.
Não brinque com as esperanças e expectativas, não recue nas palavras, não apresente a todos amigos e familiares para remendar que não queria algo sério. A vergonha costuma não oferecer caminho de volta.
Quando as lembranças ruins superam as boas, quando o mal-estar abafa a paixão do começo, o namoro tem os seus laços quebrados. Quem pensa demais sempre vai se separar, já que a emoção tornou-se secundária. Pois daí é possível se defender racionalmente daquilo que não se gostou.
Depois de aguardar um pedido de desculpa por longo tempo inutilmente, não existe conserto. Arrependimento não deve ser demorado. Mesmo que o perdão venha, será atrasado e servirá para somente limpar a consciência, não lavar o amor. O outro não acreditará mais. O outro não suportará a ideia de passar pela mesma tormenta no futuro. Terá força para dizer não, de tantas negativas acumuladas dentro de si.
Separação é como esteio de uma planta jovem. A madeira de alicerce, se tremendamente pesada, encurvará o caule e se transformará em crucifixo de lápide no jardim.
Publicado em Donna ZH em 12/11/2017
Qualquer um aguenta um mês longe, inclusive dois meses, um constrangimento, um desentendimento sério, uma ausência muda de telefonemas e aparições.
Angústia breve é salutar, permite ajustes necessários na convivência, trazendo à tona exigências e reivindicações até então secretas. Uma briguinha não é ruim, revela o que não foi acertado no início, aumenta com a lupa as cláusulas minúsculas do contrato afetivo.
Já não deixe o seu amor sofrer demais, o risco da superdose é fatal. É necessário não passar do ponto, evitando de converter teorias dissonantes em grosserias e aviltamento da personalidade.
A generosidade do enamoramento tem o seu limite. Logo a distância perde o charme e expõe que, de repente, não vigora nenhuma aceitação e compatibilidade de gênios.
O sofrimento excessivo termina relacionamentos. O sofredor é capaz de realmente cansar de amar e não querer mais nada em seguida. Ficará vacinado para qualquer nova aproximação.
Não brinque com as esperanças e expectativas, não recue nas palavras, não apresente a todos amigos e familiares para remendar que não queria algo sério. A vergonha costuma não oferecer caminho de volta.
Quando as lembranças ruins superam as boas, quando o mal-estar abafa a paixão do começo, o namoro tem os seus laços quebrados. Quem pensa demais sempre vai se separar, já que a emoção tornou-se secundária. Pois daí é possível se defender racionalmente daquilo que não se gostou.
Depois de aguardar um pedido de desculpa por longo tempo inutilmente, não existe conserto. Arrependimento não deve ser demorado. Mesmo que o perdão venha, será atrasado e servirá para somente limpar a consciência, não lavar o amor. O outro não acreditará mais. O outro não suportará a ideia de passar pela mesma tormenta no futuro. Terá força para dizer não, de tantas negativas acumuladas dentro de si.
Separação é como esteio de uma planta jovem. A madeira de alicerce, se tremendamente pesada, encurvará o caule e se transformará em crucifixo de lápide no jardim.
Publicado em Donna ZH em 12/11/2017
QUANDO O HOMEM APRESENTA A FAMÍLIA NÃO SIGNIFICA NADA
Mostrar a família é um passo importante no relacionamento para a mulher - o equivalente a oficializar o laço. Não é qualquer um que ela apresenta aos filhos. Não é qualquer um que ela apresenta aos pais e irmãos. Denota o momento de maior nervosismo pessoal, quando ela unifica a felicidade privada com a aceitação pública.
Casos, rolos, peguetes e crushs mudam de natureza vocabular ao conhecer a intimidade da mulher. Ela é reservada e comedida na hora de trazer alguém para dentro das fofocas, histórias vergonhosas e apelidos de casa. Só faz se tem certeza do amor ou do encaminhamento do amor. Só faz se está muito apaixonada e convicta. Não quer parecer leviana e inconstante, criar expectativas infundadas e ter que explicar depois onde se encontra o futuro ex namorado.
O que a mulher não entende é que o comportamento masculino não reflete iguais gravidade e responsabilidade. Abrir o convívio
familiar não resultará em relacionamento sério. Não é a mesma moeda, o mesmo valor, o mesmo peso. Não simboliza pré-requisito para alterar o status do Facebook.
O engano é supor que ele se importa com o que os parentes pensam dele. Ele dá de ombros para as suposições e maldades. Separa, desde sempre, a vida amorosa da familiar.
Desse jeito, você pode passear com os filhos ou com os pais dele, ser acolhida e festejada, e ele nunca mais telefonar. Não representa um compromisso, o marco do início do namoro, o anúncio oficial do fim da solteirice. Não ganhará o sujeito alcançando as esferas caseiras. Não significa nada, absolutamente nada. Por acaso, a família estava por perto e se encontraram e ele apresentou com quem vinha saindo, assim como pode apresentar outra pessoa na semana seguinte. E não haverá crise de consciência e não será malvisto como promíscuo (afinal a sociedade machista perdoa o sexo variado do homem - enxerga como experiência - e condena os inúmeros parceiros da mulher - entendido como inconsequência e imaturidade).
Homem não tem hierarquia de encontros. Não é porque ele lhe convidou para formar o seu par no casamento do melhor amigo ou porque lhe chamou para uma formatura de colega ou porque lhe levou para uma confraternização de trabalho que vem avisando de que optou pela exclusividade e estabilidade na relação.
Não, você não passou de fase, nem alcançou bônus, eventos são meros eventos, ele somente não deseja aparecer sozinho nas festas e compromissos (porém, estranhamente, ainda pretende se manter sozinho, livre e desimpedido).
Carregará a sensação amarga de que foi usada, de que serviu como companhia de luxo, de que foi parte da decoração de uma vitrine. E não deixa de ser verdade.
Publicado em UOL em 10/11/2017
Casos, rolos, peguetes e crushs mudam de natureza vocabular ao conhecer a intimidade da mulher. Ela é reservada e comedida na hora de trazer alguém para dentro das fofocas, histórias vergonhosas e apelidos de casa. Só faz se tem certeza do amor ou do encaminhamento do amor. Só faz se está muito apaixonada e convicta. Não quer parecer leviana e inconstante, criar expectativas infundadas e ter que explicar depois onde se encontra o futuro ex namorado.
O que a mulher não entende é que o comportamento masculino não reflete iguais gravidade e responsabilidade. Abrir o convívio
familiar não resultará em relacionamento sério. Não é a mesma moeda, o mesmo valor, o mesmo peso. Não simboliza pré-requisito para alterar o status do Facebook.
O engano é supor que ele se importa com o que os parentes pensam dele. Ele dá de ombros para as suposições e maldades. Separa, desde sempre, a vida amorosa da familiar.
Desse jeito, você pode passear com os filhos ou com os pais dele, ser acolhida e festejada, e ele nunca mais telefonar. Não representa um compromisso, o marco do início do namoro, o anúncio oficial do fim da solteirice. Não ganhará o sujeito alcançando as esferas caseiras. Não significa nada, absolutamente nada. Por acaso, a família estava por perto e se encontraram e ele apresentou com quem vinha saindo, assim como pode apresentar outra pessoa na semana seguinte. E não haverá crise de consciência e não será malvisto como promíscuo (afinal a sociedade machista perdoa o sexo variado do homem - enxerga como experiência - e condena os inúmeros parceiros da mulher - entendido como inconsequência e imaturidade).
Homem não tem hierarquia de encontros. Não é porque ele lhe convidou para formar o seu par no casamento do melhor amigo ou porque lhe chamou para uma formatura de colega ou porque lhe levou para uma confraternização de trabalho que vem avisando de que optou pela exclusividade e estabilidade na relação.
Não, você não passou de fase, nem alcançou bônus, eventos são meros eventos, ele somente não deseja aparecer sozinho nas festas e compromissos (porém, estranhamente, ainda pretende se manter sozinho, livre e desimpedido).
Carregará a sensação amarga de que foi usada, de que serviu como companhia de luxo, de que foi parte da decoração de uma vitrine. E não deixa de ser verdade.
Publicado em UOL em 10/11/2017
O PAI NO HOSPITAL
Estranhamente eu me vi contente quando o meu pai baixou hospital. É um sentimento feio para se confessar, mas foi o que aconteceu comigo. Não consigo definir se era felicidade ou alívio.
O meu pai sempre foi rigoroso comigo, de meias e duras palavras, sério, distante, inacessível. Demonstrava afeto e importância falando de dinheiro, se eu precisava de alguma coisa, mais nada, nunca descobri o que pensava e o que desejava, jamais expôs uma outra preocupação carinhosa.
O máximo de contato que tivemos se resumiu a seu aceno uma vez na rodoviária quando segui viagem para estudar na capital. O pássaro de sua mão voando tornou-se nossa recordação mais próxima. Quisera ter fotografado.
Já no hospital, pela primeira vez, eu poderia tocar em sua pele, sem medo, sem susto, sem que ele virasse o rosto, sem ser ofendido. Fiquei perto da cama o observando: uma rocha no mar que recebe a superfície afofada do líquen.
Ele, indefeso, apresentava uma nova autoridade. A autoridade do amor. A sabedoria da fragilidade: nem tudo passa, a amizade dos filhos, surpreendente e incompreensível, grudava-se na pedra.
Fiz questão de cuidá-lo. Ele que nunca me beijava, nunca segurava a minha mão, nunca me abraçava, nunca pedia um favor. E eu o beijei, eu o abracei, eu entrelacei os meus dedos em seus dedos enquanto dormia, eu segurei o copo d’água perto da boca, com a calma sôfrega do canudo.
Recuperei todo o nosso tempo perdido nas três noites de vigília.
Quando ele se recuperou, voltou a ser o que era antes, fechado e distante. Mas eu não voltei a ser a mesma pessoa.
Publicado em O Globo em 09/11/2017
O meu pai sempre foi rigoroso comigo, de meias e duras palavras, sério, distante, inacessível. Demonstrava afeto e importância falando de dinheiro, se eu precisava de alguma coisa, mais nada, nunca descobri o que pensava e o que desejava, jamais expôs uma outra preocupação carinhosa.
O máximo de contato que tivemos se resumiu a seu aceno uma vez na rodoviária quando segui viagem para estudar na capital. O pássaro de sua mão voando tornou-se nossa recordação mais próxima. Quisera ter fotografado.
Já no hospital, pela primeira vez, eu poderia tocar em sua pele, sem medo, sem susto, sem que ele virasse o rosto, sem ser ofendido. Fiquei perto da cama o observando: uma rocha no mar que recebe a superfície afofada do líquen.
Ele, indefeso, apresentava uma nova autoridade. A autoridade do amor. A sabedoria da fragilidade: nem tudo passa, a amizade dos filhos, surpreendente e incompreensível, grudava-se na pedra.
Fiz questão de cuidá-lo. Ele que nunca me beijava, nunca segurava a minha mão, nunca me abraçava, nunca pedia um favor. E eu o beijei, eu o abracei, eu entrelacei os meus dedos em seus dedos enquanto dormia, eu segurei o copo d’água perto da boca, com a calma sôfrega do canudo.
Recuperei todo o nosso tempo perdido nas três noites de vigília.
Quando ele se recuperou, voltou a ser o que era antes, fechado e distante. Mas eu não voltei a ser a mesma pessoa.
Publicado em O Globo em 09/11/2017
PEZINHOS DE ANJOS
Pé de bebê é um biscoito. Pequenino, formoso, desprovido de chulé. É uma segunda mãozinha na nossa cara, nem incomoda. Faz cócegas.
Pé de bebê é irresistível. Não dá para não brincar com ele e roubar risadas.
Só que eu fui um pai distraído. Da mesma forma em que perdi compulsivamente guarda-chuva na adolescência até desistir de me proteger, tornei-me o rei dos chinelos e sandálias extraviados de meus filhos. Quando carregava as duas crianças, elas voltavam para casa com um dos pés descalços. Foi uma constante humilhação para quem desejava se equiparar à atenção materna.
Na confusão do metrô, do shopping, da padaria, da praça, caía um par no caminho e não percebia. Eu somente identificava a ausência tarde demais. Deixei uma campanha de agasalho pelo chão de meus desastres.
O malabarismo de segurar o nenê no colo, equilibrar carrinho, portar malinha de cueiros, mamadeira e fraldas e me desviar dos obstáculos humanos gerava grandes prejuízos. Alguns passageiros e passantes me avisavam e me devolviam os pertences ainda em tempo (óbvio que e eu me sentia o pior pai do mundo pelo desleixo), mas nem sempre contei com a sorte da repescagem.
A gaveta deles apresentava um sem número de calçados solteiros, viúvos, desquitados. Dava pena jogar fora o que ficava, e também tinha a consciência de que dificilmente encontraria o faltante.
Na coleção da sapataria, havia mais desfalques do que porta-joias feminino e seus brincos avulsos pela vida.
Acho que criei em meus filhos, involuntariamente, o complexo de Cinderela. Espero que ambos não fiquem procurando príncipe e princesa por onde andamos nas respectivas infâncias e não formem grupos no Facebook com os colegas da creche e do jardim.
Toda hipnose regressiva tem seus limites. Temos que ir até onde vai a nossa responsabilidade, jamais afundar na culpa do outro. No caso deles, a culpa desse pai atrapalhado.
Publicado em Vida Breve em 08/11/2017
Pé de bebê é irresistível. Não dá para não brincar com ele e roubar risadas.
Só que eu fui um pai distraído. Da mesma forma em que perdi compulsivamente guarda-chuva na adolescência até desistir de me proteger, tornei-me o rei dos chinelos e sandálias extraviados de meus filhos. Quando carregava as duas crianças, elas voltavam para casa com um dos pés descalços. Foi uma constante humilhação para quem desejava se equiparar à atenção materna.
Na confusão do metrô, do shopping, da padaria, da praça, caía um par no caminho e não percebia. Eu somente identificava a ausência tarde demais. Deixei uma campanha de agasalho pelo chão de meus desastres.
O malabarismo de segurar o nenê no colo, equilibrar carrinho, portar malinha de cueiros, mamadeira e fraldas e me desviar dos obstáculos humanos gerava grandes prejuízos. Alguns passageiros e passantes me avisavam e me devolviam os pertences ainda em tempo (óbvio que e eu me sentia o pior pai do mundo pelo desleixo), mas nem sempre contei com a sorte da repescagem.
A gaveta deles apresentava um sem número de calçados solteiros, viúvos, desquitados. Dava pena jogar fora o que ficava, e também tinha a consciência de que dificilmente encontraria o faltante.
Na coleção da sapataria, havia mais desfalques do que porta-joias feminino e seus brincos avulsos pela vida.
Acho que criei em meus filhos, involuntariamente, o complexo de Cinderela. Espero que ambos não fiquem procurando príncipe e princesa por onde andamos nas respectivas infâncias e não formem grupos no Facebook com os colegas da creche e do jardim.
Toda hipnose regressiva tem seus limites. Temos que ir até onde vai a nossa responsabilidade, jamais afundar na culpa do outro. No caso deles, a culpa desse pai atrapalhado.
Publicado em Vida Breve em 08/11/2017
PÃOZINHO QUENTE
A minha grande alegria familiar não é trazer presentes para os filhos ou para a esposa, não é fechar negócios polpudos no trabalho e voltar satisfeito, não é a promessa de um prato predileto, mas é abrir a porta de casa com os pãezinhos quentinhos no colo.
Esquentam o meu peito no caminho a pé, tal bebê sonhando com o berço.
Quando chego na padaria e a atendente diz: "o pão acabou de sair", eu me vejo consagrado.
Aparecer na padaria exatamente com o pão saindo do forno representa sorte e inspiração. Como se eu fosse premiado pela Mega Sena do cotidiano. Como se tivesse acertado os números da Quina dos horários. Abro o sorriso com a fortuna dos dentes. Levanto o braço gritando "Bingo!". Comemoro o gol abraçando estranhos.
Não levaria os pães cabisbaixos da cesta, frios e duros, cansados de esperança. Estava pegando os mais cobiçados, os de miolo quente e de casca crocante, feitos sob encomenda para o nosso café da tarde. Desciam do fogo direto para o calor das mãos.
Já salivava imaginando a geleia de morango ou a manteiga derretendo em sua crosta. Eu me distanciava da vitrine com água na boca, atrapalhado e ansioso, tendo a certeza de que havia sido um predestinado naquela noite.
Não há melhor sensação do que ser pontual na retirada dos pães. Não preciso de mais nada para ser feliz.
Encaro os vizinhos na rua com a superioridade do privilégio, ostentando a medalha de honra. Não posso nem fechar o saco, tamanho o frescor do nascimento, pois ele ficará absolutamente embaçado. O cheiro emana para a minha barba, enfeitiçando-me de sortilégios.
Não existe desentendimento com a mulher, cisma dos filhos, dívida bancária, mal-estar com a vida, que resista a minha aparição caseira gritando: "Os pães estão quentinhos, venham logo para a mesa".
Publicado em Jornal ZH em 07/11/2017
Esquentam o meu peito no caminho a pé, tal bebê sonhando com o berço.
Quando chego na padaria e a atendente diz: "o pão acabou de sair", eu me vejo consagrado.
Aparecer na padaria exatamente com o pão saindo do forno representa sorte e inspiração. Como se eu fosse premiado pela Mega Sena do cotidiano. Como se tivesse acertado os números da Quina dos horários. Abro o sorriso com a fortuna dos dentes. Levanto o braço gritando "Bingo!". Comemoro o gol abraçando estranhos.
Não levaria os pães cabisbaixos da cesta, frios e duros, cansados de esperança. Estava pegando os mais cobiçados, os de miolo quente e de casca crocante, feitos sob encomenda para o nosso café da tarde. Desciam do fogo direto para o calor das mãos.
Já salivava imaginando a geleia de morango ou a manteiga derretendo em sua crosta. Eu me distanciava da vitrine com água na boca, atrapalhado e ansioso, tendo a certeza de que havia sido um predestinado naquela noite.
Não há melhor sensação do que ser pontual na retirada dos pães. Não preciso de mais nada para ser feliz.
Encaro os vizinhos na rua com a superioridade do privilégio, ostentando a medalha de honra. Não posso nem fechar o saco, tamanho o frescor do nascimento, pois ele ficará absolutamente embaçado. O cheiro emana para a minha barba, enfeitiçando-me de sortilégios.
Não existe desentendimento com a mulher, cisma dos filhos, dívida bancária, mal-estar com a vida, que resista a minha aparição caseira gritando: "Os pães estão quentinhos, venham logo para a mesa".
Publicado em Jornal ZH em 07/11/2017
O NÓ ENTRE PAI E FILHO
Há certos rituais que ainda são dos homens, hábitos exclusivos entre pai e filho, que não podem se perder com o tempo e a tecnologia.
Ensinar a se barbear com a devida espuma é um deles. Nada mais bonito do que pai e filho próximos no espelho, rostos sobrepostos, o pai pedindo licença para descer a lâmina na pele do filho, avisando que não vai machucá-lo, que não é para ter medo, demonstrando a firmeza da diagonal do gesto. O filho prestando atenção, e admitindo a exceção de uma mão que não a sua tocando em sua face, como um beijo diferente, como parte da sua vida. E depois colocar a toalha quente e borrifar loção, estapeando levemente os poros abertos e partilhando a ardência saborosa e perfumada da virilidade. Que tudo termine numa risada com "entendi, pai, entendi".
Fazer o nó da gravata é outra lição essencial. Acabei de explicar ao meu filho Vicente. Tinha que ser eu. Para que pudesse lembrar de mim em sua formatura, em seus dias de emprego, em suas saídas oficiais para festas e casamentos.
É hastear a bandeira do nosso amor no colarinho. A gravata traz uma delicadeza séria, uma doçura digna. Não importa a cor, será o nosso jardim nos ombros.
Quando ele firmou o nó pela primeira vez em seu pescoço, eu senti que nenhum mal e desavença posterior nos soltaria. Estávamos presos aos cadarços das camisas.
Foi um misto de orgulho e de nostalgia. Era pôr um laço definitivo de filiação. Eu o deixava ir para ficar na memória. Aceitava, com dificuldade, que ele estava grande, de que cresceu, de que deveria abrir o seu caminho sem precisar de mais ninguém para pedir favor. Daria conta de si sozinho dali por diante.
Não haverá abraço no futuro que nos torne tão rentes como naquele momento.
Assim que deve ser: é o filho que fará a gravata no enterro do pai. Valor a ser passado de geração em geração, pelos ciclos da existência.
Só ele repetirá a minha assinatura, ponto por ponto, dobra por dobra, não aceitando a ponta da gravata maior do que a cintura, não aceitando a despedida de qualquer jeito, mantendo o respeito e o capricho da minha essência na aparência.
Publicado em Donna ZH em 05/11/2017
Ensinar a se barbear com a devida espuma é um deles. Nada mais bonito do que pai e filho próximos no espelho, rostos sobrepostos, o pai pedindo licença para descer a lâmina na pele do filho, avisando que não vai machucá-lo, que não é para ter medo, demonstrando a firmeza da diagonal do gesto. O filho prestando atenção, e admitindo a exceção de uma mão que não a sua tocando em sua face, como um beijo diferente, como parte da sua vida. E depois colocar a toalha quente e borrifar loção, estapeando levemente os poros abertos e partilhando a ardência saborosa e perfumada da virilidade. Que tudo termine numa risada com "entendi, pai, entendi".
Fazer o nó da gravata é outra lição essencial. Acabei de explicar ao meu filho Vicente. Tinha que ser eu. Para que pudesse lembrar de mim em sua formatura, em seus dias de emprego, em suas saídas oficiais para festas e casamentos.
É hastear a bandeira do nosso amor no colarinho. A gravata traz uma delicadeza séria, uma doçura digna. Não importa a cor, será o nosso jardim nos ombros.
Quando ele firmou o nó pela primeira vez em seu pescoço, eu senti que nenhum mal e desavença posterior nos soltaria. Estávamos presos aos cadarços das camisas.
Foi um misto de orgulho e de nostalgia. Era pôr um laço definitivo de filiação. Eu o deixava ir para ficar na memória. Aceitava, com dificuldade, que ele estava grande, de que cresceu, de que deveria abrir o seu caminho sem precisar de mais ninguém para pedir favor. Daria conta de si sozinho dali por diante.
Não haverá abraço no futuro que nos torne tão rentes como naquele momento.
Assim que deve ser: é o filho que fará a gravata no enterro do pai. Valor a ser passado de geração em geração, pelos ciclos da existência.
Só ele repetirá a minha assinatura, ponto por ponto, dobra por dobra, não aceitando a ponta da gravata maior do que a cintura, não aceitando a despedida de qualquer jeito, mantendo o respeito e o capricho da minha essência na aparência.
Publicado em Donna ZH em 05/11/2017
A MÃO BOBA DA MULHER
Mulher conquista o homem pela barriga. Mas não é cozinhando.
Revela suas segundas intenções, quando numa foto, desliza a mão para a barriga do homem. Ela está dizendo que deseja ficar com ele. É mais do que um convite, trata-se de uma imposição.
Colocar a mão ali é fatal: significa que está interessada, e gostaria que ele fosse seu.
A mão na barriga desenha relacionamento sério, invoca os santos a baterem cabeça. É altamente perigosa e pornográfica.
De repente, é o primeiro contato da figura feminina e já finca de saída a bandeira dos dedos no umbigo. Crava a flâmula da dominação no Everest da gordura.
A mão na barriga não mente, não engana. Por ser invasiva, denuncia promessa de intimidade. Se ele está casado, expõe igualmente clara intenção de roubo
É diferente de qualquer aproximação, da amistosa mão no ombro, própria de amigo, ou da inofensiva mãos nas costas, característica do respeito, ou ainda da mão no peito, exclusividade dos apaixonados, quando existe uma concordância de mostrar contos de fadas para as redes sociais.
A barriga do homem é seu ponto mais frágil, onde guarda as suas noitadas e vida boêmia.
Quando a mulher põe os dedos sobre o ventre masculino vai avisando que acabou a cervejada, as saídas sem fim com os amigos, a churrascada orgiástica. Ela censura o futuro com um único gesto. E, ao mesmo tempo, naquele aceno despretensioso no volume do corpo, entrega a sua esperança de gestação, de ser mãe, de formar família.
A mão na barriga é um ato falho. Talvez ela nem tenha premeditado o toque, pois foi sem querer querendo. O que importa é que não há erro no prognóstico, ela demarcou território para a posteridade.
Pode olhar as primeiras fotos de seu namoro. Veja se não existe a profética mão na barriga.
Publicado em UOL em 03/11/2017
Revela suas segundas intenções, quando numa foto, desliza a mão para a barriga do homem. Ela está dizendo que deseja ficar com ele. É mais do que um convite, trata-se de uma imposição.
Colocar a mão ali é fatal: significa que está interessada, e gostaria que ele fosse seu.
A mão na barriga desenha relacionamento sério, invoca os santos a baterem cabeça. É altamente perigosa e pornográfica.
De repente, é o primeiro contato da figura feminina e já finca de saída a bandeira dos dedos no umbigo. Crava a flâmula da dominação no Everest da gordura.
A mão na barriga não mente, não engana. Por ser invasiva, denuncia promessa de intimidade. Se ele está casado, expõe igualmente clara intenção de roubo
É diferente de qualquer aproximação, da amistosa mão no ombro, própria de amigo, ou da inofensiva mãos nas costas, característica do respeito, ou ainda da mão no peito, exclusividade dos apaixonados, quando existe uma concordância de mostrar contos de fadas para as redes sociais.
A barriga do homem é seu ponto mais frágil, onde guarda as suas noitadas e vida boêmia.
Quando a mulher põe os dedos sobre o ventre masculino vai avisando que acabou a cervejada, as saídas sem fim com os amigos, a churrascada orgiástica. Ela censura o futuro com um único gesto. E, ao mesmo tempo, naquele aceno despretensioso no volume do corpo, entrega a sua esperança de gestação, de ser mãe, de formar família.
A mão na barriga é um ato falho. Talvez ela nem tenha premeditado o toque, pois foi sem querer querendo. O que importa é que não há erro no prognóstico, ela demarcou território para a posteridade.
Pode olhar as primeiras fotos de seu namoro. Veja se não existe a profética mão na barriga.
Publicado em UOL em 03/11/2017
ALGEMADOS PARA A ETERNIDADE
Você talvez não tenha observado.
Seu pai velhinho e a sua mãe velhinha andam com as mãos nas costas. As mãos em concha nas costas. As mãos entrelaçadas na espinha dorsal.
É para manter a postura ereta. Não permitir o ombro vergar com os passos. Eles ficam com um terço imaginário dedilhando os nós dos dedos enquanto caminham. Alguns roçam a aliança grossa, outros se divertem com a textura dos calos.
Atingiram um ponto da existência em que passeiam sempre com os braços para trás, como uma alavanca, eles mesmo se empurrando para frente.
Meus olhos umedecem, meus olhos são copos d’água quando os vejo. Pois meu pai velhinho e minha mãe velhinha se algemaram para a eternidade. Prenderam-se a Deus. Já se entregaram para os seus limites, aceitaram as fronteiras do corpo.
De modo voluntário, perdoaram os desafetos e confessaram a sua honestidade - não são só os crimes que devem ser confessados
Depuseram as armas e a violência dos gestos, apaziguados com a soma de sucessos e de fracassos.
Não se debatem contra a vida, não correm pela ansiedade de ser feliz, não se protegem com os punhos.
Eles estão fartos de brigas e empurrões, não apontam o dedo na cara de ninguém. Andam sem escudo, com o peito de pombos estufados, abertos, sem necessidade de voar para algum lugar.
Publicado em O Globo em 02/11/2017
Seu pai velhinho e a sua mãe velhinha andam com as mãos nas costas. As mãos em concha nas costas. As mãos entrelaçadas na espinha dorsal.
É para manter a postura ereta. Não permitir o ombro vergar com os passos. Eles ficam com um terço imaginário dedilhando os nós dos dedos enquanto caminham. Alguns roçam a aliança grossa, outros se divertem com a textura dos calos.
Atingiram um ponto da existência em que passeiam sempre com os braços para trás, como uma alavanca, eles mesmo se empurrando para frente.
Meus olhos umedecem, meus olhos são copos d’água quando os vejo. Pois meu pai velhinho e minha mãe velhinha se algemaram para a eternidade. Prenderam-se a Deus. Já se entregaram para os seus limites, aceitaram as fronteiras do corpo.
De modo voluntário, perdoaram os desafetos e confessaram a sua honestidade - não são só os crimes que devem ser confessados
Depuseram as armas e a violência dos gestos, apaziguados com a soma de sucessos e de fracassos.
Não se debatem contra a vida, não correm pela ansiedade de ser feliz, não se protegem com os punhos.
Eles estão fartos de brigas e empurrões, não apontam o dedo na cara de ninguém. Andam sem escudo, com o peito de pombos estufados, abertos, sem necessidade de voar para algum lugar.
Publicado em O Globo em 02/11/2017
MEU CARRO É ÍMÃ DE CHUVAS
Há simpatias que funcionam perfeitamente. Pena que ao contrário. Sempre que lavo o carro, chove. Confiro a previsão no celular e não dizia nada de temporal. Prometia sol e estabilidade. É deixar o veículo na lavagem que as nuvens começam a se amontoar e o céu escurecer.
É uma queda d’água repentina, não é nem educada a ponto de mandar relâmpagos para me dissuadir do capricho.
Não encontro formas de prevenção. Ao sair de casa, predominava a ordem solar de cartão-postal, é impossível se preparar.
Tampouco tenho com quem reclamar da propaganda enganosa. Resta-me bufar. Não consigo aproveitar a limpeza e o brilho por 24 horas. Não receberei elogio nenhum dos familiares. Não há como impressionar e se destacar na fileira empoeirada do estacionamento. Não gozo do bem-estar da lavanda. Os tapetes recém limpos já estarão emporcalhados dos sapatos das poças. A alegria dura menos que a vida de uma borboleta.
Logo que lavo o carro, entro na vala comum da lama. As folhas das árvores presas no para-brisa são ironias do meu desencanto. O carro se encontra mais sujo do que antes. A vontade é retornar para a garagem e pedir o dinheiro de volta. Só não faço porque o lavador não tem culpa, não vigora nenhuma condicional na promoção, não está escrito no cartaz “lavagem grátis de novo se chover no dia”, tudo acontece dentro da loucura de minha cabeça.
Já busquei me enganar: lavar o carro quando não é para lavar, ou aparecer de repente sem ter planejado. Ou solicitar que a minha mulher leve até lá. Mas não driblo a maldição. Vai acontecer igual querendo ou não querendo.
Chove e choverá quando entregar as chaves para o moço dos baldes e panos. Não sei por que não me candidato a meteorologista.
Publicado em Vida Breve em 1º/11/2017
É uma queda d’água repentina, não é nem educada a ponto de mandar relâmpagos para me dissuadir do capricho.
Não encontro formas de prevenção. Ao sair de casa, predominava a ordem solar de cartão-postal, é impossível se preparar.
Tampouco tenho com quem reclamar da propaganda enganosa. Resta-me bufar. Não consigo aproveitar a limpeza e o brilho por 24 horas. Não receberei elogio nenhum dos familiares. Não há como impressionar e se destacar na fileira empoeirada do estacionamento. Não gozo do bem-estar da lavanda. Os tapetes recém limpos já estarão emporcalhados dos sapatos das poças. A alegria dura menos que a vida de uma borboleta.
Logo que lavo o carro, entro na vala comum da lama. As folhas das árvores presas no para-brisa são ironias do meu desencanto. O carro se encontra mais sujo do que antes. A vontade é retornar para a garagem e pedir o dinheiro de volta. Só não faço porque o lavador não tem culpa, não vigora nenhuma condicional na promoção, não está escrito no cartaz “lavagem grátis de novo se chover no dia”, tudo acontece dentro da loucura de minha cabeça.
Já busquei me enganar: lavar o carro quando não é para lavar, ou aparecer de repente sem ter planejado. Ou solicitar que a minha mulher leve até lá. Mas não driblo a maldição. Vai acontecer igual querendo ou não querendo.
Chove e choverá quando entregar as chaves para o moço dos baldes e panos. Não sei por que não me candidato a meteorologista.
Publicado em Vida Breve em 1º/11/2017
A MAÇÃ DA VIRTUDE
Os avós preservavam uma sidra na estante, como um objeto de decoração em cima da televisão. Uma sidra fechada reservada para numa ocasião especial. Um troféu da intimidade que coroava a sala da residência em Guaporé (RS), despertando a curiosidade das visitas.
Não se tratava de nenhum champanhe chique, inacessível a quem vivia contando os trocados, mas uma garrafa honesta, simples, dada de presente por amigos e elevada ao céu das expectativas.
A vó sempre passava um paninho nela toda manhã enquanto encerava de lustra-móveis o resto da madeira. Existia no rótulo o desenho de uma maçã, espécie de único Apple da vida analógica do interior.
Cada dia poderia ser o dia ilustre da abertura da bebida. Não sei o que poderia desencadear a festa. Somente os avós guardavam os requisitos para a decisão.
Seria nascimento de mais um neto? Aposentadoria? Cura de uma doença familiar? Milagre econômico?
Eu, menino, esperava. Logo quando me acordava durante as minhas férias lá, verdadeiro Sítio do Pica-pau amarelo, corria para ver se os avós haviam feito a sua comemoração secreta.
Nada, nadinha, por vários verões. Ela resistiu em seu lugar de honra sem ter a rolha estourada. Não duvido que o produto já tinha passado da data de validade há muito tempo.
Atravessei uma esquisita melancolia pelo seu não aproveitamento. Parecia que meus avós nunca encontravam a felicidade para abrir a sidra. Não achavam um pretexto significativo. Eu vivia constrangido pela tristeza da rotina, distante de um sobressalto alegre para brindar os cálices.
Até que percebi, quando morreram, quando embrulhávamos os pertences dos dois em caixas de papelão, quando segurei o recipiente verde na mão para alisar o carpete das letras, já enrugado, que estava profundamente enganado. O sumo fermentado não precisava ser usado – o seu sentido residia em criar expectativa. Ele fornecia esperança, gerava futuro, conservava um algo a mais para a folhinha do calendário. Todo dia era feliz porque havia uma sidra na estante para ser aberta.
Eles não beberam o seu conteúdo, mas beberam a esperança até a última gota.
Publicado em Jornal Zero Hora em 31/10/2017
Não se tratava de nenhum champanhe chique, inacessível a quem vivia contando os trocados, mas uma garrafa honesta, simples, dada de presente por amigos e elevada ao céu das expectativas.
A vó sempre passava um paninho nela toda manhã enquanto encerava de lustra-móveis o resto da madeira. Existia no rótulo o desenho de uma maçã, espécie de único Apple da vida analógica do interior.
Cada dia poderia ser o dia ilustre da abertura da bebida. Não sei o que poderia desencadear a festa. Somente os avós guardavam os requisitos para a decisão.
Seria nascimento de mais um neto? Aposentadoria? Cura de uma doença familiar? Milagre econômico?
Eu, menino, esperava. Logo quando me acordava durante as minhas férias lá, verdadeiro Sítio do Pica-pau amarelo, corria para ver se os avós haviam feito a sua comemoração secreta.
Nada, nadinha, por vários verões. Ela resistiu em seu lugar de honra sem ter a rolha estourada. Não duvido que o produto já tinha passado da data de validade há muito tempo.
Atravessei uma esquisita melancolia pelo seu não aproveitamento. Parecia que meus avós nunca encontravam a felicidade para abrir a sidra. Não achavam um pretexto significativo. Eu vivia constrangido pela tristeza da rotina, distante de um sobressalto alegre para brindar os cálices.
Até que percebi, quando morreram, quando embrulhávamos os pertences dos dois em caixas de papelão, quando segurei o recipiente verde na mão para alisar o carpete das letras, já enrugado, que estava profundamente enganado. O sumo fermentado não precisava ser usado – o seu sentido residia em criar expectativa. Ele fornecia esperança, gerava futuro, conservava um algo a mais para a folhinha do calendário. Todo dia era feliz porque havia uma sidra na estante para ser aberta.
Eles não beberam o seu conteúdo, mas beberam a esperança até a última gota.
Publicado em Jornal Zero Hora em 31/10/2017
NENHUMA DESCULPA É INSTANTÂNEA
Quando você erra nunca tem tempo para se explicar. Sempre ficará de castigo.
Não existe retratação imediata, entenda isso, não há desculpa instantânea, não receberá o indulto no próximo minuto.
Nem conseguirá argumentar. Gaguejará as primeiras palavras de arrependimento, e o microfone do coração será cortado. A pessoa agredida com a falsidade não vai querer ouvir - baterá a porta, sairá de perto, virará as costas.
Ninguém aceita bem uma mentira desfeita ou uma lealdade quebrada. O pecado tem o seu preço, os seus juros e os seus números quebrados. Aquele que foi enganado precisa de tempo para absorver a notícia.
Quanto mais demorar em dizer a verdade mais estrago produzirá na confiança.
A ingenuidade é acreditar que não importa o que tenha feito de errado, o amor prevalecerá. Todo mundo que pede perdão comete a gafe de não imaginar a recusa e a raiva após a decepção. Todo mundo que pede perdão é romântico e se ferra. Desenha o melhor dos cenários e não cogita o cancelamento do show.
No relacionamento, o conserto depende da difícil reposição. Não é só chegar na oficina sentimental e aguardar a troca sumária das peças.
Talvez a convivência jamais seja a mesma, talvez a amizade jamais readquira a sua espontaneidade.
Voltar a confiar é uma das missões mais complicadas da vida, pois depende da benevolência da memória e da força de vontade.
Qualquer confissão implica em trabalho para reconquistar o outro. Passará uma semana inteira telefonando ou aparecendo de repente sem chance alguma de ser atendido. Desculpa se alcança com insistência.
Terá que gastar a fortuna de seus dias e de sua paciência. Dependendo da gravidade da falha, exigirá meses ou anos ou quem sabe nunca se concretize um retorno. Mas não tem como ser diferente, não tem como ser indiferente, não tem como seguir uma relação sem honestidade.
Publicado em Donna ZH em 29/10/2017
Não existe retratação imediata, entenda isso, não há desculpa instantânea, não receberá o indulto no próximo minuto.
Nem conseguirá argumentar. Gaguejará as primeiras palavras de arrependimento, e o microfone do coração será cortado. A pessoa agredida com a falsidade não vai querer ouvir - baterá a porta, sairá de perto, virará as costas.
Ninguém aceita bem uma mentira desfeita ou uma lealdade quebrada. O pecado tem o seu preço, os seus juros e os seus números quebrados. Aquele que foi enganado precisa de tempo para absorver a notícia.
Quanto mais demorar em dizer a verdade mais estrago produzirá na confiança.
A ingenuidade é acreditar que não importa o que tenha feito de errado, o amor prevalecerá. Todo mundo que pede perdão comete a gafe de não imaginar a recusa e a raiva após a decepção. Todo mundo que pede perdão é romântico e se ferra. Desenha o melhor dos cenários e não cogita o cancelamento do show.
No relacionamento, o conserto depende da difícil reposição. Não é só chegar na oficina sentimental e aguardar a troca sumária das peças.
Talvez a convivência jamais seja a mesma, talvez a amizade jamais readquira a sua espontaneidade.
Voltar a confiar é uma das missões mais complicadas da vida, pois depende da benevolência da memória e da força de vontade.
Qualquer confissão implica em trabalho para reconquistar o outro. Passará uma semana inteira telefonando ou aparecendo de repente sem chance alguma de ser atendido. Desculpa se alcança com insistência.
Terá que gastar a fortuna de seus dias e de sua paciência. Dependendo da gravidade da falha, exigirá meses ou anos ou quem sabe nunca se concretize um retorno. Mas não tem como ser diferente, não tem como ser indiferente, não tem como seguir uma relação sem honestidade.
Publicado em Donna ZH em 29/10/2017
A DITADURA DAS UNHAS
Que deixe uma semana sem fazer as unhas. Que se permita uma unha descolorida, uma unha gasta, uma unha desfeita, não há maior libertação do que participar de uma reunião com somente o coração da unha pintado e as bordas descascadas.
Que não se importe com o que o namorado pensa, com o julgamento do amor, com a cobrança da paixão. Peça primeiro para que ele arrume as cutículas das palavras e aja com educação e respeito.
Que não sofra com a obrigação da manicure semanal, a ponto de morrer pela aparência. A liberdade não é ansiosa. Não se escravize para agradar. Desligue a câmera dos outros em si.
Uma unha limpa e pura tem o seu valor, a sua sedução, a sua tranquilidade. Assim como os dentes, combinam com o guarda-roupa inteiro.
Não aceite a imposição de sempre cavar um horário a ponto de enlouquecer. Que o salão seja um prazer, que a bacia de água quente se faça em batismo. Não enxergue a poltrona como uma extrema unção, um deus-me-acuda, um senhor chefe me acusa.
A obrigação é machismo, achismo, controle. Que as mãos espalmadas não sirvam para algemas, e sim para o pássaro do pincel relaxar do voo e espalhar a tinta.
É inaceitável o jugo. A perfeição é pressão. Resista. Pule o calendário de vez em quando, salte a agenda ora e vez.
Qualquer pessoa riscará as unhas digitando, mexendo no celular, dirigindo o carro, escolhendo as chaves. Não é problema do esmalte, mas de mentalidade. Não volte para reparar, não entre em pânico para corrigir: abandone as cismas pelo improviso.
Não existe como se prevenir do acidente, da fricção, do contato. Mulheres não são bonecas para a exibição em caixa e plástico. Unhas desfeitas não correspondem a defeitos de fábrica. Cuspa as pilhas para fora das costas. Não se apequene para se mostrar impecável. Não se diminua para impressionar.
A naturalidade é afrodisíaca. Segure a felicidade com a ponta das unhas, sem medo de estragar.
Publicado em UOL em 27/10/2017
Que não se importe com o que o namorado pensa, com o julgamento do amor, com a cobrança da paixão. Peça primeiro para que ele arrume as cutículas das palavras e aja com educação e respeito.
Que não sofra com a obrigação da manicure semanal, a ponto de morrer pela aparência. A liberdade não é ansiosa. Não se escravize para agradar. Desligue a câmera dos outros em si.
Uma unha limpa e pura tem o seu valor, a sua sedução, a sua tranquilidade. Assim como os dentes, combinam com o guarda-roupa inteiro.
Não aceite a imposição de sempre cavar um horário a ponto de enlouquecer. Que o salão seja um prazer, que a bacia de água quente se faça em batismo. Não enxergue a poltrona como uma extrema unção, um deus-me-acuda, um senhor chefe me acusa.
A obrigação é machismo, achismo, controle. Que as mãos espalmadas não sirvam para algemas, e sim para o pássaro do pincel relaxar do voo e espalhar a tinta.
É inaceitável o jugo. A perfeição é pressão. Resista. Pule o calendário de vez em quando, salte a agenda ora e vez.
Qualquer pessoa riscará as unhas digitando, mexendo no celular, dirigindo o carro, escolhendo as chaves. Não é problema do esmalte, mas de mentalidade. Não volte para reparar, não entre em pânico para corrigir: abandone as cismas pelo improviso.
Não existe como se prevenir do acidente, da fricção, do contato. Mulheres não são bonecas para a exibição em caixa e plástico. Unhas desfeitas não correspondem a defeitos de fábrica. Cuspa as pilhas para fora das costas. Não se apequene para se mostrar impecável. Não se diminua para impressionar.
A naturalidade é afrodisíaca. Segure a felicidade com a ponta das unhas, sem medo de estragar.
Publicado em UOL em 27/10/2017
O HOMEM É O SEXO FRÁGIL
Durante almoço em uma cantina em Erechim, cidade gaúcha quase divisa com Santa Catarina, fui surpreendido pela entrada triunfal de um grupo de terceira idade. Mais de 150 mulheres felizes, ruidosas, dançantes. Dediquei um torcicolo para elas - mereciam. Tenho torcicolo a cada quatro anos, raro como uma Copa do Mundo, e pressenti que era o momento. Deveria aproveitar e girar a cabeça com força total para não perder nenhum dos movimentos daquele exército.
Elas desfrutavam de uma alegria fora do comum: desembaraçadas e sinceras nas gargalhadas. Não havia nenhum homem para atrapalhar. E não havia nem mesmo esperando em casa. Noventa por cento da comitiva era viúva. As meninas na faixa dos 70 a 90 anos estavam livres na pista de dança.
No começo, faziam piada de que mataram os seus maridos no cansaço, pouco a pouco. Os senhores foram incapazes de acompanhar a maratona amorosa.
- Tadinhos, exigíamos muito deles na subida e ficaram sem fôlego na descida.
Mas a comédia foi formando um estranho sentido. Elas provavam que a mulher é o sexo forte, e o homem é o sexo frágil. Derrubaram o preconceito com uma acachapante ilustração de vitalidade.
Os homens morrem cedo, é uma verdade absoluta. Os homens são fracos. Os homens não tem resistência. A força física é ilusória: não faz cócegas diante da força espiritual.
E veja só: homens de outras épocas, que não precisavam cuidar de casa, dos filhos, trabalhar ao mesmo tempo em que unificavam a família. Homens com a metade das obrigações femininas. Homens que não passaram por nenhuma gravidez em seu corpo, que não saíram à rua para garantir direito ao voto, igualdade em concursos públicos e salários equivalentes. Homens que não queimaram os sutiãs e não empreenderam revoluções culturais para o livre-arbítrio da mesa e da cama. Homens que não combaterem as leis e não asseguraram o divórcio. Homens que não experimentaram o desgosto da solidão e da incompreensão, homens que não enfrentaram o vexame de esconder as suas fantasias e economias da própria companhia. Homens que não passaram por nenhuma cobrança para se arrumar, para manter as unhas pintadas e a aparência impecável. Homens que não eram condenados a sorrir amarelo em público e chorar azul no quarto. Homens de aceitação social fácil e orgânica. Mesmo assim, com uma carga infinitamente menor de responsabilidade, sucumbiram antes.
Aquelas damas derrubaram todos os reis do xadrez. Aquelas damas comemoravam o casamento delas com elas mesmas. O casamento consigo. O casamento com a guerra. O casamento com a tenacidade. O casamento com a intimidade. Quem se conhece vive mais, vive o dobro, vive os sonhos para além da idade.
Publicado em O Globo em 26/10/2017
Elas desfrutavam de uma alegria fora do comum: desembaraçadas e sinceras nas gargalhadas. Não havia nenhum homem para atrapalhar. E não havia nem mesmo esperando em casa. Noventa por cento da comitiva era viúva. As meninas na faixa dos 70 a 90 anos estavam livres na pista de dança.
No começo, faziam piada de que mataram os seus maridos no cansaço, pouco a pouco. Os senhores foram incapazes de acompanhar a maratona amorosa.
- Tadinhos, exigíamos muito deles na subida e ficaram sem fôlego na descida.
Mas a comédia foi formando um estranho sentido. Elas provavam que a mulher é o sexo forte, e o homem é o sexo frágil. Derrubaram o preconceito com uma acachapante ilustração de vitalidade.
Os homens morrem cedo, é uma verdade absoluta. Os homens são fracos. Os homens não tem resistência. A força física é ilusória: não faz cócegas diante da força espiritual.
E veja só: homens de outras épocas, que não precisavam cuidar de casa, dos filhos, trabalhar ao mesmo tempo em que unificavam a família. Homens com a metade das obrigações femininas. Homens que não passaram por nenhuma gravidez em seu corpo, que não saíram à rua para garantir direito ao voto, igualdade em concursos públicos e salários equivalentes. Homens que não queimaram os sutiãs e não empreenderam revoluções culturais para o livre-arbítrio da mesa e da cama. Homens que não combaterem as leis e não asseguraram o divórcio. Homens que não experimentaram o desgosto da solidão e da incompreensão, homens que não enfrentaram o vexame de esconder as suas fantasias e economias da própria companhia. Homens que não passaram por nenhuma cobrança para se arrumar, para manter as unhas pintadas e a aparência impecável. Homens que não eram condenados a sorrir amarelo em público e chorar azul no quarto. Homens de aceitação social fácil e orgânica. Mesmo assim, com uma carga infinitamente menor de responsabilidade, sucumbiram antes.
Aquelas damas derrubaram todos os reis do xadrez. Aquelas damas comemoravam o casamento delas com elas mesmas. O casamento consigo. O casamento com a guerra. O casamento com a tenacidade. O casamento com a intimidade. Quem se conhece vive mais, vive o dobro, vive os sonhos para além da idade.
Publicado em O Globo em 26/10/2017
PRECONCEITO COM AS MÃES
Ainda existe o preconceito amoroso com as mulheres que têm filhos.
Quando elas saem para dançar e namorar, afinal estão solteiras, não encontram nenhuma dificuldade para encontrar parceiros. São cortejadas, cantadas, requisitadas. Experimentam uma noite feliz, talvez uma segunda noite feliz, há química de corpo e afinidade de pensamento, tudo sugere uma continuidade e relacionamento sério. Mas, estranhamente, é contar que são mães que os homens somem. Os homens desaparecem. Eles não evaporariam se elas confessassem que estavam casadas. A infidelidade não assusta, o que amedronta é a guarda da criança.
Filho é cruz para os vampiros. É assombração da aliança. Temem o compromisso, o enlace com uma família inteira, não somente com uma pessoa. Jamais confessam o problema, pois não querem parecer insensíveis. Só que deixam clara a restrição. Não contam com nenhum motivo para o desapego, já que se deram bem.
Perdura o engano grave de que a mulher não procura um homem para si, porém um pai para seu filho. De onde tiraram essa distorção? Não pararam para pensar que o filho já tem um pai e que um papel nada tem a ver com o outro?
As mulheres maternas são livres, desinibidas, autônomas, não dependem de proteção e mesada. Não se apresentam com segundas intenções.
Jamais vão dar cano ou oferecer desculpas furadas. Detêm a virtude da simultaneidade. Disciplinadas e organizadas, aproveitam o tempo livre com intensidade. Pois conciliam as agendas de si e da cria e valorizam as folgas.
Assim como é um falso estigma de que o filho incomodará o prazer e a aventura. Não ficará segurando vela. Nem pressionará com ciúme e colo. É uma lenda que criança atrapalha. O que mais ela deseja é a felicidade de sua mãe. Desde que a felicidade seja honesta, real e sem a presença avarenta de covardes.
Publicado em Vida Breve em 25/10/2017
Quando elas saem para dançar e namorar, afinal estão solteiras, não encontram nenhuma dificuldade para encontrar parceiros. São cortejadas, cantadas, requisitadas. Experimentam uma noite feliz, talvez uma segunda noite feliz, há química de corpo e afinidade de pensamento, tudo sugere uma continuidade e relacionamento sério. Mas, estranhamente, é contar que são mães que os homens somem. Os homens desaparecem. Eles não evaporariam se elas confessassem que estavam casadas. A infidelidade não assusta, o que amedronta é a guarda da criança.
Filho é cruz para os vampiros. É assombração da aliança. Temem o compromisso, o enlace com uma família inteira, não somente com uma pessoa. Jamais confessam o problema, pois não querem parecer insensíveis. Só que deixam clara a restrição. Não contam com nenhum motivo para o desapego, já que se deram bem.
Perdura o engano grave de que a mulher não procura um homem para si, porém um pai para seu filho. De onde tiraram essa distorção? Não pararam para pensar que o filho já tem um pai e que um papel nada tem a ver com o outro?
As mulheres maternas são livres, desinibidas, autônomas, não dependem de proteção e mesada. Não se apresentam com segundas intenções.
Jamais vão dar cano ou oferecer desculpas furadas. Detêm a virtude da simultaneidade. Disciplinadas e organizadas, aproveitam o tempo livre com intensidade. Pois conciliam as agendas de si e da cria e valorizam as folgas.
Assim como é um falso estigma de que o filho incomodará o prazer e a aventura. Não ficará segurando vela. Nem pressionará com ciúme e colo. É uma lenda que criança atrapalha. O que mais ela deseja é a felicidade de sua mãe. Desde que a felicidade seja honesta, real e sem a presença avarenta de covardes.
Publicado em Vida Breve em 25/10/2017
DOS OITO AOS 45 ANOS
Não tenho nada a reclamar de minha família. Eu fui protegido por todos eles: os pais, Carla, Rodrigo e Miguel, cada um cuidou de mim em uma fase da vida. Eles se revezavam em vigília, quando um terminava o turno, o outro assumia.
Não chegava a apresentar problemas mentais, mas tampouco parecia normal. Com dicção presa (cuspia na pronúncia de palavras mais longas), andar desengonçado e olhar parado, recebi escolta privilegiada desde cedo. Carla me arrumava, Rodrigo me traduzia, Miguel segurava a mão. Partia para a rua em comitiva.
Havia uma mobilização pela minha aceitação. Para me enturmar, a mãe preparou a festa de aniversário de oito anos aberta para a escola. Preparou convitinho de cisne para ser distribuído aos colegas.
A celebração representaria um salto em minha sociabilidade, a primeira festinha com os amigos. Durante duas semanas, o fogão não parou de madrugada, com preparação de doces, quitutes e salgados. Vivia um sonho, com a expectativa de gritarem o meu nome no "É BIG, É BIG. É HORA, É HORA. RÁ-TIM-BUM". Já antevia a cama ocupada de presentes, dormiria com eles ainda embrulhados, adivinhando o conteúdo pelo tato.
Só que a comemoração aconteceu num feriado e ninguém veio. Aguardei no portão de gravata-borboleta por duas horas. Como morava numa esquina, os passos que contornavam a rua provocavam aceleramento cardíaco. O susto não se cumpria em surpresa: sem a sorte de um abraço e de um riso cúmplice.
Quando entrei de volta para a residência, completamente arrasado, eu vi a minha mãe escondendo as suas lágrimas sentada na mesa da cozinha. Assim como ela sofria comigo, eu sofri por ela. Nosso maior abatimento é com a dor de quem amamos. A minha tristeza logo passou com a tristeza dela. Pois a tristeza dela era maior do que a minha e busquei consolá-la:
– Não há problema, mãe, a gente congela a torta e usa no ano que vem.
Hoje, completo 45 anos, e queria dar os parabéns para os meus pais e irmãos. Valeu o esforço, vocês conseguiram: eu me sinto amado.
Publicado em Jornal Zero Hora em 24/10/2017
Não chegava a apresentar problemas mentais, mas tampouco parecia normal. Com dicção presa (cuspia na pronúncia de palavras mais longas), andar desengonçado e olhar parado, recebi escolta privilegiada desde cedo. Carla me arrumava, Rodrigo me traduzia, Miguel segurava a mão. Partia para a rua em comitiva.
Havia uma mobilização pela minha aceitação. Para me enturmar, a mãe preparou a festa de aniversário de oito anos aberta para a escola. Preparou convitinho de cisne para ser distribuído aos colegas.
A celebração representaria um salto em minha sociabilidade, a primeira festinha com os amigos. Durante duas semanas, o fogão não parou de madrugada, com preparação de doces, quitutes e salgados. Vivia um sonho, com a expectativa de gritarem o meu nome no "É BIG, É BIG. É HORA, É HORA. RÁ-TIM-BUM". Já antevia a cama ocupada de presentes, dormiria com eles ainda embrulhados, adivinhando o conteúdo pelo tato.
Só que a comemoração aconteceu num feriado e ninguém veio. Aguardei no portão de gravata-borboleta por duas horas. Como morava numa esquina, os passos que contornavam a rua provocavam aceleramento cardíaco. O susto não se cumpria em surpresa: sem a sorte de um abraço e de um riso cúmplice.
Quando entrei de volta para a residência, completamente arrasado, eu vi a minha mãe escondendo as suas lágrimas sentada na mesa da cozinha. Assim como ela sofria comigo, eu sofri por ela. Nosso maior abatimento é com a dor de quem amamos. A minha tristeza logo passou com a tristeza dela. Pois a tristeza dela era maior do que a minha e busquei consolá-la:
– Não há problema, mãe, a gente congela a torta e usa no ano que vem.
Hoje, completo 45 anos, e queria dar os parabéns para os meus pais e irmãos. Valeu o esforço, vocês conseguiram: eu me sinto amado.
Publicado em Jornal Zero Hora em 24/10/2017
VOCÊ É UMA ABELHA OU UMA MOSCA DO AMOR?
Você pode ser uma abelha ou uma mosca no relacionamento.
A abelha busca o pólen, prepara longamente o mel do seu esforço, articula as asas em nome da colmeia, chega a esquecer de si pela alvoroço da família, tem a euforia de passear acompanhada, não protesta pela casa e alma cheias. Mesmo quando a vida não ajuda, trabalha a esperança. Não entrou num romance para esperar algo, mas para fazer. Não reclama à toa, partilha os seus dilemas procurando uma solução. A dúvida a inspira a perseguir novos jardins e explorar outras paisagens.
Por sua vez, a mosca namora ou casa já pensando no divórcio, já receosa do fracasso, já aguardando a confirmação de seus medos. Sempre tem razão, sempre replica expectativas desagradáveis. Quer provar que o seu par não presta, ainda que tenha que se privar da própria felicidade.
Ela sobrevoa sobras mortas e fica catando implicâncias superadas. Adota o ciúme para desqualificar, emprega a competição para constranger. Não avalia a sua alegria por aquilo que pode oferecer, mas por aquilo que pode receber. Não vai adiante nas adversidades, para no ar, fixa-se no passado. Revela o pior de sua companhia, desmerecendo os elogios e omitindo os avanços. O
olhar é songamonga, jamais se contentando com pequenas (e sublimes) demonstrações de apreço. Não cria o seu espaço, aproveita-se da personalidade alheia. Suga apenas a realidade de suas projeções, pois nenhuma mosca é capaz de morder ou mastigar os problemas. Acha que o outro não precisa de nada, não valoriza a intimidade, jura que as discussões serão resolvidas automaticamente sem contrapartida de atitude.
A mosca finge que está tudo bem quando está mal, finge que está mal quando está tudo bem, não enfrenta a verdade, conversa fatiado realizando muitas coisas paralelamente, isenta-se pela pressa dizendo que não é a melhor hora para mudar (nunca é a melhor hora), não coloca a sua companhia como prioridade, deixa o telefone tocar quando vê o nome, não retorna a ligação de imediato, conserva uma atenção dispersiva, arruma pretextos para não se mexer, não pede desculpa porque não acredita no parceiro, subestima qualquer reivindicação por ternura (considera tudo um drama), não agradece a vigília do respeito, não retorna gentilezas, não se prontifica a favores, descuida das preocupações fora do seu universo, quando fala fala somente de si, não se interessa com o que pode ser feito a dois, não percebe cenas românticas e roupas sensuais, arma-se de uma pendência no trabalho ou um assunto mais importante a resolver para manter a confortável inércia.
A mosca é egoísta, a abelha é solidária. A mosca é do contra, a abelha é a favor. A mosca é conformada, a abelha é curiosa. A mosca provoca enterros, a abelha apressa renascimentos. A mosca revira o lixo das contradições, a abelha organiza o caos e separa o útil do fútil. A mosca incomoda, a abelha incentiva. A mosca não defende ninguém, a abelha possui a ferroada para proteger quem ama. A mosca abandona, a abelha carrega.
Ambas voam. Mas só a abelha sobe alto no amor.
Publicado em Donna ZH em 22/10/2017
A abelha busca o pólen, prepara longamente o mel do seu esforço, articula as asas em nome da colmeia, chega a esquecer de si pela alvoroço da família, tem a euforia de passear acompanhada, não protesta pela casa e alma cheias. Mesmo quando a vida não ajuda, trabalha a esperança. Não entrou num romance para esperar algo, mas para fazer. Não reclama à toa, partilha os seus dilemas procurando uma solução. A dúvida a inspira a perseguir novos jardins e explorar outras paisagens.
Por sua vez, a mosca namora ou casa já pensando no divórcio, já receosa do fracasso, já aguardando a confirmação de seus medos. Sempre tem razão, sempre replica expectativas desagradáveis. Quer provar que o seu par não presta, ainda que tenha que se privar da própria felicidade.
Ela sobrevoa sobras mortas e fica catando implicâncias superadas. Adota o ciúme para desqualificar, emprega a competição para constranger. Não avalia a sua alegria por aquilo que pode oferecer, mas por aquilo que pode receber. Não vai adiante nas adversidades, para no ar, fixa-se no passado. Revela o pior de sua companhia, desmerecendo os elogios e omitindo os avanços. O
olhar é songamonga, jamais se contentando com pequenas (e sublimes) demonstrações de apreço. Não cria o seu espaço, aproveita-se da personalidade alheia. Suga apenas a realidade de suas projeções, pois nenhuma mosca é capaz de morder ou mastigar os problemas. Acha que o outro não precisa de nada, não valoriza a intimidade, jura que as discussões serão resolvidas automaticamente sem contrapartida de atitude.
A mosca finge que está tudo bem quando está mal, finge que está mal quando está tudo bem, não enfrenta a verdade, conversa fatiado realizando muitas coisas paralelamente, isenta-se pela pressa dizendo que não é a melhor hora para mudar (nunca é a melhor hora), não coloca a sua companhia como prioridade, deixa o telefone tocar quando vê o nome, não retorna a ligação de imediato, conserva uma atenção dispersiva, arruma pretextos para não se mexer, não pede desculpa porque não acredita no parceiro, subestima qualquer reivindicação por ternura (considera tudo um drama), não agradece a vigília do respeito, não retorna gentilezas, não se prontifica a favores, descuida das preocupações fora do seu universo, quando fala fala somente de si, não se interessa com o que pode ser feito a dois, não percebe cenas românticas e roupas sensuais, arma-se de uma pendência no trabalho ou um assunto mais importante a resolver para manter a confortável inércia.
A mosca é egoísta, a abelha é solidária. A mosca é do contra, a abelha é a favor. A mosca é conformada, a abelha é curiosa. A mosca provoca enterros, a abelha apressa renascimentos. A mosca revira o lixo das contradições, a abelha organiza o caos e separa o útil do fútil. A mosca incomoda, a abelha incentiva. A mosca não defende ninguém, a abelha possui a ferroada para proteger quem ama. A mosca abandona, a abelha carrega.
Ambas voam. Mas só a abelha sobe alto no amor.
Publicado em Donna ZH em 22/10/2017
NÃO ERA SOMENTE UM DESODORANTE VENCIDO
Bullying não é brincadeira. Bullying não é mimimi.
A chacina de Goiânia é um alerta político. Um adolescente de 14 anos, vítima frequente das ofensas de sua turma, roubou a pistola dos pais policiais militares e matou dois colegas e feriu outros quatro dentro do Colégio Goyases na manhã dessa sexta (20/10). Era uma vingança pelas humilhações suportadas em silêncio ao longo do ano letivo. Ele vinha sendo hostilizado de fedorento e chegou a receber até um desodorante como inesperado, pungente e irônico presente.
Não tem como justificar o crime, nem perdoá-lo. Mas é o momento de refletir sobre o quanto subestimamos a violência escolar. O bullying hoje está muito mais agressivo do que duas décadas atrás, pois envolve também perseguição e segregação digital. Os desaforos não terminam na escola, seguem pelo dia adentro na web. O sinal do fim da aula não interrompe o medo.
A tortura psicológica não encontra pausa, com troças infinitas pelos contatos no WhatsApp. O estudante esculhambado não vê para onde fugir, pois a sua página no Facebook também é invadida por comentários ofensivos e insinuações violentas.
Quem diz que bullying sempre existiu e que a preocupação com apelidos é uma frescura não acompanha a trolagem nas redes sociais.
Bullying é saúde mental, é saúde pública. Ao cuidar dele, preventivamente, em campanhas nas escolas, estaremos economizando lá adiante com internações e medicação nos hospitais.
Bullying não é exagero, não é drama, não é piada inofensiva, não é implicância natural.
Quantos adolescentes, sem saída para a angústia, em vez de revidar os ataques, cometem suicídio? E nunca ficamos sabendo. São engolidos pela solidão, levando consigo os segredos malditos e perversos da convivência.
O adolescente é uma bomba-relógio porque sente a vida com o dobro de intensidade dos adultos. Ele ama e odeia ao mesmo tempo, está permanentemente à flor da pele, caminhando do tudo para o nada, do nada para o tudo. Alterna extremos de alegria e de raiva em pouquíssimos minutos.
O corpo está mudando, a voz está mudando, ele não reconhece mais a si e depende da aprovação externa de seus amigos para assumir a identidade. Se não é aceito nos grupos sociais, se não é aprovado, ele se convencerá de que é um monstro, entenderá que crescer é uma metamorfose do mal.
Ele também não tem nenhuma reserva emocional: perdeu a proteção e a segurança da infância. Não caminha mais de mãos dadas com os pais, não recebe colo, não cura as discussões com abraços, não se desculpa com beijo. Não acontecerá o contato da pele para reaver os vínculos. É somente cobrado sem os prêmios do afeto e do conforto de quando era pequeno. No fundo, encontra-se sozinho pela primeira vez no mundo. Pretende se mostrar independente, porém é carente e sedento de reconhecimento.
O adolescente é órfão de suas perguntas e aflições. Tranca o quarto e chaveia o coração.
Ele merece um cuidado especial. Não se abrirá com facilidade. Não comunicará o seu sofrimento. O costume é engolir o pedido de socorro. Talvez tente emplacar uma conversa séria uma única vez, mas, se fracassar, não voltará a tocar no assunto. Mergulhará de novo para a educação fingida e respostas monossilábicas.
O adolescente não dá segunda chance para a confissão. Ou os pais e educadores permanecem atentos aos sinais ou ele irá explodir secretamente contra si ou contra todos.
A recuperação exige a confiança rarefeita do desabafo. Porque a dor, quando guardada, aumenta. Já a dor, quando partilhada, diminui - quem consegue falar descobre que a sua dor não é exclusiva e que muitos sofrem parecido.
Bullying destrói personalidades fortes, desmancha temperamentos firmes. Sua maior maldade é transformar a ferida em alegria, as privações em palhaçadas. As risadas machucam. Apanha-se de risadas. Pessoas se divertem às custas do constrangimento de alguém. De sinônimo do bem, a gargalhada é convertida em veneno.
O que nos resta a fazer é mudar o nosso entendimento de coragem. Coragem não é sofrer sozinho, é pedir ajuda.
Publicado em 21/10/2017
A chacina de Goiânia é um alerta político. Um adolescente de 14 anos, vítima frequente das ofensas de sua turma, roubou a pistola dos pais policiais militares e matou dois colegas e feriu outros quatro dentro do Colégio Goyases na manhã dessa sexta (20/10). Era uma vingança pelas humilhações suportadas em silêncio ao longo do ano letivo. Ele vinha sendo hostilizado de fedorento e chegou a receber até um desodorante como inesperado, pungente e irônico presente.
Não tem como justificar o crime, nem perdoá-lo. Mas é o momento de refletir sobre o quanto subestimamos a violência escolar. O bullying hoje está muito mais agressivo do que duas décadas atrás, pois envolve também perseguição e segregação digital. Os desaforos não terminam na escola, seguem pelo dia adentro na web. O sinal do fim da aula não interrompe o medo.
A tortura psicológica não encontra pausa, com troças infinitas pelos contatos no WhatsApp. O estudante esculhambado não vê para onde fugir, pois a sua página no Facebook também é invadida por comentários ofensivos e insinuações violentas.
Quem diz que bullying sempre existiu e que a preocupação com apelidos é uma frescura não acompanha a trolagem nas redes sociais.
Bullying é saúde mental, é saúde pública. Ao cuidar dele, preventivamente, em campanhas nas escolas, estaremos economizando lá adiante com internações e medicação nos hospitais.
Bullying não é exagero, não é drama, não é piada inofensiva, não é implicância natural.
Quantos adolescentes, sem saída para a angústia, em vez de revidar os ataques, cometem suicídio? E nunca ficamos sabendo. São engolidos pela solidão, levando consigo os segredos malditos e perversos da convivência.
O adolescente é uma bomba-relógio porque sente a vida com o dobro de intensidade dos adultos. Ele ama e odeia ao mesmo tempo, está permanentemente à flor da pele, caminhando do tudo para o nada, do nada para o tudo. Alterna extremos de alegria e de raiva em pouquíssimos minutos.
O corpo está mudando, a voz está mudando, ele não reconhece mais a si e depende da aprovação externa de seus amigos para assumir a identidade. Se não é aceito nos grupos sociais, se não é aprovado, ele se convencerá de que é um monstro, entenderá que crescer é uma metamorfose do mal.
Ele também não tem nenhuma reserva emocional: perdeu a proteção e a segurança da infância. Não caminha mais de mãos dadas com os pais, não recebe colo, não cura as discussões com abraços, não se desculpa com beijo. Não acontecerá o contato da pele para reaver os vínculos. É somente cobrado sem os prêmios do afeto e do conforto de quando era pequeno. No fundo, encontra-se sozinho pela primeira vez no mundo. Pretende se mostrar independente, porém é carente e sedento de reconhecimento.
O adolescente é órfão de suas perguntas e aflições. Tranca o quarto e chaveia o coração.
Ele merece um cuidado especial. Não se abrirá com facilidade. Não comunicará o seu sofrimento. O costume é engolir o pedido de socorro. Talvez tente emplacar uma conversa séria uma única vez, mas, se fracassar, não voltará a tocar no assunto. Mergulhará de novo para a educação fingida e respostas monossilábicas.
O adolescente não dá segunda chance para a confissão. Ou os pais e educadores permanecem atentos aos sinais ou ele irá explodir secretamente contra si ou contra todos.
A recuperação exige a confiança rarefeita do desabafo. Porque a dor, quando guardada, aumenta. Já a dor, quando partilhada, diminui - quem consegue falar descobre que a sua dor não é exclusiva e que muitos sofrem parecido.
Bullying destrói personalidades fortes, desmancha temperamentos firmes. Sua maior maldade é transformar a ferida em alegria, as privações em palhaçadas. As risadas machucam. Apanha-se de risadas. Pessoas se divertem às custas do constrangimento de alguém. De sinônimo do bem, a gargalhada é convertida em veneno.
O que nos resta a fazer é mudar o nosso entendimento de coragem. Coragem não é sofrer sozinho, é pedir ajuda.
Publicado em 21/10/2017
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