segunda-feira, 25 de março de 2019

O PAPEL MAIS DIFÍCIL NA FAMÍLIA

O amor de madrasta e de padrasto é um amor elevado, um amor puramente desinteressado. Eles não têm o benefício da relação automática, do laço do sangue, precisam construir com o enteado uma amizade do zero, em que o conselho depende da doçura e da pontualidade para não agredir e não soar como censura.

Chegam como um atentado na vida da criança, novatos num espaço de segurança, previsibilidade e intimidade já estabelecido da família.

São corajosos, pois alimentam uma relação desprovida de garantia e estabilidade. Enfrentam os rótulos e o preconceito por ocupar, no imaginário da infância, o lugar natural da mãe ou do pai. Provam o seu valor e adquirem credibilidade pouco a pouco. Só a constância da lealdade é que consolidará a influência.

Demonstram, na prática, que não vieram substituir ninguém, mas somar amizades e pontos de vista. Surpreendem com uma ternura desobrigada, uma atenção gratuita, uma dedicação sem a recompensa de abraços e beijos fáceis.

Talvez não recebam cartãozinho no dia das mães e dos pais, talvez não sejam chamados para as festas da escola, talvez não estejam representados nos desenhos infantis, talvez tenham que superar a carência e entender que as vitórias são secretas e parciais.

Andam no trapézio das emoções, evitando sofrer a desqualificação em qualquer embate: “Você não é meu pai”, “Você não é minha mãe”.

Não podem despertar a inveja e a concorrência sendo bons demais, nem a preocupação sendo indiferentes. Não podem dar bronca no momento de raiva nem devem ser tolerantes em excesso na alegria.

É como se fossem estrangeiros na dinâmica das cobranças e deveres. Recorrem à tradução simultânea do marido ou da esposa, para repassar os seus ensinamentos.

Armados na paciência, amando a paciência, jamais invadem a privacidade, ficam na porta esperando um convite para entrar na sensibilidade dos pequenos.

Enquanto os pais são cachorros, abertos aos pulos e colos, a madrasta e o padrasto são gatos, vigiando de longe, estudando cada situação.

Não há papel mais difícil dentro de casa. Encarnam o equilíbrio. Medirão as palavras e o tamanho do silêncio. Vão se apaixonar por uma pessoa que possivelmente não será para sempre.

Mas o amor é para sempre quando o coração se mostra um duradouro ventre.

Publicado em Jornal Zero Hora em 24/7/2018

LUTAR POR AQUILO QUE VALE A PENA

Você briga com o seu marido ou esposa por quais motivos? Por ciúme? Por sair ou não sair com amigos? Por falta de atenção? Por não ter aquilo que sonhava? Pelo futebol da semana? Pela intrusão da sogra em sua história?

Casais se desentendem por bobagens. Podem se distanciar por trivialidades. Amam-se, mas ocupam a maior parte da rotina se diminuindo e pressionando o parceiro ou parceira a adotar as atitudes desejadas. A companhia é obrigada a entrar forçosamente numa forma. É como um pé 40 precisando calçar 38.

Se ele é mais silencioso, deve ser mais sociável. Se ela é explosiva, deve se controlar mais. Se ele é desorganizado, deve guardar as suas roupas. Se ela é meticulosa, deve aguentar a pia suja no final de semana. As exigências absurdas não têm fim. Parece que a relação só desfruta de sentido mudando o par, indo contra a natureza do par.

Inventam problemas, criam obstáculos, não há motivos para os conflitos. Não enfrentaram nenhuma grande dor para entender o que é sofrer de verdade. Não perderam um filho, não estão com uma doença terminal, não têm os dias contados, não entraram em depressão, não sacrificaram os cabelos na quimioterapia, não arcaram com o luto dos pais.

São crianças mimadas, que não brincam com aquilo que são, que teimam em cobiçar e possuir o brinquedo de seu coleguinha.

Há de se fazer a pergunta: qual o inimigo do seu amor? Se não existe inimigo real e perigoso, que não gaste o tempo com picuinhas. Se não existe nada que possa separá-los, que aproveite a intimidade, que explore a felicidade do momento. Que não estrague a saúde com estremecimentos desnecessários. Que não forje separações à toa. Que não chantageie por fantasias. Que se preparem para lutar juntos contra as adversidades quando surgirem, jamais desperdicem o dom da união lutando um contra o outro antes das provações da vida.

Esquecem que encontrar alguém que se goste, que desperte a taquicardia, que provoque a saudade, capaz de partilhar afinidades e memórias inimagináveis, é raro, um milagre na loteria da multidão.

Não há nada mais triste do que se separar sem motivo. É prova de absoluto egoísmo com a sorte do amor.

Crônica publicada em 23/7/2018

A DOR NOS TRANSFORMA EM CRIANÇAS

Ninguém sofre com maturidade. Sofrer é se tornar novamente uma criança.

É ansiar pela ajuda de um adulto mesmo sendo um adulto. Você dependerá de colo e de um apoio, de alguém para ouvir e justificar as suas dificuldades, de alguém para inspirar e motivar a ter resistência. Alguém por perto para não se ver tão desamparado pela inércia. Alguém para acender e apagar as luzes da casa. Alguém para controlar os horários dos remédios. Alguém para espiar o seu sono e levantar as cobertas caídas pelo seu movimento.

Temos que pedir socorro quando sofremos - esse é o segredo da vida. Não achar que é necessário ser forte e invencível.

Resolver tudo isolado é se piorar, pois não existe como entender a gravidade do que está acontecendo e identificar os próprios avanços e recuos.

Não há independência penando, só cama e escuro.

A debilidade é traiçoeira e mexe com o controle dos pensamentos.

Seremos mentalmente menores de idade. O cansaço assusta e traz angústia, fecha as portas das lembranças, cria labirintos, chama o Minotauro por engano. Os medos de pequeno vêm nos assombrar, os pesadelos vêm roubar o nosso suor de madrugada.

Estar solitário sofrendo é ser um menino trancado no apartamento sem nenhum responsável, é ser uma menina aguardando na janela o retorno da família.

A dor tem dentro de si a solidão da infância. É uma hipnose regressiva. Retornamos a uma fase em que não sabíamos nos proteger.

Tanto faz a consternação física ou emocional, não importa que seja uma separação ou uma dor de dente ou uma doença ou a morte de um afeto.

Fica-se prostrado, saudoso dos carinhos e da vigília.

O sofrimento não tem pai nem mãe. O sofrimento é órfão. Não queira ser maior do que ele, porque vai engoli-lo usando os seus traumas e fraquezas.

Telefone a um amigo ou parente e apenas diga "Não estou bem, pode me cuidar?". A humildade é saúde.

Publicado em Donna ZH em 22/7/2018

AMOR FELIZ

Amor feliz é como água do mar que você pode ver os seus pés.

Amor feliz é quando você não esconde nada. Nenhuma tristeza, nenhuma alegria, nenhuma mensagem, nenhum pensamento. Você não tem vergonha de algo que possa ser encontrado, algo que fez, algo que aconteceu. Não mantém flertes para o futuro, não é infiel em segredo, não fica olhando toda saia como se fosse solteiro, não cobiça corpos e lugares. Não usa mentiras para se proteger, não omite para tirar vantagem, não há afrodisíaco em enganar e ser mais esperto, não disputa para ser mais inteligente e mais esclarecido, não pretende se sobressair, não se elogia para diminuir a sua companhia, não reclama para constranger, não transa para se exibir e dizer que o outro não aguenta o seu ritmo.

Você é de manhã aquilo que é de tarde aquilo que é de noite. Igualzinho, transparente como a água do mar.

Amor feliz não é quando você deita no travesseiro com a consciência tranquila, é quando a sua esposa deita em seu peito em paz e adormece. Significa que ela confia em você. Nenhuma mulher deita no peito de um homem sem confiar.

Aquele peito que já foi almofada de filho, muralha de lágrimas de amigos, encosto repentino de irmãos, torna-se destino definitivo de alguém.

Você não deita em meu peito, Beatriz, você mora em meu peito, com os cabelos loiros espalhados como se estivesse boiando ao sol.

Você não deita em meu peito para fazer charme, para indicar afeto e conforto. Eu sei que gosta mesmo. Demonstra uma vontade de morrer assim.

Eu não me mexo, orgulhoso, guardião de seu sono. É respirar baixinho para não acordá-la. É seguir imóvel durante horas, sem me virar, pelo prazer de ser escolhido.

Quando ela desperta do encantamento, me pergunta se está me machucando. E respondo que só me machuca quando não está por perto.

Amor feliz é isso.

Crônica publicada em 21/7/2018

FELIZ DIA DO AMIGO

Os amigos não precisam estar ao lado para justificar a lealdade. Mandar relatórios do que estão fazendo para mostrar preocupação.

Os amigos são para toda a vida, ainda que não estejam conosco a vida inteira.

Temos o costume de confundir amizade com onipresença e exigimos que as pessoas estejam sempre por perto, de plantão.

Amizade não é dependência, submissão. Não se têm amigos para concordar na íntegra, mas para revisar os rascunhos e duvidar da letra.

É independência, é respeito, é pedir uma opinião que não seja igual, uma experiência diferente.

Se o amigo desaparece por semanas, imediatamente se conclui que ele ficou chateado por alguma coisa. Diante de ausências mais longas e severas, cobramos telefonemas e visitas. E já se está falando mal dele por falta de notícias. Logo dele que nunca fez nada de errado!

O que é mais importante: a proximidade física ou afetiva? A proximidade física nem sempre é afetiva.

Amigo pode ser um álibi ou cúmplice ou um bajulador ou um oportunista, ambicionando interesses que não o da simples troca e convívio.

Amigo mesmo demora a ser descoberto.

É a permanência de seus conselhos e apoio que dirão de sua perenidade.

Amigo mesmo modifica a nossa história, chega a nos combater pela verdade e discernimento, supera condicionamentos e conluios.

São capazes de brigar com a gente pelo nosso bem-estar.

Assim como há os amigos imaginários da infância, há os amigos invisíveis na maturidade.

Aqueles que não estão perto podem estar dentro.

Tenho amigos que nunca mais vi, que nunca mais recebi novidades e os valorizo com o frescor de um encontro recente.

Não vou mentir a eles “vamos nos ligar?” num esbarrão de rua.

Muito menos dar desculpas esfarrapadas ao distanciamento.

Eles me ajudaram e não necessitam atualizar o cadastro para que sejam lembrados. Ou passar em casa todo o final de semana e me convidar para ser padrinho de casamento, dos filhos, dos netos, dos bisnetos.

Caso encontrá-los, haverá a empatia da primeira vez, a empatia da última vez, a empatia incessante de identificação.

Amigos me salvaram da fossa, amigos me salvaram das drogas, amigos me salvaram da inveja, amigos me salvaram da precipitação, amigos me salvaram das brigas, amigos me salvaram de mim.

Os amigos são próprios de fases: da rua, do Ensino Fundamental, do Ensino Médio, da faculdade, do futebol, da poesia, do emprego, da dança, dos cursos de inglês, da capoeira, da academia, do blog. Significativos em cada etapa de formação.

Não estão em nossa frente diariamente, mas estão em nossa personalidade, determinando, de modo imperceptível, as nossas atitudes.

Quantas juras foram feitas em bares a amigos, bêbados e trôpegos?

Amigo é o que fica depois da ressaca. É glicose no sangue. A serenidade.

Crônica publicada em 20/7/2018

OS SAPATOS DE MEU PAI

Em algum instante de sua vida, você precisa tirar os sapatos de seu pai.

E colocá-lo a dormir.

Você mudará a sua perspectiva de filho e será um pouco pai de seu pai. Há uma humildade que atinge os pensamentos no ato de se agachar, desamarrar os sapatos e encontrar uma fresta no calcanhar para tirá-los. Preste atenção: aqueles minutos são eternos, seguem uma duração emocional incomparável. Lembrará de quantas vezes ele lhe fez isso, sem que você pudesse antever o esforço de convencer alguém cansado a lhe desfazer de suas roupas.

Aquele marmanjo torna-se uma criança, como você já foi: briga, não quer, reclama, esperneia, diz que consegue sozinho.

Não dará ouvidos às lamúrias. Seguirá com o protocolo do sono até acomodar o seu gigante debaixo das cobertas.

Eu botei meu pai em seu berço uma noite de minha consciência, quando ele estava exausto de dirigir por cinco horas. Eu já lhe vi dormindo alisando a sua testa suada e seus cabelos engomados. Murmurei algumas palavras cantadas. Brinquei de ser responsável mesmo sendo um menino.

Ele não recordou de nada na manhã seguinte. Não lembrava de como colocou o pijama, de como deitou, de como adormeceu. Eu ri de seu esquecimento porque eu lembraria para sempre. Por nós.

Crônica publicada em em 19/7/2018

DEZ MANDAMENTOS DO FILHO COM A VELHICE DOS PAIS

1) Não permita nunca que os seus velhos pais sejam mendigos de seu afeto. Que não demore dias para retornar a ligação.
2) Que não marque e desmarque encontros, que não dê desculpas do excesso de trabalho. Não torture com a esperança. Não prometa para mudar de ideia em cima da hora. Cumpra aquilo que foi agendado.
3) Que não compre brigas tolas com os irmãos - porque sobrará sempre para os pais aguentar as lamúrias dos dois lados, resolver as diferenças e encontrar a paz.
4) Não minta sob o pretexto de poupá-los do sofrimento. Divida a dúvida.
5) Que confie na destreza dos pais em realizar as suas tarefas, não confunda lentidão com incapacidade.
6) Que mostre algo que aprendeu com eles, exercitando a saudade na presença.
7) Que não fique irritado ao ouvir as mesmas histórias, que ofereça paciência para descobrir novos detalhes das lembranças.
8) Que aceite conselhos, por mais divergentes que sejam da sua opinião. Não corte a conversa porque já imagina onde vai parar.
9) Que peça a benção. Que diga eu te amo.
10) Que, de longe, acene para a janela.

Crônica publicada em 18/7/2018

INSTAGRAM NÃO É CLASSIFICADO ERÓTICO

É desagradável não respeitar a natureza de cada espaço na web. É como aparecer de bermuda, camiseta e chinelo numa festa social ou surgir na piscina de terno e gravata.

O que há de homens sem noção caçando em Instagram ou Facebook de desconhecidas. Eles confundem as redes sociais com um Tinder e deixam cantadas nos comentários e emojis escandalosos de devoção, mesmo não conhecendo as pessoas do perfil. Gostam da aparência e se arrogam o direito de flertar à vontade, mandando diretas e se oferecendo para sair.

Acreditam que toda a tentativa é livre, mas não é. Toda tentativa, quando deslocada de um contexto, é inoportuna e constrangedora.

Ainda que as mulheres não tenham um relacionamento, jamais merecem ser tratadas como um açougue e receber abordagem de pedreiro (coitado do pedreiro!), como “gostosa”, “linda”, “me dá uma chance”.

Decência é educação fora de casa. Não se deve expor alguém, inconsequentemente, a segundas intenções e interpretações equivocadas e infelizes diante dos outros.

Existe a perversa sobreposição da esfera privada na pública. E quem faz isso não demonstra coragem de puxar assunto em particular, no inbox, porque imagina a resposta desaforada que possa receber.

Se não sabe quem é, o que pensa e o que deseja, use de bons modos e seja, no máximo, simpático. Não curta todas as fotos do último ano como se fosse um serial killer ou não demonstre afeição que não existe.

Instagram não é classificado erótico, Facebook não é agência de namoro.

A navegação tem as suas regras e bússola. É preciso cuidado para não ser invasivo. Se você demonstra uma intimidade que não conquistou, é grosseria e gratuidade. A virtualidade é uma manifestação real e depende de disciplinada etiqueta. Qualquer atitude ao contrário é assédio.

Publicado em O Globo em 18/7/2018

LAVO A ROUPA TODO O DIA, QUE AGONIA

O casado lava três vezes mais roupa do que o solteiro. É um fato incontestável.

Aqui em casa a máquina de lavar não para. Ela é uma escrava do movimento. Já não consigo imaginar a cozinha silenciosa, desprovida do barulho do aquário girando. Nunca mais atravessei a dispensa de cabeça ereta. Por mais que me agache, tocarei com a testa no varal cheio.

Meu salário virou espuma de amaciante. Dentro do casamento, eu não tenho como fazer um montinho de camisetas sujas no armário, um ninho de preguiça, logo acabo desmascarado. E ainda sofro com a conferida da esposa no sovaco. Não há como discutir. A asa é de morcego na caverna, há muito tempo deixou de ser pássaro.

Sou empurrado para a obrigação de estar arrumado e limpo. Uma peça no chão já toma o caminho do balde. Não há clemência e compaixão da família. O que ponho em 24 horas já não serve para depois, experimento uma ditadura hospitalar, de luvas e aventais descartáveis.

Quando era solteiro, não me lembro dessa gincana de sabão em pó, da obsessão anti-ecológica. Economizava o jeans até onde podia, até a mendicância. Usava várias vezes a ponto do brim claro se transformar em azul escuro.

Na residência, circulava pelado ou com bermudão e regata rasgados, não me olhava no espelho, não vivia sob o plantão de visita iminente.

Assim reservava as melhores combinações para a festa. Ninguém despachava as minhas camisas para a campanha de agasalho. Tinha controle sobre o passado e sobre o futuro.
A lavanderia era semanal. E só acontecia quando não restavam mais cuecas e meias na gaveta. Passava um dia inteiro sem cueca e meia, para esperar secar. Não me importava em andar alinhado sempre.
O casamento é uma pressão por bons modos. Cortar unhas, pelo no ouvido, aparar barba, tomar banho de manhã e de noite, mostrar-se como vai sair ao trabalho, não esquecer o perfume. Não difere muito de um internato.

Publicado em Jornal Zero Hora em 17/7/2018

BEM-CASADO

Se num jantar em minha casa, uma visita, por ventura, mexer no congelador, talvez para buscar uma cerveja gelada, jamais entenderá um pequeno embrulho na prateleira. Não são restos congelados de alcatra ou de frango, muito menos um queijo guardado.

É um doce, um doce de dois anos. Está lá há incríveis dois anos. Imóvel.

É um doce da sorte. Um doce talismã da família. Só vamos comê-lo em uma situação de extrema crise, quando realmente apagarmos da memória a importância do amor.

Foi o que combinei com Beatriz, minha esposa. Se um dia você esquecer o quanto a amo, se um dia eu esquecer o quanto você me ama, dividiremos a pequena e heroica sobremesa para nos lembrar da força de nossa história e rirmos de mais um breve desentendimento.

O doce é um bem-casado que sobrou da festa de nosso casamento. Sobrou é força de expressão, salvamos da boca dos convidados. Beatriz, astutamente, colocou em meu bolso.

- Vamos roubar a nossa própria festa?

E roubamos um pedaço de nossa eternidade para depois. Separamos um biscoito das centenas que haviam nas bandejas, polvilhado do açúcar da nossa paixão, para a cerimônia nunca acabar, nunca encerrar de verdade, nunca virar passado.
É um biscoito da sorte que guarda, simbolicamente, em suas finas massas envolvidas em chocolate, os votos que fizemos um para o outro naquela noite.

Com aquele bem-casado na geladeira, estamos nos casando sempre.

Publicado em Donna ZH em 15/7/2018

A COPA É DOS IMIGRANTES

Não houve derrotados no 4 a 2 da França sobre a Croácia no domingo (15/7).

Os franceses ganharam o seu bicampeonato em jogo eletrizante (igualando-se em títulos com a Argentina e Uruguai), mas foi o amor que venceu o ódio na final da Copa. O futebol bateu o racismo, a xenofobia e a intolerância religiosa.

Não significou apenas uma decisão inédita, mas uma demonstração de força da integração entre povos e da superação globalizada das diferenças.

Ambas as seleções representaram minorias em campo, ambas despertavam a simpatia das torcidas do resto do mundo pelas trajetórias de feridas e de discriminação, ambas correspondiam a lados mais fracos e desfavorecidos da humanidade.

Foi o encontro entre um time de refugiados, a Croácia, e um time de imigrantes, a França.

A Croácia é formada de atletas que sofreram com a guerra pela independência. Ou ficaram desterrados em outro país como Ivan Rakitic, na Suíça, e Mario Mandzukic, em Diztingen, na Alemanha, ou sobreviveram em pleno conflito, como Luka Modric (escondido em Zadar). Modric, inclusive, Bola de Ouro da Rússia, testemunhou a sua casa incendiada por milicianos da minoria sérvia da então Iugoslávia e arcou com o trauma de suportar o fuzilamento de seu avô.

Já a campeã França é toda miscigenada, é toda multicultural, é toda feita de famílias egressas da pobreza em busca de um lugar ao sol na Europa. Não deixa de ser um plantel com o DNA majoritariamente africano.

N'Golo Kanté é filho de imigrantes do Mali e, absurdamente, catava lixo nas ruas de Paris aos 7 anos. Presnel Kimpembe é filho de congoleses. Benjamin Mendy é filho de senegaleses. Ousmane Dembélé é filho de mãe senegalesa e pai malinês. Corentin Tolisso é filho de imigrantes de Togo. Blaise Matuidi é filho de angolanos. Steven Nzonzi veio do Congo. Samuel Umtiti, autor da cabeçada salvadora na semifinal contra a Bélgica, é natural de Camarões.

Os heróis velocistas e fintadores Paul Pogba e Kylian Mbappé, responsáveis pela diferença do placar na decisão, não fogem à regra. O primeiro é filho de mãe guineense e pai congolês; e o segundo, de pai camaronês e mãe argelina.

Se a Croácia não tivesse repatriado os seus craques, não colocaria o seu nome na história com o segundo lugar, superando os feitos de Suker de 1998.

Se a França não abrisse as suas fronteiras, se não derrubasse a Bastilha das etnias, o seu combinado de furacão e técnica desapareceria do mapa do nosso coração.

Crônica publicada em 15/7/2018

DUAS ALMAS

Quando você aceita o amor dos pais é que finalmente amadureceu e se aceitou.

Uma observação simples que guardo, agora adulto, no estojo das minhas medalhas escolares.

Quando você não sente mais vergonha de abraçar e beijar os pais em público, quando você não sente mais vergonha de suas piadas na mesa familiar, quando você não sente mais vergonha do que eles falam de você para os amigos, quando você não sente mais vergonha de seu completo despreparo para localizar a câmera no celular, quando você não sente mais vergonha de alguma roupa ou de algum sapatinho ou de alguma bolsa antiga, quando você não sente mais vergonha do pai aplaudindo um pouso difícil de avião ou da mãe aplaudindo um filme no cinema, quando você se vê livre dos preconceitos que adiam a paz e participa junto do vexame infinito que é viver.

Neste momento, você, tão acostumado a criticar, também passa a confiar nos elogios dos pais. Quem somente presta atenção no lado ruim dos outros não é capaz de identificar o lado bom.

Nunca admitia nenhuma declaração de amor deles porque eu não conseguia me declarar. Achava ridículo me declarar.

Minha mãe sempre me dizia que eu seria filho dela de qualquer jeito. Se eu não tivesse saído de seu ventre, eu sairia de seu coração. Se não tivesse sido fruto de sua gestação, seria árvore de seus caminhos. Se não tivesse partido de sua carne, ainda nos reconheceríamos na rua e do parto de seus olhos.

Eu não acreditava em suas palavras. Hoje acredito. Hoje sei o quanto é verdade.

Existem pessoas tão generosas que vêm ao mundo com duas almas. Como a minha mãe. Quando eu perdi a minha alma, ela me emprestou a sua e ainda avisou que não havia nenhuma pressa para devolver.

Crônica publicada em 13/7/2018

O GRILO É UM LEÃO

Esse menino é triste. Parece que aceitou posar para fotografia a contragosto.

Não é uma criança satisfeita. Olhos crispados, as sobrancelhas formam uma goleira na testa. Ele é Luka. Mas não sabe que é Luka Modric, armador de Real Madrid, de 32 anos, possível melhor jogador do mundo, que pode ser campeão da Copa pela Croácia, um país que nem sequer existe no tempo da imagem.

Ainda está com os pés plantados na Iugoslávia, que se desdobrará em mais cinco outra nações – Bósnia e Herzegovina, Macedônia, Eslovênia, Montenegro e Sérvia.

Ele não tem ideia do que será capaz, é um menino carente como milhares iguais a ele, que nasceu na guerra fratricida dos Balcãs, no meio do fogo cruzado.

Sua mirada mescla melancolia e raiva, como se não houvesse futuro. Ele não tem como adivinhar que será um herói de seu novo país dali a duas décadas, deixando para trás potências do futebol como Inglaterra e Argentina.

É improvável qualquer pressentimento de grandeza naquele momento. Ele não tem nem um país, só o medo, seu avô havia sido assassinado há dois anos pelo Exército Popular Iugoslavo, que buscava deter o movimento pela independência croata.

A vida não dava espaço para profecias. Ele mora num hotel para refugiados com a família, isolado da capital Zagreb, do qual fugiu pelas montanhas durante dias a pé para não ser morto. Ele não poderia sonhar, sonhar era um luxo e só lhe restava na hora o seu instinto de sobrevivência.

Como prever que participaria da final de Copa, capitão da equipe, dono da camisa dez, maestro dos contra-ataques, se ele joga bola hoje com os amigos, assustado, olhando para o céu, entre bombardeios e evacuações?

Não acena para os aviões, como qualquer filho feliz, foge deles a partir das sombras no solo.

É um menino cabisbaixo, retraído, tímido. Não vai sorrir. Não guarda nenhum motivo para sorrir, nem esperança para sorrir.

Se uma cigana lesse os sortilégios das linhas de suas mãos, ele acharia deboche. Como que viraria a ser um craque se todos o consideravam fraquinho demais para ser profissional? Se o seu próprio clube predileto, Hadjuk Split, o dispensou da peneira pelo porte franzino, se o treinador chegou a rir dele, dizendo que era um grilo?

Não duvide da superação psicológica e da resiliência de Luka Modric.

Luka é Esparta no mundo apolíneo do futebol, regrado pela racionalidade mercadológica, força física e imponência muscular. Ao lado de Cristiano Ronaldo, o seu físico desaparece. Quando Ronaldo comemora um gol, é uma estátua. Quando Luka comemora um gol, é uma explosão de nervos e emoção, um soldado gritando de horror das trincheiras e casamatas.

Ele nunca cansará de lutar numa partida, de virar escores, de se acabar correndo, de fortalecer a sua fé a partir das recusas e de placares adversos, de contrariar expectativas. Ele já foi esse menino.

Mbappé, Griezmann e Pogba, olhem bem para esse grilo, engulam a supremacia, abram espaço para o impossível, dentro dele bate um coração de leão.

Crônica publicada em 12/7/2018

FAÇO QUESTÃO DE DORMIR NA MESMA CAMA COM A ESPOSA

É moda, é liberal casais que dormem em quartos separados. Só se encontram na mesma cama para namorar. Em alguns casos mais avançados, cada um tem a sua casa. Trata-se de uma forma de manter a independência dentro do casamento e não se incomodar com os problemas do parceiro. É o amor de hotel, confortável, de solidões defensáveis, em que estar com o outro não é estar sempre grudado.

Não me serve a regra. Não consigo ser moderno. Nem teríamos dinheiro para sustentar duas residências. Nosso amor deve ser de bangalô.

O que mais gosto é a possibilidade de dividir os travesseiros com a minha esposa. Não deixamos a distância crescer entre nós. Sou viciado no cheiro do cangote dela, dependente de seu perfume e de sua pele macia, de seus rituais de copo de água na cabeceira e de seu sotaque mineiro no boa-noite.

Quando durmo sozinho, durmo mal. Não encontro posição confortável. Meu corpo é feito para o corpo dela. Ele se encaixa perfeitamente em suas pernas e braços. Unicamente a conchinha e abraço apertado me garantem paz.

O casal que dorme em quarto separados livra-se do ronco, das manias de televisão e de abajur para a leitura de sua companhia, dos fusos diferentes de sono, das levantadas ao banheiro ou dos alarmes do celular discordantes, do bruxismo e das conversas sonâmbulas, mas perde a cumplicidade inestimável dos pés dados debaixo dos lençóis. Mas perde a possibilidade de ouvir o eu te amo durante o sono. Mas perde o remédio aos pesadelos que é ser confortado no meio da noite com um colo. Mas perde a chance do sexo que não foi agendado, que não foi planejado, vontade súbita dos encantamentos da carne. Mas perde a ternura que é retirar os óculos e o livro das mãos da esposa quando ela cochila lendo. Mas perde a sabedoria de dividir os pensamentos que eliminam as preocupações. Mas perde de enxergar como está o humor de quem nos acompanha. Mas perde o tempo de socorrer no momento de angústia. Mas perde o teatro nô de pôr a camisola e o pijama. Mas perde a gentileza de vencer a preguiça e buscar mais uma coberta ou fechar a janela. Mas perde as brincadeiras “tire as mãos frias de mim” ou a “sua bunda está gelada”. Mas perde as risadas do inverno e as corridas loucas do banho. Mas perde a expectativa de Cristovão Colombo na hora de abrir as cortinas e revelar se há sol ou chove. Mas perde o tempo raro de proximidade em rotinas de emprego tão separadas.

Dormir junto é acordar junto. O ontem é hoje e é amanhã, os dias também são casados. E os sonhos nunca serão solteiros.

Crônica publicada em 12/7/2018

SÍNDROME DE BARBOSA

Bélgica saiu da Copa, e é uma seleção histórica, da altura dos grandes times estelares como a Laranja Mecânica (1974 e 1978), dotada de habilidosos incríveis como Hazard e De Bruyne, mas o país belga não chorou a eliminação. Não houve consternação nacional em Bruxelas. Não se viu cenas de agonia e de fim de mundo. Os torcedores entenderam a naturalidade da derrota, assim como compreendem a dinâmica da vitória.

O esporte é planejamento, parte de um processo evolutivo, é simplesmente levantar as falhas e pontos positivos e se preparar melhor para a próxima competição. O que são 4 anos para quem projetou as próximas duas décadas?

O Brasil, talvez por ser um país recente, é imaturo. Extremista, vive entre o tudo ou nada. A derrota é um fracasso total, a vitória é uma redenção. Como se fôssemos marionetes ora na mão de Deus, ora nos dedos do Diabo. É um fatalismo que inibe a construção gradual de triunfos. Emocionalmente, somos do terremoto, para o bem e para o mal. Da amnésia coletiva. Devastamos qualquer fórmula com a obtenção da taça ou com a perda dela. Não há sequência.

Nas desclassificações, procuramos culpados porque parece que jogamos sozinhos, que perdemos sozinhos, que nunca enfrentamos uma equipe superior. Não admitimos sermos superados, não toleramos a desvantagem, não elaboramos os nossos defeitos já que personalizamos os fiascos. Excluímos jogadores, amaldiçoamos jogadores, realizamos bullying a jogadores, destruímos a carreira de jogadores, devido a um único dia menos inspirado na Copa. A cobrança é irreal, injusta e devastadora. Não aprendemos com o exemplo do goleiro Barbosa, do Maracanaço de 50. Por toda a vida, ele seguiu o destino de proscrito, de pé-frio, isso que não tomou um frango de Ghiggia, era apenas uma bola defensável.

A caligrafia torta deve ser endireitada. Para o nosso equilibro cultural. Para a nossa saúde mental. A passionalidade forma uma grande torcida, mas não nos prepara ao sucesso. Tite precisa continuar. É o melhor técnico em atividade no país e um dos melhores do mundo. Ele sabe se reinventar na progressão da carreira. Já tem uma base para o Catar. Só perdeu duas vezes desde que assumiu, em retrospecto de mais de 80 por cento de aproveitamento. Foram vinte vitórias e uma humildade de quem jamais se isenta da responsabilidade no vestiário e nos microfones. Ele é um exemplo de profissional para mim.

Crônica publicada em 11/7/2018

COLECIONADORES DE GELADEIRAS

Mineiro sempre está preparado para uma guerra. Faz estoque. Não conheço mineiro desprevenido. Seu raciocínio é mensal, nunca diário. Ele pensa por esperança.

Fui descobrindo aos poucos frequentando as casas de amigos. Qual o meu espanto diante do sistema de refrigeração de um frigorífico?

Os mineiros não trocam de geladeira, acumulam geladeiras. Colecionam geladeiras. O refrigerador passado nunca é despachado. Permanece com o novo ou na lavanderia. Raciocinam que podem precisar para gelar cerveja ou congelar alimentos.

São boêmios da residência. Não dispensam uma retarguarda, um engradado, uma provisão de ovos.

É como se a CEASA tivesse milhões de filiais.

O preço da luz é o de menos, preocupam-se com o valor da convivência. Como as famílias são numerosas e as visitas constantes, não descartam a duplicidade do eletrodoméstico para providenciar quitutes fora de hora. Recheiam as prateleiras frias com armas secretas e surpreendentes: pão de queijo, feijão tropeiro, jiló, linguiça e carnes para desfiar nas panelas.

A geladeira tem a dignidade de um carro estacionado na cozinha. Um carro para transportar a felicidade até a sala. Para resolver as dificuldades do quarto. Para contornar as crises no sofá.

Eles não param de se alimentar, emendam café da manhã com o almoço com o café da tarde com o jantar. Se gostam de alguém, dão de comer. Se não gostam, dão de comer também para calar a boca.

É um povo que prova a comida de pé e depois senta para realmente degustar.

O que um mineiro não suporta na vida é não ter nada para beliscar. É o desespero na forma das grades vazias, da cela.

Se uma geladeira do mineiro está vazia, tenha certeza que ele está deprimido e perto de se matar.

Publicado em O Globo em 11/7/2018

PEQUENOS BRAVOS

Enquanto se desenrolam as semifinais da Copa, o mundo testemunhou uma paralela Copa, a da sobrevivência, com a resistência de doze crianças de 11 a 16 anos e de um professor, isolados na caverna Tham Luang, no norte da Tailândia, desde o dia 23, a 4 km de distância da entrada.

O time de futebol de meninos, conhecido como Javalis Selvagens, foi resgatado nesta terça-feira (10), o terceiro dia da arriscada operação. Cada menino recebeu a condução de dois mergulhadores e usou máscara facial de oxigênio por frestas e subterrâneos de difícil acesso. Uma corda guia foi posta pela rota para garantir o retorno.

Eles ficaram isolados e sem comida por nove dias, devido às chuvas. Foram localizados no dia 2 de julho, debilitados e desnutridos, e criou-se uma manobra perigosa de aproximação pelas autoridades, inclusive com a morte heroica do voluntário tailandês Saman Kunan, militar do grupo de elite da marinha e atleta de alto rendimento.

Milagre não é fazer o paralítico andar, o cego enxergar, o surdo ouvir, é realizar o possível, até a exaustão do possível, é devolver o homem ao homem. Acreditar mesmo quando as evidências provam o contrário.

O impossível dividido é sempre possível. A força-tarefa envolvendo especialistas de vários países demonstrou que a alma pode passar por qualquer lugar. Não há nada que a impeça de atingir os seus objetivos.

Aquelas crianças, ilhadas pela chuva, sem comunicação por semanas, sem comida, mantiveram-se convictas da salvação pelo poder das palavras. No escuro, as palavras são luz. Na fome, as palavras são alimento. Pelas palavras, espiavam para fora da montanha. Pelas palavras, reconheciam a saída. Enquanto conversavam, estavam vivas. Enquanto conversavam, era um time de futebol se ajudando em campo. Enquanto conversavam, não definhavam, ocupavam as horas, moravam no tempo de suas esperanças.

E o mais tocante é que as crianças foram salvas de quatro em quatro, e todas faziam questão que o seu amigo fosse o primeiro a subir à superfície, interessadas em proteger o outro para depois pensar em sua vida.

Tão crianças, tão generosas, tão unidas. Nenhum adulto seria capaz, como elas, de vencer o egoísmo na mais completa carência. A infância é o nossa maior aula de fé.

A humanidade encontra-se de novo fora da caverna.

Crônica publicada em 10/7/2018

SAL DA TERRA

Minha homenagem a todos os que cozinham, que sentam por último, depois de levar as bandejas e vasilhas até a mesa.
Minha homenagem a todos os que esperam os outros começarem a comer com expectativa e suspense, para descobrir se acertaram o sal.
Minha homenagem a todos os que se preocupam em servir a comida quente, que gritam que a comida vai esfriar, que, não bastando, batem de porta em porta, de quarto em quarto, chamando desesperadamente, convocando o batalhão a tomar os seus lugares.
Minha homenagem a todos os que não desistiram do trabalho de reunir a família.
Minha homenagem a todos, anônimos, invisíveis, os que se preocupam em fazer um cardápio diferente no dia a dia, mesmo que ninguém note, mesmo que ninguém comente, que sacrificam o seu lazer escolhendo os produtos no mercado e investigando preços.
Minha homenagem a todos os que conhecem exatamente o que têm dentro da geladeira, como se as prateleiras fossem extensão de seu guarda-roupa.
Minha homenagem a todos os que condicionam as panelas a cada tarefa cumprida, para não acumular sujeira.
Minha homenagem a todos os que ainda preparam a salada mesmo sabendo da antipatia da turma.
Minha homenagem a todos os que arrumam a mesa com guardanapos e casais de talheres, revestem a normalidade de rituais, protegem a rotina com o capricho.
Minha homenagem a todos os que rompem a monotonia dos barulhos dos garfos e facas, puxam assunto sobre o trabalho e a escola e buscam conversar olhando nos olhos.
Minha homenagem a todos os que perdem tempo cortando o assado de pé para distribuir as fatias de modo igual.
Minha homenagem a todos os que lembram de afiar as facas e de comprar panos de prato.
Minha homenagem a todos os que se preocupam em ter pratos iguais, pratos gêmeos, para ninguém se sentir diferente.
Minha homenagem a todos os que não têm pressa nem egoísmo e servem primeiro para só depois cuidar de sua fome.
Minha homenagem a todos os que não reclamam de pegar algo a mais na geladeira ou na despensa, que se prontificam a se levantar de repente pelo vinagre, água ou azeite.
Minha homenagem a todos os que estão dispostos a recolher as guarnições, a embalar as sobras em plástico-filme e lavar a louça.
Minha homenagem a todos os que levam três horas para cozinhar para um espetáculo que dura apenas 20 minutos.
Minha homenagem a todos os que nunca são valorizados, que nunca são elogiados, que nunca recebem aplausos: mães, pais, avós e avôs silenciosos, heróis desconhecidos de nossa cozinha, que mantêm vivo o gesto ancestral de se amar pela refeição.

Publicado em Jornal Zero Hora  em 10/7/2018

POR QUE O BRASIL NÃO GANHOU A COPA? - ou a falsa hegemonia do futebol sul-americano -

A seleção brasileira chegou como favorita na Copa devido ao seu primeiro lugar nas Eliminatórias, a vaga garantida com antecedência e invencibilidade de Tite.

Houve um tremendo equívoco nesta leitura: somos o melhor selecionado da América Latina, mas não estamos à altura das seleções europeias, que monopolizaram a disputa das semifinais. Essa tem sido a escrita. Como não competimos com os europeus, salvo amistosos, não partilhamos do mesmo patamar de excelência.

A queda do futebol brasileiro na Copa é resultado direto da fraqueza do futebol em toda a América Latina (agravado pela falta de estabilidade política e economias em constante crise).

Para subir novamente e ter chance nas finais, dependemos do crescimento da desenvoltura de nossos rivais vizinhos, como Argentina, Peru, Uruguai, Chile e Colômbia. Porque só jogamos com eles em competições nos quatro anos até a Copa. É uma ilusão vencer qualquer disputa na América, hoje não significa habilitação para conquistar o mundo. Corresponde a um padrão e uma exigência menores do que uma Eurocopa, por exemplo. O destino é ficar entre as oito melhores seleções, é o único direito garantido como demonstrado nos últimos 16 anos.

O que nos aflige é a ideia fora do lugar, expressão de Roberto Schwarz sobre a obra de Machado de Assis: temos um estilo de jogar, caracterizado pela liberdade, finta e alegria, ameaçado e corrompido porque nossos craques unicamente servem a eficiência das máquinas coletivas de marcação e de resultados dos grandes times da Europa. Da seleção, restava um titular atuando no Brasil. Vivemos fora do contexto. Com a cabeça aqui e os pés acolá.

Nossa seleção não é formada em nossos trópicos, mas dos invernos da Espanha, da Itália, da Alemanha e da Inglaterra, com o calendário diferenciado de início e fim de campeonato. É feita, portanto, de retalhos, de transplantes, de emendas e de talentos isolados, sem a convivência disciplinar conjunta e constante. Uma peça fora das engrenagens e o desastre é certo. Dificilmente conseguimos remediar um desempenho abaixo do esperado de um único jogador, como Fernandinho diante da Bélgica. Somos pegos desprevenidos pela derrota. Nunca nos preparamos para perder e trocar de armas.

Os convocados se encontram fora do fuso na preparação e também apartados do contato da torcida brasileira e do feedback direto dos estádios.

Somos dependentes do eurocentrismo. Não temos mais a nobre matéria-prima em nossos campeonatos nacionais. Nossos astros pensam e se articulam como europeus. E são mais facilmente anulados, pois são absolutamente conhecidos pelas suas estratégias. Eles estão comprometidos a um esquema tático de sobrevivência espartana, que não tem nada a ver com as nossas qualidades. Futebol-arte apenas existe no passado, como retropia.

Assim, levamos para Copa um plantel que não joga no país. Nossos dribladores são exportados antes dos vinte anos, como Vinicius Júnior (Flamengo) e Rodrygo (Santos), o que enfraquece a nossa perfomance e exige uma difícil e talvez impossível aclimatação depois, em tão pouco tempo de preparação.

Por isso os times vencedores da Libertadores não conseguem enfrentar de igual para igual o campeão da Champions League. Há um fosso intransponível de técnica. Clubes europeus são seleções, clubes brasileiros são apenas times.

Se o nosso Brasileirão vem sendo desfalcado, os campeonatos argentino, chileno, peruano, uruguaio e colombiano também. Todas as seleções sul-americanas servem apenas como celeiro e fábrica para as potências europeias. A maior parte dos jogadores exerce a profissão longe de sua terra natal.

Os dirigentes não têm condições de manter os seus talentos, nem de variar a dinâmica viciada de seus atletas.

Messi unicamente sabe jogar com o Barcelona. Na Argentina, não tem entrosamento, nem intervalo suficiente para se adaptar. É o melhor do mundo somente num clube europeu. Ele foi domesticado para os objetivos estrangeiros. Como saiu cedo da Argentina, não solidificou os seus laços pátrios como um Maradona (que partiu aos 22 anos, depois de fazer história no Argentino Juniors e Boca Juniors).

A magia da glória do hexacampeonato será um efeito do hábito e do planejamento. Precisamos de mais identidade e de menos passaporte.

Crônica publicada em 09/7/2018

O MELHOR DO MUNDO

Nem Cristiano Ronaldo, nem Messi, nem Neymar, nem Mbappé. O melhor do mundo neste ano deveria ser um croata: Luka Modrić.

Se levar em consideração o seu desempenho na Copa do Mundo, já é ele. Se levar em conta a sua atuação no Real Madrid, com o título da Liga dos Campeões, também é ele.

Carrega e, ao mesmo tempo, toca o piano na seleção da Croácia. Conduziu o seu país a sua melhor colocação da história, enfrentará a Inglaterra na semifinal e não duvido que não traga o Mundial da Rússia para Zagreb.

A diferença de Modrić é que ele não se comporta como um garoto-propaganda. É o equivalente a um Messi com liderança, a um Cristiano Ronaldo sem vaidade, a um Neymar sem manha.

Veterano, com 33 anos, não age como uma estrela, não olha para o telão para ajeitar o cabelo, não reclama exageradamente da arbitragem. Interessa-se apenas em atuar com garra e determinação, dentro do espírito de equipe.

Ao final do jogo, são perceptíveis o seu cansaço, a sua camiseta banhada de suor, o rosto sugado pela vitória.

É um 10 que arma e desarma, que produz o ataque e ajuda na marcação. É um 10 duas vezes 5, duas vezes volante.

Não para um minuto de trabalhar para a orquestra de Ivan Rakitić, Mario Mandžukić e Ivan Perišić.

Mobilizador nato, é um operário do futebol, um insaciável leva-e-traz, um capitão que mostra autoridade técnica (nunca dando chutão para a frente) e moral (nunca desistindo de um lance).

Não espera para receber a bola, movimenta-se na defesa e no ataque, organiza as jogadas e finaliza com perigo (tem dois gols na Copa).

Nem parece ser baixo com 1,74m (quase a mesma estatura de Zico), mas, com a bola no pé, assume a altura do pico da maior montanha croata, Vaganski, com os seus 1757 metros de altitude.

Usando elástico nos cabelos, lembra um tenista. Mas talvez a gominha na cabeça seja uma preparação para receber a coroa de melhor do mundo.

Premiar Modrić é valorizar a discrição batalhadora no futebol, é destacar o crescimento do Leste Europeu, é apoiar o anti-marketing de quem viveu à sombra, é perceber o valor do garçom e das assistências, é festejar os dribles verticais e necessários, é dar um fim e um basta ao concurso de beleza em campo.

Crônica publicada em 08/7/2018

NÃO SABEMOS NOS DESPEDIR

Guardamos a sensação de que não nos despedimos direito daqueles que amamos e que se foram. É como se não tivéssemos dito tudo, ou que precisávamos nos preparar melhor para o desenlace.

O abraço deveria ter sido mais apertado; as frases de efeito mais contundentes; o olhar mais banhado de lágrimas.

A impressão é que faltou um maior tempo, uma maior disposição, mas é natural se atrapalhar mesmo. Não estamos diante de um espelho, e sim de um rosto de verdade. Existe carência e incompetência em ambos os lados, no lado que fica morrendo de saudade e no lado que vai, morrendo de medo do desconhecido.

Amar é enfrentar a insuficiência no leito do hospital do parente ou do afeto. Significa a pior provação de nossa frágil condição: estabelecer um diálogo com sentido quando nada tem sentido.

A esperança nos faz engasgar. Como achar normal não mais enxergar aquela pessoa? Nenhum exercício mental é capaz de conter o tumulto do coração. O coração sai da boca, sai correndo do quarto para não sofrer, e o corpo permanece ali, na aparência, embasbacado, sentado na cadeira, não entendendo nada, não respeitando os limites e a mortalidade injusta de cada um.

Estamos tão assustados com a morte iminente que todo murmúrio parece ser insignificante. É uma impotência emocional difícil de se superar.

Como reduzir uma amizade em brevíssimos instantes? Como elaborar um epíteto?

E mais dói o fim quando, em vez de ampararmos quem está sofrendo, o doente é que nos consola dizendo para não nos entristecermos. Neste instante é que desabamos: com a surpreendente generosidade do nosso ente, mais preocupado conosco do que com ele.
Eu perdi a minha avó Elisa quando eu tinha sete anos. Muito cedo para uma criança formular o desaparecimento físico. Nenhuma história dos pais me satisfazia. Eu só consegui entregar um desenho para ela. E ela me perguntou quem era ela na ilustração: eu apontei para a árvore, para a casa, para os pássaros, para o chão, para as nuvens, para o sol, menos para ela desenhada ao lado de minha mãe. Porque ela era tudo para mim. Estaria sempre dentro de tudo para mim.

Publicado em Donna ZH em 08/7/2018

ADEUS ILUSÃO

Não é um jogo perdido, são quatro anos.

Quatro anos para montar um time, esperar, desacreditar, acreditar de novo.

Quatro anos mordendo a bandeira, escondendo-se das piadas, redundando a fé, secando as lágrimas, rindo torto.

Quatro anos da vida de cada brasileiro, quatro anos de gaveta para a camiseta amarela. Nenhuma outra estrela será bordada sob o escudo.

Quatro anos de campeonatos nacionais, competições internacionais, para definir quem pode surgir e fazer diferença.

Quatro anos rezando para que Neymar não envelheça, que Gabriel Jesus amadureça, que Philippe Coutinho, mantenha a sua timidez selvagem, que Willian exploda de verdade, que Douglas Costa e Firmino segurem o seu fôlego.

Quatro anos sem mais nenhuma chance de Paulinho beijar a taça, de Thiago Silva levantar a Copa do Mundo, uma geração se despede na derrota contra a Bélgica.

Quatro anos para um país onde o futebol é tudo, que não deveria ser assim, mas ultimamente não tem mais nada para se orgulhar. Agora é voltar para as balas perdidas, voltar para as greves, voltar para a recessão, voltar para a impunidade, voltar para a crise, voltar para a incógnita das eleições. As ilusões são mais breves do que os sonhos.

Não são quatro anos, minto, já são dezesseis anos. A idade de meu filho.

Crônica lida no programa Encontro com Fátima Bernardes da Rede Globo em 06/7/2018

O FRANGO

Não poderia ter frango em Copa. Deveria ser proibido pelo regulamento. Frango é várzea, Liga Amadora, pelada, campo de terra batida com calombo e morrinho artilheiro.

O que aconteceu com o bom goleiro uruguaio, que determinou a desclassificação da Celeste para a França, foi de uma melancolia romântica, digna da pena de Victor Hugo (e seu fatídico prazer de estar triste).

O chute de Griezmann, de fora da área, no meio do gol, era um suspiro. Uma tentativa fracassada. Um tiro morno e bisonho. Fato insignificante para a emissora trocar de câmera e ir para o lance seguinte.

Tudo bem que Muslera espalmasse, jogasse vôlei, deixasse rebote. Mas a bola se transformou num pião em suas luvas, num redemoinho e seguiu, devagar, para as redes. Até a bola ficou constrangida na hora de entrar.

O arqueiro entrou em parafuso entre rebater e segurar, o braço direito não concordou com o esquerdo e houve um malabarismo atrapalhado de semáforo.

Antoine Griezmann deu exemplo. Não comemorou o gol, seu olhar só pedia desculpa. Baixou a cabeça e seguiu em frente, apesar do estardalhaço de seus compatriotas, como se nada não tivesse acontecido. Quis abafar o escândalo.

Frango merecia ser anulado. É tão vergonhoso para todos os jogadores que desqualifica a vitória.

Crônica publicada em 06/7/2018

QUEM SÃO OS MEUS PAIS?

Os pais podem mudar de opinião. Aliás, eles mudam de opinião. Suas palavras não são eternas. Os filhos não aceitam as transformações dos pais porque percebem qualquer juízo de ambos como um mandamento inviolável.

Eles teriam que manter a mesma posição por toda a trajetória?

É impossível. Nem tudo que vem da boca deles é conselho, nem tudo é tábua de salvação.

Se um dia falaram que não gostam de tal coisa, parece que a ideia será para sempre. Não é, não há como ser.

Eles apresentam restrições, cometem preconceitos, mas melhoram. Abrem a cabeça, abrem o coração. São humanos, como os próprios filhos, em constante transformação. Erram, vacilam, enganam-se, são enganados, levam fora, tropeçam em vexame e se reerguem. Alguns são arrogantes, depois se mostram humildes e compreensivos. Alguns são carinhosos, depois se isolam na mais completa indiferença.

Não são fechados, embalados para presente.

Aqueles mesmos pais que não queriam que você tivesse animais na sua infância são capazes de adotar cachorros na velhice. E ainda chamam os cachorros de filhinhos (ou seja, ganhou irmãos). Os cachorros dormem na cama deles, algo inacreditável diante da antiga fobia.

Coerência é mudar, não ficar parado sem ser modificado pelo tempo.

Conhecemos os pais pelas funções. O Pai. A Mãe. Como entidades. Nunca chamamos pelos nomes, e sim pelas funções: meu pai, minha mãe. O que devemos perguntar, antes que seja tarde, quem são eles? Você pode passar a vida sem conhecer realmente os seus pais. Pois há pessoas dentro do Pai e da Mãe. Pessoas ansiosas, pessoas esperançosas, pessoas sofrendo com a realidade, pessoas com os seus sonhos não realizados e o igual medo de não ser amado.

Os pais aprendem a vida dos filhos de cor e salteado, mas os filhos não param para perguntar o passado deles. Como foi a infância e adolescência dos dois, de que são feitas as suas escolhas, por que eles pensam desse jeito?

Amar depende da permanente curiosidade. Nunca pensar que conhece realmente alguém, para assim nunca parar de se conhecer.

Qual será a sua surpresa ao descobrir que você é mais parecido com os seus pais do que imagina?

E, de repente, descobrindo que os pais mudam, pode estranhamente mudar de opinião sobre eles.

Crônica publicada em 05/7/2018

POR QUE É TÃO DIFÍCIL PEDIR DESCULPA?

Quando alguém pede desculpa, você deve aceitar ou não. Simples assim. Mais nada. Sim ou não são as únicas opções.

Pedido de desculpa não é prova dissertativa, mas de múltipla escolha.

Só que ninguém aguenta apenas acatar a confissão e acaba humilhando e constrangendo quem tenta reparar a sua falha. Logo vem as perguntas: Por que fez isso? Coloque-se no meu lugar, por que mentiu? Você não confia em mim?

E um etc interminável que transforma o arrependimento em discussão de relacionamento e disputa de vaidades.

Você ainda quer testar a sinceridade e passa a interrogar aquele que se encontra fragilizado e vulnerável em uma posição de humildade.

Não percebe o quanto é difícil vencer o orgulho, e não ajuda no processo de conscientização com a objetividade.

Pensa unicamente em quanto está magoado e se vinga rebaixando o seu par, para que ele se sinta a pior criatura do universo.

A absolvição é dada sempre sob tortura, ironicamente com a demonstração de que a atitude é imperdoável.

Devido à nossa péssima receptividade, o pedido de desculpa é pouco praticado.

Ninguém aceita a solicitação na hora. Com a brecha aberta em sua companhia, aproveita-se para atacar. Ao descobrir que tem razão, abusa da autoridade a ponto de se transformar num tirano.

A retratação, mesmo quando realizada rapidamente, não elimina a sua brabeza e o seu mal-estar. Não desaparece com a sua vontade de brigar. E você recebe a desculpa e acaba dando sermão mesmo quando o outro já admitiu o erro. Não tem sentido continuar com a conversa, mas não admite seguir adiante sem estabelecer uma pena.

O que atrapalha o perdão é que queremos infringir um castigo naquele que cometeu um engano, partimos do princípio de que ele deve pagar pelos seus erros, para que não ocorra uma reincidência.

No amor, é necessário escolher entre a compaixão e a justiça, entre a empatia e o papel de inquisidor. Os dois não têm como coexistirem.

Quem desculpa muda de assunto. Não fica batendo na mesma tecla até quebrar a linguagem.

Publicado em O Globo em 04/7/2018

PICKFORD

Já temos a maior defesa da Copa do Mundo: quando o goleiro inglês Jordan Lee Pickford buscou a bola no ângulo, em chute surpreendente e salteado do colombiano Uribe, da intermediária. Não era previsível o arremate. Uribe mandou um canhão, em reencarnação atômica de Nelinho, de Dirceu Lopes, de Rivelino.

O goleiro do Everton não somente se esticou, ele se desesperou no ar, ele se desintegrou ao vento, ele se arrebentou inumanamente, numa impulsão aquilina. Dos seus 1,85, cobriu os 2,44 da trave e espalmou com a mão canhota para escanteio. Foi uma coreografia encantadora de explosão e elasticidade.

Não sei o que acontece, de modo alquímico, com os goleiros da Inglaterra na Copa do Mundo. O título de defesa do século está, até então, de posse do também inglês Gordon Banks, que apanhou a cabeçada impossível de beija-flor de Pelé em 1970, no México.

Crônica publicada em 03/7/2018

O MEDO DO TÉCNICO DIANTE DO PÊNALTI

Decisão de pênaltis é loteria. O melhor time pode perder, o pior pode ganhar. Apaga-se o histórico dos 120 minutos. É como se fosse um outro dia. Não há mal e bem, certo e errado, é um novo jogo, uma partida essencialmente mental, em que a precisão acaba sendo destruída pela emoção.

Marcou-me no confronto de penalidades entre Inglaterra e Colômbia a postura do técnico argentino José Néstor Pékerman. O maduro homem de 68 anos, de fartos cabelos grisalhos, responsável pela seleção colombiana, figura tarimbada do futebol latino-americano, transformou-se de repente num menino assustado. Da sapiência exemplar dos esquemas táticos, regrediu aos seus medos mais primitivos. Simplesmente fechou os olhos para não ver as cobranças.

Não se conteve diante das câmeras: com a cabeça baixa, vendou a si mesmo. Rezava dentro do escuro de seus pensamentos.

Não seria capaz de suportar o suspense de uma desclassificação por milímetros. Não seria capaz de testemunhar a esperança indo e voltando tresloucadamente. Não seria capaz de aguentar o rodízio sádico entre vitória e derrota, desespero e alívio.

Avaliava cada avanço ou recuo pela comemoração externa. Mesmo com o corpo preso ao campo, abstraía-se, negava a sua presença, ouvia somente o rádio da torcida.

Por mais que já tivesse experimentado várias finais iguais e trepidantes, era uma criança espiando, pelas frestas do dedos, o filme de terror de sua vida.

Crônica publicada em 03/7/2018

A PUREZA DOS JAPONESES

Não há espaço no mundo para a ingenuidade.

Os ingênuos sempre são excluídos.

Eu sofri com a saída do Japão da Copa. Porque os seus jogadores foram inocentes, como nunca se viu num mata-mata.

Não usaram da malandragem e da cena para conquistar a vaga. O time não fingiu lesão, não recorreu à cera, o goleiro não demorou na reposição, o técnico não empregou substituições para assegurar alguns minutos de paralisação.

Venciam de 2 a 0 e os atletas continuaram atacando a Bélgica. Venciam de 2 a 1 e continuaram atacando. Cederam o empate em cinco minutos e continuaram atacando. O jogo estava ganho na metade do segundo tempo, e não recuaram, não mudaram o esquema tático, não criaram um bloqueio, não protagonizaram o anti-futebol pelo resultado.

Samurais da teimosia, não abriam mão do espetáculo ofensivo, da katana do drible e da técnica, alheios à competitividade. Atuavam pelo prazer da emoção e, acima de tudo, pelo gosto de viver os seus princípios de retidão e caráter.

Prevalecia o heroísmo da bondade do Ultraman, do Pokémon, do National Kid.

No fim dos acréscimos, quando já estourava o cronômetro para a prorrogação, tinham um escanteio a seu favor. Bastava prender a bola em triangulação no canto do campo e provocar faltas. Qualquer seleção faria isso, menos o Japão, o incorruptível Japão, o suicida Japão, o encantador e puro Japão, que continuou atacando, preferiu tentar o gol mais uma vez, permitindo o contra-ataque letal da Bélgica.

Estavam mais dispostos a jogar do que a vencer. Assistimos a uma demonstração única e rara do futebol de antigamente. Foi uma viagem ao túnel do tempo dos anos 50.

A derrota prolongou o encanto: futebol não é feito de justiça.

Crônica publicada em 03/7/2018

A CABEÇA DA AGULHA

Tinha que pregar um botão em minha camisa. Já tinha definido a roupa para o aniversário da tia de Beatriz. Estava atrasado. Não queria olhar de novo todo o guarda-roupa para uma nova escolha. Deduzi que seria menos trabalhoso repor o botão, já que a calça combinava com a estampa que combinava com o casaco que combinava com os sapatos.

Sofria para atravessar o algodão na cabeça da agulha. Ia pelos cantos, jamais por dentro. Como um gol falso festejado pela torcida, quando a bola vai pelo lado de fora da rede.

Apelei para o meu filho:

- Você pode pôr a linha para mim? Tem olhos melhores que os meus.

Ele colocou sem muito esforço. Atingiu o alvo até com humilhante facilidade.

Sem querer, eu reencenava com o meu filho o gesto e as palavras de minha mãe comigo na infância. Iguaizinhos. O flashback foi assustador. Eu me revi pequeno na cozinha, e a mãe me confiando à missão: “Seus olhos são melhores que os meus!”.

Eu me achava útil costurando a rara fragilidade ocular de minha mãe; ela, que parecia não apresentar defeitos.

Dificilmente ela pedia ajuda, mania dos pais. Ela já havia tentado em vão seguir sozinha, molhando a ponta do fio com a saliva, sem resultados imediatos. Ladeava o aço, com a visão embaralhada e um quê de ansiedade.

O ato de encilhar a linha na agulha demonstrava ser mais grandioso do que eu imaginava. Três gerações - avó, pai e filho - se juntavam numa mesma mão, atravessando três décadas. O tempo corre, mas a família permanece se ajudando.

Quantas afirmações de minha mãe, inconscientes e preciosas, ainda existem em mim para serem repetidas?
Havia tanto amor envolvido naquela banalidade doméstica: a esperança de costurar as próprias roupas, a decência do pouco, o cuidado com aquilo que se tem

e também a felicidade de realizar uma tarefa a dois, que poderia vir a ser de uma solidão ingrata.

Na cabeça da agulha, três cabeças pensavam simultaneamente, três cabeças se amavam. O nó da garganta selava a nossa sincronicidade.

O que me leva a parafrasear, generosamente, a Bíblia: é mais fácil passar o filho pelo fundo de uma agulha do que entrar o rico no Reino de Deus.

Publicado em Jornal Zero Hora em 03/7/2018

QUANDO CAÍA A LUZ

Era fundamental, há duas décadas, ter uma gaveta em casa com velas e lanterna. Todo mundo conhecia o paradeiro de emergência na hora em que faltava luz. E faltava luz com muita regularidade.

Não contávamos com as luzinhas do celular e recursos tecnológicos. Tratava-se de artigos necessários para manter a segurança. Quase como uma malinha de primeiros-socorros.

Aprendíamos a apalpar os móveis. Treinávamos os movimentos no escuro. Dançávamos de olhos fechados pelos corredores. Driblávamos as quinas das mesas e as pernas das cadeiras.

O mais encantador da queda de energia vinha a ser o silêncio.

Somos tão olhos que não reparamos na barulheira que nos cerca e que não nos permite em nos fixar em quem está próximo.

Os aparelhos desapareciam e nos reencontrávamos com a quietude. Começávamos uma busca pelo outro pela respiração. Significava uma trégua de grande intimidade com os pais. Sem a visão, queríamos estar perto deles, não desejávamos fugir para outros lugares e tarefas.

- Onde está? Fique aí que vou lhe resgatar.

Sentávamos no sofá, abraçados, amontoados, com as velas bruxuleando ao redor. Precisávamos nos ocupar com histórias. Não sofríamos com a concorrência de passatempos e distrações.

Predominava uma imprevisível exclusividade. Realmente prestávamos atenção no pai e na mãe, nas nossas lembranças de pequeno, nos causos e nas brigas engraçadas, nos nossos pequenos poderes. A mãe recordava que a Carla já sabia ler com três anos, de que o Miguel acreditava que poderia voar de super-homem segurando-se nos varais, de que o Rodrigo devorava a enciclopédia como se fosse uma história com início-meio-fim e que eu, um dia, me escondi numa cova aberta de cemitério de Caxias e me fingi de morto para dar susto nos outros como se estivesse ressuscitando.

E nos sentíamos especiais, amados, admirados, guardados. Eu me orgulhava de meus irmãos: havia esquecido de como eles eram legais.

Gritávamos de felicidade:

- Contem mais!

Ríamos alto, batíamos palmas, enquanto os pais nos devolviam as nossas vidas, testemunhas privilegiadas de nosso crescimento.

Na hora em que voltava a luz, estranhamente, parecia que saíamos de um transe de ternura e cada um retornava para a sua solidão.

Mas ainda guardo a certeza de que o apagão nos ressarcia a luz própria. Iluminávamo-nos pelas nossas vozes. E esperávamos, ansiosamente, pelo próximo escuro para nos dar as mãos de novo.

Publicado em Donna ZH em 01/7/2018

CASAR É PARA GENTE GRANDE

Casar é coisa séria, para gente grande.

Você transformará os seus hábitos. Não poderá mais se mostrar disponível, assanhado e aberto a risos e flertes. Isso não significa que será mal-humorado e assumirá uma carranca dali por diante. Não haverá alteração em termos de ternura e acolhimento para os amigos.

A postura muda com quem não conhece. Terá que ser direto sobre o seu estado civil, jamais evasivo, para não transmitir a imagem falsa de disponível e interessado.

Frustrará diálogos engraçadinhos, cortará insinuações e indiretas, colocará os pingos nos is, freará as segundas intenções, não avançará em perguntas só para ver até onde vai.

Precisará ser econômico com as dificuldades da relação - brigas pontuais não devem ser confidenciadas a terceiros sob o risco de entender que é infeliz e que o matrimônio está por um fio. Uma confissão pode levar a fofoca e logo expor a sua mulher às maldades e constrangimento público.

Resolverá as diferenças dentro do seu casamento, nunca fora. A cada ameaça do passado ou contato com ex, cabe descrever o que aconteceu na hora, não depois, não aos poucos, com mentiras parciais. Seja simples: a fulana me ligou, a fulana me mandou mensagem.

Não poderá se escandalizar com qualquer acesso da esposa as suas redes como se fosse invasão de privacidade. O celular ou o laptop não são cofres de intimidade, mas aparelhos, somente aparelhos, de uso comum.

Na web e aplicativos, não poderá manter um comportamento diferente das suas abordagens reais. Você e seu avatar continuam sendo o mesmo sujeito com aliança no dedo. Permanece casado na esfera virtual, o que requer controle na emissão de likes e comentários. Não saia atirando emojis para todos os lados. Crie um padrão, reserve um código de linguagem exclusivo a quem ama e outro para os demais, assim evitará o ciúme. Por exemplo, destine olhos de coração apenas para a sua esposa.

Grosseria é pressa. Dispense tempo sendo educado no dia-a-dia. Não é porque a pessoa mora com você que lhe dá o direito de atalhar conversas. Encontre paciência para se explicar, narrar os seus pensamentos, já que a sua companhia não tem ideia do que passa em sua cabeça.

Pensará as refeições a dois, as férias a dois, as folgas a dois, as contas a dois, as adversidades a dois, sem a possibilidade de resolver tudo sozinho, pois interfere na condição alheia.

Não entenda a reserva e a discrição como privação e censura. Casamento não é prisão. Você assumiu um compromisso consciente e toda a escolha traz alguma renúncia - não há como acumular modos de vida.

Amar alguém não é perder a liberdade, mas partilhar responsabilidades. Bem-vindo ao mundo adulto do amor.

Crônica publicada em 01/7/2018

A NOSSA RECEITA

Nunca discuto com Beatriz. Nunca brigo com Beatriz. Quando um não concorda com algo, deixamos para ver quem tem razão no dia seguinte. Damos 24h para cada um pensar, escolher as melhores palavras e provar ou desistir de seu argumento. Às vezes nem conversa tem, só o pedido de desculpa de uma das partes. O perdão vem com aquele beijo que desfaz a birra por completo. Não sei se é perdão, talvez seja saudade. A saudade é o voto de desempate entre duas pessoas.

O romance deve ser civilizado. Até porque ela tem todo o direito de pensar e sentir diferente. A falta de consenso não pode destruir o nosso amor.

Em alguns momentos, eu vejo que ela faz o que quero mesmo sem vontade. Ela também sabe que eu faço o que ela quer mesmo sem convicção, e a felicidade dissolve o egoísmo. Não nos prendemos em cobranças. Somos inteiros ainda com desejos parciais. Não há caderninho de fiado para apontar quem realizou mais ou menos. O que ela me oferece já é muito para mim e somente tenho a agradecer.

A química é consequência direta de nosso começo. Antes de ficar, deflagramos uma guerra de mensagens. Não nos entendíamos, possuídos em impor as nossas vontades. Dizíamos o que queríamos da vida, não escondemos os nossos planos, apresentamos nossos defeitos e piores manias. Oferecemos motivos suficientes para o outro desistir enquanto havia tempo. Ela me chamava de insuportável, eu a achava esnobe.

Mas não é que derrubamos os medos com tamanha sinceridade? Chegou um momento em que ríamos das brigas, e nem mais nos defendíamos, ofendidos, dos ataques.

E o riso dela é tão bonito que perco o fio dos pensamentos mesmo, só para rir junto e voar perto de sua boca.

Tudo o que era para ser resolvido aconteceu antes da relação, não durante a relação. Sem enfrentamentos no início, o risco é se casar com um estranho e somente descobrir a verdade desagradável no meio da convivência.

Não querer se incomodar durante a paixão é comprometer a lealdade tempo depois.

Por isso, o mar é uma ilustração de nossos afetos. As ondas são violentas no raso de propósito, para nos preparar ao mergulho. Vencendo a rebentação, as águas se tornam calmas e plenas.

Amar foi uma decisão madura, minha e de Beatriz, após longo namoro de ideias e sonhos.

Crônica publicada em 29/6/2018

O MAIOR AMOR DA VIDA

Ele queria descobrir qual foi o maior amor de sua vida.

O Destino lhe deu a chance de um encontro.

Deveria se dirigir à entrada da Floresta, no domingo, às 14h. E que não se atrasasse.

Talvez aparecesse um antigo relacionamento do passado. Talvez um novo nome do futuro.

Quem terá sido?, ele devaneava, repassando as suas namoradas e romances desde a sua adolescência.

Quem poderá ser?, ele desenhava, no pensamento, o retrato-falado da pessoa ideal, com as características que mais gostava nos outros.

Logo que chegou ao local, com ansiosa antecedência, o celular parou de funcionar e o relógio engasgou os seus ponteiros.

Aflito com o horário marcado, viu uma raposa por perto e perguntou:

- Que horas são?

A raposa encolheu os ombros:

- Não existe tempo para mim, só o agora.

O sol baixava rapidamente e ele já estava angustiado, até que enxergou um castor mexendo nas folhagens e também perguntou que horas eram.

- Não existe tempo para mim, só o agora - respondeu o castor, que continuou a cavar o seu túnel.

Anoiteceu, e o homem se consumia em dúvidas e frustrações. Errou o dia, o lugar, o horário?

Neste momento de sombra, passou voando uma coruja e ele se aproximou da desconfiada ave.

- Sabe que horas são?

- Não existe tempo para mim, só o agora.

E foi quando entendeu que ele ainda não tinha conhecido o grande amor de sua vida.

Preso ao passado e preocupado com o futuro, absolutamente não vivia o agora para encontrar alguém de verdade.

Crônica publicada em 28/6/2018

SOU DE ERRAR MUITO

Sou de errar muito, com vontade. Exploro todas as possibilidades à exaustão. Abandono um laço com a consciência limpa, o coração lavado. Melhor do que viver em realidades paralelas, com pessoas paralelas e afetos educadamente interrompidos.

Não me rogo por vencido. Não quero guardar alguma dúvida de que seria diferente e que poderia ser diferente se tivesse feito algo a mais, dito algo a mais.

Levo o amor comigo até o constrangimento, até o vexame, até ver que não tem volta. Uso as palavras necessárias e as desnecessárias, ofereço gestos importantes de agradecimento e gratuitos de raiva. Insisto por todos os lados para descobrir a verdade.

Ando pelas afirmações e, na ausência de saída, queimo as perguntas.

Voo, caminho, rastejo. Saio de cena só quando morre a esperança.

Mas não deixo o medo levar parte de minha vida.

Quem erra pouco também tentou pouco.

Crônica publicada em 27/6/2018

PARECIDO COM OS MEUS PAIS

Numa discussão, a minha filha tentou me diminuir:

- Você está igualzinho aos seus pais!

Eu emudeci por instantes, para entender a comparação e pensar quem realmente são os meus pais.

Meus pais me ensinaram a andar, a falar, a pedalar, a nadar, a conviver. Meus pais pagaram o meu estudo e me deram a liberdade de ser jornalista, jamais amaldiçoaram a minha escolha, completamente diferente da profissão deles.

Meus pais apostaram em mim quando o meu rendimento estava abaixo da média e festejavam quando alcançava as notas.

Meus pais trabalhavam dois turnos e encontravam forças para cozinhar de noite e deixar pronto o almoço do outro dia.

Meus pais me disciplinaram a ser educado nas adversidades e a ser gentil até com quem não merecia - bons modos independem de como sou tratado.

Meus pais são honestos, dedicados, carinhosos, esforçados. Nunca roubaram. Nunca burlaram a lei.

Meus pais foram sinceros mesmo quando eu não sabia ouvir, foram compreensivos mesmo quando eu não sabia falar.

Meus pais admitiram as mais estranhas namoradas dentro de casa. Eles me incentivaram a sair de noite com os amigos, apesar do medo e da vigília, apesar de suspirarem somente quando eu colocava a chave na porta.

Meus pais me inspiraram a viajar e não ser menor do que o medo do desconhecido.

Sou mesmo filhinho do papai. Sou mesmo filhinho da mamãe.

Isso não é insulto, é elogio, minha filha. Eu me pareço com eles, eu sou igual a eles, cada vez mais.

Tomara que você possa se parecer também com os seus avós.

Crônica publicada em 26/7/2018

NO TEMPO EM QUE OS CARROS TINHAM CAPÔ

Uma das grandes alegrias de meu pai e de minha mãe era colocar os quatro filhos no capô da Belina.

Eu me recordo da sensação feliz de sentar no aço quente do motor, eu me esticava até o para-brisa, com os pés estirados. Cabia a turma inteira na foto.

Prosperava um sentido de liberdade inigualável naquele rápido recreio da família, com a brisa agigantando os cabelos.

Vinha a ser o momento de admirar a paisagem da Serra durante trégua da viagem até a casa de meus avós, em Guaporé. Parávamos meia hora em algum belvedere, diante da calmaria das montanhas, para lanchar cuca com as mãos e apontar para o voo dos pássaros.

A idílica cena deve soar absurda em nossa época. Hoje, os capôs não servem como sofá para as crianças. Os carros são frágeis, com outra textura, quase de plástico. Se alguém sentar no capô, amassa tudo.

Além de o desenho fabril ter seguindo a linha abaulada. Todos os veículos atualmente têm complexo de Kombi. A frente é curva, mais para um escorregador do que para um jardim.

Os carros na minha infância ostentavam um canteiro quadrado que permitia a interação e o piquenique. No Galaxy, dava para jogar amarelinha. No Opala, eu girava pião sem arranhar. Na Veraneio, podia montar um palco e dançar chula em cima. O Corcel oferecia estrutura de pôquer para distribuir o baralho e jogar às ganhas.

E ainda havia o Corcel, o Chevette, o Dodge, o Maverick com uma infinita área de lazer. Só o Fusca se diferenciava no contexto da reunião da parentela, costumava ser automóvel de solteiro ou de casal recente.

Mas os carros grandes também contribuíam para os desfiles. Assisti à passagem da miss Rio Grande do Sul pela Avenida Osvaldo Aranha. Ela acenava sentada no capô, poderosa, com os reflexos do sol na lataria e na sua coroa. Na Semana Farroupilha, as prendas também ocupavam o destaque na carroceria, com o vestido espalhado em suas várias dobras e camadas de renda, qual vitória-régia.

O capô já foi uma mesa familiar, o nosso mirante, o nosso ponto favorito de encontro, em que enxergávamos os problemas e desavenças de cima, muito menores do que realmente são.

Publicado em Jornal Zero Hora em 26/7/2018

CARTA AOS MEUS FILHOS ADOLESCENTES

Nossa relação mudará, não se assustem, continuo amando absurdamente cada um de vocês. Estarei sempre de plantão, para o que der e vier. Do mesmo jeito, com a mesma vontade de ajudar.

É uma fase necessária: uma aparência de indiferença recairá em nossos laços, uma casca de tédio grudará em nossos olhares.

Mas não durará a vida inteira, posso garantir.

Nossa comunicação não será tão fácil como antes. A adolescência altera a percepção dos pais; virei o chato.

Perdi o favoritismo, não adianta surgir quicando uma bola e convidá-los para jogar - não verão graça nenhuma. A bola só trará preguiça. Seguirão com as suas conversas no celular e seus afazeres. Levarei várias negativas em meus convites para piscina, cinema, teatro e jantares.

Prometo não levar para o lado pessoal, não ficarei ofendido por ser posto em segundo plano.

Eu me preparei para a desimportância, guardei estoque de cartõezinhos e cartas de vocês pequenos, colecionei na memória as declarações de “eu te amo” da última década, ciente de que não ouvirei nenhuma jura por um longo tempo.

A rotina será mais árida, mais constrangedora, mais lacônica. É um período de estranheza, porém essencial e corajoso. Todos experimentam isso, em qualquer família, não tem como adiar ou fugir.

Serei obrigado agora a bater no quarto de vocês e aguardar uma licença. Existe uma casa chaveada no interior de nossa casa. Não desfruto de chave, senha, passaporte. Não posso aparecer abrindo a porta de repente. A educação aumentará a minha ansiedade, desesperará a minha saudade. Às vezes mandarei um WhatsApp apenas para saber onde estão, mesmo quando estiverem dentro do apartamento. Passarei essa vergonha.

Perguntarei como estão e ganharei monossílabos de presente. Talvez um ok. Talvez a sorte de um tudo bem. As confissões não acontecerão espontaneamente.

Nem tenho como arrumar a bagunça da escrivaninha e as roupas pelo chão. Irei me conter para não mexer em nada. Que difícil ser pai e não interferir. É uma profunda reeducação, doloroso aprendizado.

Não há mais como aparecer mandando, tudo o que eu falar receberá uma resposta irônica, e exigirá uma explicação de minha parte.

Durante a infância, vocês aceitavam qualquer parada. Eu é que me mostrava o difícil, o ocupado pelo trabalho. Puxavam a manga de minha camisa para largar o computador e cumprir as promessas. A situação se inverteu. Hoje sou o mendigo pela atenção de vocês.

Não haverá alegria para passear comigo pela rua. O sol é capaz de aborrecê-los. O prato do almoço vai esfriar na mesa - óbvio que me avisarão que querem dormir e comer mais tarde, de preferência sozinhos.

“Me deixe em paz” despontará como refrão diante de qualquer cobrança.

Precisarei ser mais persuasivo. Nem alcanço alguma ideia de como, para mim também é uma experiência nova, tampouco sei agir. Os namoros e os amigos assumirão as suas prioridades.

Verei vocês somente saindo ou chegando, desprovido de convergência para um abraço demorado.

Serei o velho de vocês. As minhas piadas serão velhas. O meu vocabulário será velho. As minhas implicâncias serão velhas. As minhas ordens serão velhas. Os meus programas serão de velho.

Já não me acharão um máximo, já não sou grande coisa. Perceberam os meus pontos fracos, decoraram os meus defeitos, não acreditam mais em minhas histórias, não sou a única versão de vocês. Qualquer informação que digo, vão checar no Google.

Mas vamos sobreviver: o meu amor é imenso para resistir ao teste da diferença de idade e de geração. Espero vocês do outro lado da ternura, quando tiverem a minha idade.

Publicado em O Globo em 25/6/2018

VOCÊ JURA

Quando você sofre por amor pensa que o outro vem sofrendo igual. Sem comunicação desde à separação, sem troca de mensagens, ainda acredita que está casado na dor.

Se não come, também jura que o outro iniciou greve de fome. Se não sai, também jura que o outro se trancou em casa. Se não toma banho, também jura que o outro é um mendigo. Se chora, também jura que o outro derrama lágrimas pelos cantos. Se só escuta as músicas da relação, também jura que o outro fica repetindo as trilhas ininterruptamente. Se não conversa com ninguém, também jura que o outro se mantém distante dos amigos. Se revisa as fotos felizes do casal, também jura que o outro não larga os álbuns prediletos. Se dorme com o celular no travesseiro, também jura que o outro aguarda a sua ligação.

Até que, cansado da esperança, depois de semanas, decide espiar as redes sociais da antiga companhia e se espanta com a retrospectiva de viagens, festas, sorrisos e disposição física. Até descobrir o quanto se enganou à toa com a telepatia. Até se sentir traído mais uma vez, agora pela falta de correspondência no luto.

Separação por fora é, infelizmente, separação por dentro.

Crônica publicada em 25/6/2018

OS SINAIS DE QUE SE ENVOLVEU COM UM LOUCO

Na paixão você só quer ver o que acredita. Os olhos são guardados no estojo dos óculos.

É comum não enxergar os sinais de que se envolveu com um perseguidor. Todo perseguidor simbolicamente mija no poste para demarcar território. Não quis reparar por educação, tão dedicado a acreditar na história de amor e idealizar o encontro.

Ninguém se envolve com um louco sem receber avisos. E não são poucas as advertências. O erro é fazer de conta que é uma exceção ou, mais grave, entender tudo ao contrário.

Se no primeiro encontro, a pessoa lhe morde, banca o Drácula em seu pescoço, deixa um chupão onde o colarinho da camisa não tapa, não significa que o sexo foi selvagem, não ache que é bonito, não são medalhas da paixão, não corresponde a uma entrega total de um animal no cio, não sinta orgulho da noite virada em claro, é o indício de que se envolveu com alguém histérico e ciumento.

É um stalker dando as suas primeiras demonstrações de desequilíbrio e de alternância de humor. Ao admitir as marcas e até se orgulhar, assumirá o papel de incentivador da possessividade.

Qualquer exagero sem intimidade prova uma carência descomunal e perigosa.

Quem arranha a pele arranhará o seu carro numa despedida. As unhas serão pontas das chaves depois em sua lataria.

Os ataques sadomasoquistas somente se agravam com a progressão da convivência, a ponto de normalizar discussões e barracos.

Se o par amoroso tem o costume de se irritar quando visualiza as mensagens e não responde em breves minutos, não compreenda como sintoma da saudade, ele será capaz de persegui-lo pelas ruas no rompimento da relação.

Se ele não gosta quando sai com decotes ou com corpo mais à mostra, não aceite como preocupação pertinente ao seu modo de vestir, pois tratará de insultar a cada foto acompanhada de um colega de trabalho.

Se ele não suporta likes de amigos e comentários engraçados em suas redes sociais, não veja como vigília bem-intencionada contra prováveis críticas, é mais um trailer do filme de terror, inventará fakes para inferniza-lo no fim do namoro.

Há tipos que não acolhem a contrariedade e a recusa, e se debruçam sobre a missão suicida de explodir com as suas conexões sociais. Mergulham no ressentimento puro e escolhem a vingança como uma forma de continuar amando. Não desejam a sua felicidade, mas dominá-lo a ponto de não ter mais ninguém por perto.

A polidez no início da relação e o receio de falar a verdade permitem a criação de monstros. Eles não crescem desprovidos de sua concordância e de seu carinho na cabeça.

Corte o mal pela raiz antes de ser obrigado a morder os frutos envenenados da obsessão.

Publicado em Donna ZH em 24/6/2018

RATOS

Eles dizem gostar de mulher, mas são misóginos.

Trocam putarias no celular, expõem partes do corpo feminino como se não existisse o todo, alardeiam a sua virilidade, realizam a competição de quem come mais e de quem mente mais. Contam vantagem entre amigos, apenas entre amigos, porque desejam unicamente a aprovação de um outro homem, não sabem enfrentar uma mulher.

Eles odeiam a mulher. Eles temem a mulher. Eles morrem de receio da mulher.

São covardes. Aproveitam-se de uma mulher só quando está desacompanhada, bêbada, desacordada. Só quando ela não entende o idioma.

Exploram as boas intenções de uma estrangeira para cantar em coro desaforos e fazê-la de idiota.

Idiotas são eles, roedores de restos.

Acham engraçada a violência, pois não possuem educação para se destacar. Guincham. Absolutamente guincham dentro de suas gargalhadas.

São os assediadores compulsivos, os estupradores do inconsciente.

Aqueles que pingam Boa-noite Cinderela no copo de desavisadas, já que conversando não têm chance nenhuma.

Aqueles que forçam um relacionamento, forçam sexo e não escutam as vogais de um não.

Aqueles que juram que dinheiro compra amor, compra silêncio, compra impunidade.

Eles perderam o direito de ter uma mãe. Perderam a chance de ter uma mãe. Perderam a decência de ter uma mãe. Saíram de um esgoto, não de um ventre.

Constrangem e humilham sempre em bando. Sozinhos, acabam sendo medrosos.

São capazes das maiores brutalidades para soar engraçados, para ganhar a simpatia do seu circo de colegas.

Não são homens, mas ratos.

Crônica publicada em 21/6/2018

CASINHA PARA OS PAIS

Tenho inveja dos jogadores de futebol. Logo que assinam o primeiro contrato profissional com um grande time, o pontapé inicial do mundo adulto é comprar uma casa para a mãe. O maior interesse deles é resolver a vida dos pais, realizar o sonho da velhice feliz.

Para quem se manteve com pouco, no pouco, na economia de se virar em muitos para juntar o básico no mês, o nome na certidão de registro de imóvel é a verdadeira certidão de nascimento.

Algumas pessoas realmente nascem com a casa própria - vem um alívio de ter finalmente o seu cantinho depois de viver emprestado e de favor toda a trajetória.

Os jogadores entendem o valor desse ideal. Apesar do deslumbramento adolescente com o sucesso, não pensam egoisticamente, não se esbaldam em gastança para o seu benefício, buscam retribuir, antes de tudo, os sacrifícios e renúncias de sua senhora. A prioridade é a mãe, depois que vão caçar um lugar para si. Anseiam pela benção das suas santas, agradecendo as madrugadas viradas e as marmitas das viagens aos treinos.

Acabo chorando com o choro materno diante da loteria do filho. Com o beijo do marmanjo na testa suada de sua velha. Controlo as lágrimas dos olhos, porém elas são caprichosas e insistem em escapar pela boca.

Não importa que seja clichê, o clichê pode ser tão verdadeiro.

O que me dói, por outro lado, é perceber tantos filhos com condições, bem resolvidos financeiramente, esclarecidos intelectualmente, com carreiras sólidas e de projeção, que abandonam os próprios pais à sorte.

Nem é o caso do gesto grandiloquente de oferecer uma residência, mas pelo menos deveriam separar um quartinho para os seus protetores. Só que nem isso, sequer planejam um espaço mínimo em sua casa, um espaço com nome e sobrenome, para eles se sentirem à vontade e acolhidos.

Fazem a maior diferença as gavetas vazias para colocar as roupas da mala, fazem a maior diferença os lençóis cheirosos e a toalha dobrada na cama, fazem a maior diferença a véspera e ser desejado.

Simplesmente os filhos abrem o sofá da sala, como que dizendo que os pais são hóspedes do amor, que devem pernoitar e jamais permanecer.

Crônica publicada em 20/6/2018

O INÍCIO DA INFIDELIDADE

Não é nenhuma operação complexa definir a origem da infidelidade. Não depende de nenhum truque adivinhatório e macete psicanalítico.

A traição tem o seu início quando você passa a apagar as mensagens do WhatsApp. Se está apagando é que sabe que fez algo errado, que falou o que não devia, que passou do ponto, que abriu a guarda.

Ao deletar o histórico de um bate-papo e sumir com as próprias palavras, já tem a consciência do perigo daquele contato.

Você automaticamente se condenou, percebeu que existe um farto potencial para a sua companhia concluir de que se trata de um novo romance.

Conhece muito bem a sua namorada ou namorado, a sua esposa ou marido, para antecipar o que será dito a respeito da conversinha mole.

Se avaliou o material como ameaça à relação ou como gerador de ciúme, era para logo dar um basta ao mi-mi-mi.

As regras da monogamia são claras. Não existe meio-termo, atenuantes, desculpas. Sedução é traição, assim como um beijo é traição, assim como o sexo é traição.

Eliminar o conteúdo do celular tampouco trará tranquilidade, apenas lhe deixará com mais pinta de culpado.

O correto é voltar lá e desfazer insinuações, esclarecer as entrelinhas e objetivamente mostrar que não está a fim.

Remover as provas é dar seguimento para o erro, é proteger o flerte com o anonimato, é guardar a escada para depois pular a cerca, é assumir o risco de envolvimento, por mais que diga que não é nada, que só ocultou para não perder tempo explicando e que desejava evitar brigar por bobagem.

Quem não deve não teme, não precisa de modo algum adulterar os fatos. Deixa tudo documentado, registrado, do jeito que aconteceu.

WhatsApp editado é deslealdade.

Publicado em O Globo em 20/6/2018

MALDITO INTERFONE, BENDITO PORTÃO

Hoje o interfone toca e todos de casa já perguntam: quem deve estar incomodando a essa hora? Não importa o turno, o barulho intermitente é um dos menos desejados pela família.

Qualquer visita soa como perturbação da ordem doméstica. O imprevisto surge como sinônimo de problema. As pessoas se fazem de surdas para não sair do conforto de seus afazeres e cantinhos. Atender ao interfone é se responsabilizar pelo trabalho de descer. Ninguém quer assumir o compromisso.

Não sei em qual momento de nossa vida as visitas passaram a ser malquistas, mas isso significa o quanto reduzimos a nossa capacidade de acolhimento. Somos avarentos com o nosso tempo. Não nos permitimos distrações generosas.

A residência se transformou num bunker de isolamento, um espaço fóbico, uma extensão do escritório, onde não se pode sacrificar o andamento das demandas planejadas e dos objetivos a se cumprir.

Quando exatamente que passamos a odiar as visitas, a nos afastar do ato de receber quem gostamos? Até os amigos são penetras de nossa felicidade.

Talvez seja uma decorrência do uso crescente do celular, poder ligar a qualquer instante serviu também para restringir a convivência.

Os encontros com os nossos confidentes são monitorados, agendados, como se estivéssemos confinados em uma cela.

Na minha infância, no fim dos anos 70, não funcionava assim, com essa monstruosa indiferença.

Não existia nem campainha. Tínhamos que bater palmas no portão e gritar o nome do morador: Ó Ó Ó Fulano.

Feliz desse tempo em que casas eram aplaudidas. Realizávamos uma serenata à capela. Os latidos dos cachorros nos ajudavam a sermos vistos. Aparecíamos sem avisar, sem ter a certeza se haveria gente para nos receber. Não praguejávamos a viagem perdida, não se reclamava das tentativas. Às vezes batíamos com a cara na porta, nem por isso nos sentíamos ofendidos e maltratados. Sempre explicávamos com modéstia: “estava por perto”.

Mas nada apagava a emoção quando alguém nos localizava na janela e nos convidava a entrar, com sincero interesse.

E nos agradecia a surpresa, realmente feliz.

E nos convidava a almoçar ou a jantar, não por mera educação, e sim com uma leveza indescritível, pondo mais um prato na mesa e as conversas em dia.

Não inventávamos desculpas para os amigos. Mentíamos menos.

Publicado em Jornal Zero Hora em 19/6/2018

TITE: O PROFESSOR

E se o Tite é El Profesor de Casa de Papel? E premeditou os erros da Seleção Brasileira com antecedência maquiavélica? E somente criou pistas falsas?

Se ele imaginou os desdobramentos da partida com a Suíça? Se ele previu que Neymar seria caçado e sofreria dez faltas - e fez questão que ele, o seu comandante na Casa da Moeda, o seu Berlim, monopolizasse a atenção dos seus defensores?

Se ele pediu para Neymar mudar o corte de cabelo, assim formaria um novo fato, um golpe publicitário, e desviaria o foco do que aconteceria em campo?

Se ele planejou os erros de arbitragem para denunciar que nada adiantaria a retaguarda do juiz de televisão porque quem manda é o árbitro em campo? Se foi uma armação inclemente, enquanto todos só elogiavam a tecnologia, para mostrar que o futebol não é exato? Curioso que o goleiro Alisson (Oslo) não tenha saído na pequena área (será que ele recebia ordens?).

Se ele treinou o chute indefensável de Philippe Coutinho, o seu Rio, de fora da área para demonstrar o poder bélico?

Se ele mandou Paulinho, o seu Denver, desaparecer para as suas infiltrações não serem mais manjadas?

Se não foi ansiedade, mas nervosismo calculado de atores?

Se ele deixou intencionalmente o lado direito do Brasil capenga com Danilo, para que os adversários tentem atacar por lá nas próximas partidas e ele possa articular ciladas?

Se ele forçou o empate com a Suíça para tirar o favoritismo das costas da seleção e surpreender com mais eficácia no restante dos confrontos? Afinal, não pôs nada a perder, era o oponente mais difícil do grupo; ganhando da Costa Rica e da Sérvia ainda obtém a liderança da chave. Melhor do que treino fechado para preservar segredos é o jogo aberto e ensaiado para confundir.

Se ele arquitetou o tropeço para readquirir a liberdade de ação, usou do blefe com o objetivo de diminuir as expectativas e elevar a confiança do plantel?

Se ele, ciente dos pontos perdidos dos favoritos como Alemanha, Argentina e Espanha, não quis se destacar demais para não aumentar a pressão?

Se ele fez um país inteiro de refém para ter mais tempo para produzir a réplica da taça de ouro da FIFA?

Se ele está sabendo de tudo com os seus mapas e máscaras, já pensou nisso?

Não farei spoiler, acompanhe o próximo episódio na sexta.

Crônica publicada em 18/6/2018

NAMORO NÃO É BRINCADEIRA

Leitora diz que vem passando por uma situação complicada com quem ama. Lista tudo o que julga de entrave: as discussões, o medo de se entregar, a família difícil. E não cita um único detalhe: ele tem namorada. Como se fosse uma irrelevância, um detalhe insignificante, um cravo na pele, que basta espremer com as unhas para tirar.

Omite o essencial, mas de propósito: “ele merece ser meu, eu mereço ser dele”. A namorada não existe, é apenas uma simples barreira removível.

O que me faz entender o pouco caso que se tem com o namoro, que é tratado como uma situação provisória, na qual se pode sair a qualquer instante, sem trauma e vínculo.

Namoro não teria o status de casamento. Assim poderia ser rompido com desinteresse.

De acordo com a teoria da leitora, qualquer namorado ou namorada estaria ainda disponível para cantadas e flertes, para assédios e conquistas. Flutuaria pelo mundo virtual livre de contrato.

Quantos acreditam, como ela, nessa distorção e não respeitam os beijos e as mãos dadas de pares românticos e avançam o sinal? Aproximam-se com segunda intenções, aproveitando as brechas das crises e das brigas, mostrando-se compreensivos e carinhosos. Exploram a fragilidade da confissão para se dar bem, vender as suas virtudes e se posicionar como uma opção confiável.

Quem já não viu um colega de trabalho escolher de alvo alguém namorando e investir no papel de confidente para questionar a relação, a ausência de felicidade, confundir a cabeça inocente da pessoa, argumentando que merecia mais e não deveria se contentar com migalhas?

O que há de urubus e abutres rondando o céu com as asas falsas de cupidos. São interesseiros, oportunistas, promovendo golpe de estado.

A sensação que se impõe, altamente irreal, é que os namorados não estariam juntos de verdade, mas partilham um estágio probatório, de teste, entretidos apenas enquanto não chega o amor eterno. Ou seja, aberto a ataques dos demais solteiros.

Ora bolas, namoro é compromisso como casamento. É um pacto de convivência e de lealdade tão importante quanto o registro no cartório. Não diminui a gravidade da infidelidade. Não apaga os sentimentos de exclusividade dos envolvidos. A dor diante de casos e mentiras é igualmente devastadora.

Não incomode quem se encontra acompanhado. Reconheça o valor do romance alheio. Nenhuma felicidade será legítima depois de estragar e cobiçar a vida do próximo.

Crônica publicada em 16/6/2018

quinta-feira, 21 de março de 2019

A PIOR OFENSA DA MULHER PARA O HOMEM, E DO HOMEM PARA A MULHER

Homem odeia quando a mulher lhe chama de pobre, pão-duro, avarento. Ele ainda vê a sua virilidade como sinônimo de poder, de status social. É como se ele ficasse ofendido por algo que está fora dele, que não depende dele. Talvez, porque, por pura bobagem, acredita na mentira de que a mulher gosta mesmo de dinheiro (o perfil feminino anseia, na verdade, uma única coisa: se sentir admirado e desejado, não importando se o filme é de baixo orçamento, não tem nenhuma ligação com a opulência).

Não há como entender o quanto o macho se sente depreciado pela posse, o quanto se julga pelo fundo de sua conta. Tanto que a impotência costuma flertar com quem está desempregado.

Homem ainda dentro de si não se livrou da imagem retrógrada de provedor. Acha que vale nada se não está sobrando financeiramente. Precisa ostentar para ser, gastar para aparecer. Ainda age como uma criança birrenta numa discussão de relacionamento.

Dinheiro é compensação para a ala masculina, ou para a sua falta de beleza ou para a sua ausência de sensibilidade, o que cria distorções no envolvimento: enxerga interesse onde há bons sentimentos. Trata-se de uma desvalia paranoica, sempre pensa que alguém vai namorá-lo com segundas intenções. Jura que o amor pode ser comprado - não largou a idade medieval dos dotes.

Pior que as insinuações de pobretão, que terminam sendo indiretas sobre a sua sexualidade, para derrubá-lo numa briga, só mesmo os golpes que atingem em cheio os países baixos, como broxa ou pequeno.

Já, por outro lado, a mulher se preocupa mais com o seu caráter, o que demonstra o quanto é evoluída. Coloca-se na posição de insultada quando o homem lhe chama de falsa ou mentirosa. Mexe com os brios toda farpa que envolva respeito e reputação. Ela privilegia os valores espirituais da personalidade. Preocupa-se com a coerência de vida, com a sua honestidade, com o ato de praticar aquilo que fala. Tanto que qualquer insinuação sobre sexo não lhe faz cócegas, atacá-la afirmando que é mal-comida apenas lhe fará escolher melhor as companhias dali por diante. Nem mais críticas sobre a aparência, que lhe incomodavam antigamente, como gorda ou feia, causam danos.

Ofender uma mulher não dá para ser da boca pra fora, tem que oferecer provas para ela começar a ouvir.

Publicado em O Globo em 13/6/2018