Revista Época, 30/05/2010
São Paulo (SP), Nº. 628, P. 96
Crônica publicada no site Vida Breve
Casal inteligente enriquece junto?
Por favor, me dá um desconto.
Ter objetivos em comum separa o casal. É confundir a relação com um negócio. Daí não será um namorado, mas um sócio. Daí não será uma namorada, mas uma investidora.
Não há engano maior do que partilhar metas. Trocar a televisão pelas planilhas do Excel. O que parece uma referência de parceria, tampa de margarina, é um se aproveitando do outro.
Estão preocupados em não perder tempo, em render o máximo desempenho com o mínimo esforço, em aproveitar as chances e as ocasiões para eliminar as exigências domésticas. Não têm afinidades, a não ser a vontade de crescer profissionalmente.
Invente de retirar o interesse dos dois, não sobrará coisa alguma, pedra sobre pedra, cartão sobre cartão. Não terão assunto. Adoram a distância para simular saudade. A única sintonia é a carreira, o que um oferece e o segundo aceita, não vão partilhar o futuro. O mercado é muito instável para um casamento. Afinal, é preciso ser livre para atrair ofertas.
Alguns podem até delirar que é amor, chegue perto com o olfato: o perfume excessivo é ambição. Dividir o poder não significa cumplicidade, é adoração de si. A paixão é o espelho da obsessão. Um espelho que nunca fica embaçado.
É conveniente amar a prosperidade de um homem ou sucesso de uma mulher. Tomar carona.
Amor é empobrecer junto, se for o caso. É ser inútil e continuar tentando. É não ter medo de começar com um colchão no chão e com as mesas dos joelhos. Não aguardar o momento, ficar ao lado até que ele venha ou não venha. Suportar as dívidas, os credores, as piores fases e encontrar humor dentro das contas.
É admirar mesmo sem qualquer identificação imediata. Respeitar os caminhos diferentes, opções distantes, vocações opostas e procurar entender para conversar e recolher os farelos de pão e arrumar a gola na hora de partir.
Não se escolhe uma companhia por aquilo que ele faz, porém por aquilo que deseja. Por aquilo que ele guarda no desejo.
Sempre estranhei casal que se esbarra no corredor de casa e passa reto. Encontra seu par e não diz nada. Como dois desconhecidos, mesmo que já tenham se visto há um minuto. Alheios, fantasmagóricos. Não contraem culpa pela desatenção, acham natural ver e não ver, estar ocupado e seguir adiante. Não se intrigam de ternura, não se espantam com a falta repentina. Não mencionam um toque. Não se pronunciam com um beijo ou um abraço. Não se provocam com as perguntas irritantes e tão necessárias: "O que está pensando?" ou "O que está fazendo?"
Estão longe de um lar. Suas casas são escritórios.
Não será dormindo de conchinha que revelamos amor na primeira noite.
A posição é excessivamente controlada. Posada.
Tem até lógica: prevenir o roubo do lençol. Mas a cena não ultrapassa a praticidade romântica. É um pouco infantil, uma regressão ao ventre. Nesta hora, ninguém precisa mais de posições fetais. E do colo de mãe.
Amor se revela quando os dois vão dormir e se acordam amontoados. As pernas femininas sobre as pernas do homem, os braços enrolados como fantoches, os beijos agora suspirados; uma sensação de clandestinidade no próprio corpo. Como um barco cubano, absolutamente ilegal, atravessando o Oceano Atlântico em direção à Miami.
Quem apaga amontoado confessa atração química. Não se rendeu, apesar do gozo, do sono, do medo de ser inconveniente. Sentirá câimbras, formigamentos. Ou não sentirá nada de manhã com a dormência dos movimentos. Qualquer que seja o imposto, não se mexe. Não abandona sua vigília. Não confia que conquistou, que seduziu, que concluiu.
O casal amontoado é ambicioso. Ambos não dormem juntos, já moram juntos um na nudez do outro. Como se estivessem mortos, porém intensos, vivos, alucinando mais do que sonhando.
Os longos cabelos negros encordoando o peito masculino, as coxas ainda atentas, os seios curiosos. A tensão permanece, a conversa prossegue no escuro com exclamações ilegíveis, a mão é um abajur aceso. Não é um descanso organizado, planejado; é um sono de fundo falso, agitado de sons, sobrevoando o conforto. Uma ânsia de ficar junto de qualquer jeito, aproveitar toda a pressa da pele. Finge-se desmaio para prosseguir o trabalho com a respiração.
O casal pode estar exausto, arrebentado por tudo o que foi dado, mas ele e ela ainda se caçam de modo involuntário. Entendem que o sexo pede mais carícia. Não foram cada um para seu lado, aliviados do prazer. Muitos menos desejaram a tranquilidade caseira do encaixe. Não se cansaram da proximidade. Estão lutando pela permanência na memória, brigando para não serem esquecidos, insistindo para que se telefonem no dia seguinte, arrumando motivos e desculpas.
Amontoar é o momento em que mostramos que o cheiro nos agrada, que não há como voltar a ser como antes.
Significa que nenhum dos dois vai se separar de manhã. Não terminaram de se encontrar.
Crônica publicada no site Vida Breve
Crônica publicada no site Vida Breve
Sou um desvairado. Aposto em casamento.
Mergulho em saideiras intermináveis na mesa de bar e apanho porque sou minoria. Meu chope tem colarinho de padre. É enlouquecedor convencer alguém que usa sua experiência. É como se a experiência fosse um argumento incontestável. Já reneguei muita lembrança que não me acrescentou em nada. Nem toda experiência ensina, que mania a de se vangloriar do passado apocalíptico e jogar na cara: eu vivi dois casamentos, sei do que falo. Faz favor, há coisas que vivo que apenas me tiram as palavras. Se alguém tem propriedade no assunto é Thiago de Mello, que casou trinta vezes, mais ninguém. Nem eu.
Amo casamento com todo peso da árvore feminina da família. Torna qualquer detalhe revelador, chance de traficar ternura na necessidade de comprar gás ou arrumar o portão da garagem. Perguntar que horas ela volta é uma preocupação comovente, de quem deseja ficar mais tempo junto. O que são os problemas perto da alegria de poder contá-los para sua mulher? O amor é simples, tão simples que fingimos sabedoria ao dificultá-lo.
Mas os céticos estão em vantagem. Eu é que sou o conservador. Defender uma relação fechada é hoje impronunciável, uma burrice. Acabo calado por vaias e ‘deixa disso’. Pareço um moralista, uma carmelita, um torcedor do América de MG.
Não aguento o pessimismo pré-datado. A gente entrega a indisposição nos medos mais óbvios.
"Se você me trair, promete me contar?"
A questão já coloca a infidelidade como certa. Contar ou não confessar passa a ser o dilema. Não se confia mais na fidelidade, mas somente na franqueza. Vamos adaptando os princípios. O mesmo é resmungar que o homem não é monogâmico, não adianta tentar. É aceitar que ele não tem escolha, de que se trata de um condicionamento biológico, uma maldição darwiniana.
Nem mais encontro vestidos de noiva em vitrine. Até os manequins estão solteiros. Casamento é posto como cativeiro, como subtração de direitos e multiplicação dos deveres. É uma felicidade passageira, de doente terminal. O matrimônio deveria abandonar o contrato. O contrato existe para terminar, resguardar o final e sair ileso. É proteção desde o princípio. Ao embarcar, já estamos reagindo às escolhas do naufrágio.
Casamento mudaria com a adoção do pacto. Isso: pacto! Por que unicamente o mal faz pacto? Um pacto do bem. Sei que há pacto com diabo, mas nunca vi pacto da virtude.
É usar o conhecimento siciliano. No pacto da máfia, realmente funciona a sentença "até que a morte nos separe". É o único lugar que a frase tem sentido. É sangue com sangue, mindinho com mindinho. Não se oferece o indicador de propósito, para valorizar as pequenas causas. A aliança tem que ser o próprio dedo. Não há como tirar o dedo no motel.
O pacto são dois num só apelo, diferente do contrato que é cada um por si. O pacto é palavra, o contrato é letra. A palavra é lembrança, a letra é cobrança. O pacto é confiança, o contrato é obrigação. No contrato, se pode sair a qualquer hora. No pacto, a saída é sempre pela honra.
Crônica publicada no site Vida Breve