sexta-feira, 15 de maio de 2015

CONTRA-ORDENS

 Arte de Anthony Earnshaw

É pedir para a pessoa relaxar que ficará mais tensa.

É pedir para se acalmar que ficará mais nervosa.

É pedir para não pensar mais no assunto que não falará de outra coisa.

Quando o homem ou a mulher teme broxar certamente vai broxar se alguém perguntar: o que está acontecendo?

O cérebro não funciona com imposições, ordens, mandos. Ainda mais quando o problema está na cara. Não é bom dizer o óbvio para quem está sentindo o óbvio. Lições daquilo que deve ser feito somente aumenta a dificuldade.

O medo não precisa de legendas. Assim como a ansiedade não depende da tradução dos outros.

A inteligência precisa da ignorância para ser feliz.

Ouça o comentário na manhã desta sexta-feira (15/05), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

O LUXO DA MARMITA

Arte de Eduardo Nasi

Trabalho em casa. Escritor acorda, pega o casaco no cabide e escreve realezas com roupa de mendigo. Quanto pior o traje, melhor o texto – é a minha superstição.

Como dificilmente passeio os olhos para fora da residência, com exceção das palestras e gravações, nunca tive marmita.

Nunca tive uma marmita preparada para mim. Nunca carreguei uma sacolinha com comida para o serviço. Nunca aticei os passageiros do ônibus com o cheiro perfumado de minha sacola. Nunca provoquei inveja dos colegas com um feijão tropeiro. Nunca disputei as prateleiras coletivas da geladeira. Nunca me gabei de ter acesso a receitas de família.

A marmita é um presente disfarçado de refeição. Alguém que lhe sabe de cor separa exatamente numa bandeja a porção que você costuma comer.

É um buquê gastronômico, escolher o que se tem nas panelas para florescer o apetite. Antecipar as bocas do fogão um dia antes para que tudo fique encaminhado de manhãzinha. Com voz dormida, acordar cedo para surpreender o desejo de nossa companhia.

Há maior prova de amor do que acertar a quantidade e o jeito de misturar de nossa esposa ou marido?

Trata-se de altíssimo conhecimento de causa montar os andares e distribuir os alimentos em diminuto espaço, a ponto de não faltar e também não sobrar.

Chego a ver a cena: três colheres de arroz, massa ao lado, dois pedaços de carne de panela e a verdurabem no cantinho. Não esquecer o bolinho seco, sem tocar em nenhum molho.

A marmita atesta que o casal se estuda a ponto de se revezar nas tarefas da vida. Se um desiste, o segundo pega a bandeira e puxa o ânimo. São continuações de horários e fôlegos, extensões de uma mesma persistência.

Não expõem frases apaixonadas e derramadas, o “eu te amo” talvez seja raro. Eles se admiram silenciosamente ajudando a dividir o fardo, o cansaço, o estresse, a rotina.

A gentileza é feita da discrição.  Quando se declaram, enfatizam a questão profissional:

- Meu marido é trabalhador!

- Minha mulher é batalhadora!

O romantismo está escondido na entrega para sustentar a família. Não se perdem em caprichos, cobranças e demonstrações ostensivas de ternura.

A marmita é mais do que preparar o café e levar numa bandeja para a cama. É preparar um dia inteiro e levar a mesa da cozinha ao trabalho.

O equivalente a avisar, com o guardanapo branco do gesto: você não estará comendo sozinho, estarei sempre ao seu lado.







Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
13/05/2015


ME TIRE DAQUI

 Arte de Francis Picabia

Nunca mais tinha dormido em Santa Maria depois da matança da boate Kiss, incêndio que sacrificou 242 pessoas há dois anos, a maior parte jovens e adolescentes, que terminaram presas numa cilada maquiavélica, impossível de fugir.

Nem sei se deveria escrever algo tão pessoal, que expõe minhas crenças espíritas. Passei a noite num hotel, satisfeito com a recepção do público e a palestra lotada na Feira do Livro na última quinta.

Só que não dormi. A princípio, jurei que estava preocupado com quem eu amo e já ultrapassava a meia-noite para telefonar. Mandei mensagens aos familiares e não obtive retorno. Não pretendia ser histérico – pressentimentos jamais são levados a sério – e aguentei a ansiedade.

Mas, quanto mais a noite avançava, não aquietava o meu espírito, não achava uma posição para relaxar, liguei e desliguei a televisão, liguei e desliguei a caixinha de música, iniciei e interrompi leitura de livros. Desceu em mim uma angústia implacável. Não é que dei para chorar copiosamente do nada, irrefreável, logo eu que não choro com facilidade? Chorei infinito. Cochilava e chorava. Suspirava e chorava. Como se estivesse com Bluetooth emocional emparelhado em uma data remota.

No quarto absolutamente confortável, me enxergava emparedado, preso, encaixotado. Tossia convulsivamente. Cuspia o ar que não vinha. A sensação de sufoco e queimação se agravava, com um calor anormal no corpo para uma madrugada fria de inverno lá fora. Abri a janela e não refrescava. Tirei as roupas e não encontrava alívio.

Não ardia em febre. Não sofria de asma. Não apresentava nenhum quadro gripal. Estava bem de saúde. Porém me arrastava na cama, um cansaço indigente, próximo do desmaio. A pele reagia a um sobrepeso invisível, suava absurdos e cheirava forte.

Ao fechar os olhos e tentar sonhar, várias vozes conversavam comigo, chat multiplicando borbotões de janelas na tela do inconsciente. Não entendia nenhuma delas, pela sobreposição dos timbres. Centenas de recados, gritos e uivos ilegíveis – procurava ajudar e responder. Eu me esforçava para ouvir e sofria do pânico de não alcançar a velocidade das falas: frenéticas, constantes, passionais. Sem resultado, ajustava a atenção para aquele vendaval de apelos, o equivalente a sintonizar uma estação de rádio fora de frequência. Peguei papel e caneta com o propósito de anotar frases soltas e desconexas, pena que, tamanho o desespero, não lembrava sequer de meu nome.

O que qualquer um pode concluir é que experimentei um sofrimento paranormal. Não se engane: sobrenatural é a impunidade até hoje da boate Kiss. Se não desfrutei de um minuto de serenidade na vigência de uma lua, de uma simples lua em Santa Maria, apesar de não ter perdido nenhum parente ou amigo próximo na tragédia, como os pais das vítimas vão conseguir dormir?






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 12/05/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18160

UM LADRÃO SERIA MAIS DELICADO

 Arte de Sonia Delaunay

Depois do acordo do divórcio, uma amiga recebeu de volta o carro que estava com o ex.

O carro veio com três multas, IPVA vencido dos dois últimos anos, pneus carecas, sem rádio, bancos mofados, janela trincada, perda da garantia por atraso na revisão.

Ele não se interessou em preservar o bem em comum. Ou demonstrar que tinha capricho com o que não era dele.

Cuidou do veículo do mesmo jeito que cuidou da relação.

No fundo, ela nem precisava explicar para ninguém o motivo do fim do casamento.

Era só oferecer carona.

Ouça o comentário na manhã desta terça-feira (12/05), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

quinta-feira, 14 de maio de 2015

IMOBILIDADE DO INVERNO

 Arte de Albert Gleizes

Terrível no inverno não é passar frio, mas tentar não passar frio.

É se antecipar ao desconforto do vento e da tremedeira.

Passamos a estação inteira nos adiantando para não sofrer e terminamos sofrendo o dobro.

Nunca conseguimos nos agasalhar para o frio psicológico.

Planejamos um momento em que estaremos protegidos que nunca chega. Sempre falta uma coisa que encerra o aconchego que criamos detalhadamente.

É como se refugiar num abrigo antiaéreo e deixar a sacola de mantimentos lá em cima. Subir ou não subir de volta?

Quantas vezes já tremi a noite inteira somente porque não desejava me levantar para buscar um edredom?

Dentro do sono, eu pensava: será que vou ou não vou? E, por fim, dormia com a angústia da dúvida, tremendo, chamando a gripe para conviver comigo.

Inverno é um dilema permanente, um descuido irreversível.

Vou assistir a um filme na sala com a minha mulher, preparamos pipoca e chocolate quente, puxamos o edredom, demoramos para encontrar o lugarzinho ideal, para nos encaixar entre as almofadas e o encosto, no instante em que alcançamos a perfeição alguém se dá conta da ausência do sal. Qual será a alma caridosa a largar a fortaleza e trazê-lo da cozinha? A tristeza é que – se um sair – recomeçará todo o reposicionamento delicado que levou horas para ser feito.

A ânsia de não sofrer contratempos supervaloriza o incômodo. A mania de querer uma situação ideal nos põe em perigo.

Qualquer movimento em casa é acampamento, com o medo permanente de sair do fundo da barraca após o esforço de montá-la. É trazer tudo para não se mexer depois, mas sempre existe um lapso.

Inverno é frustração, é distração letal.

Quem já não enfrentou o banho rápido, desafiou o gelo do lençol, friccionou seus pés com os pés da esposa, abraçou forte sua companhia debaixo da montanha de cobertas, suspirou de felicidade quando se enxergou novamente quente e, de repente, verifica que a persiana tem uma fresta de luz? É preciso muita coragem para abandonar o acolhimento custoso e reiniciar os trabalhos.

No inverno, por maior que seja a cautela, esqueceremos algo.

Perderemos consecutivamente a vantagem que adquirimos com a prevenção.

Basta encontrar uma posição para se morrer feliz que seremos impelidos a ressuscitar.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.40
Porto Alegre (RS),  10/05 /2015 Edição N°18158

CUIDADO COM O FILHO

 Arte de Fernand Leger

Você se separou, tem uma criança pequena, não deixe de comprar um presente para seu filho entregar para a mãe. Você não pode abandonar a paternidade. E um dos papéis

da paternidade é respeitar a mãe, sendo ex ou não.

Mesmo que não tenha vontade de agradar a antiga companheira, não abandone seu pequeno nesta situação constrangedora.

Triste do filho que não tem o que entregar para sua mãe porque ela não está mais casada com seu pai. Preocupe-se com a alegria do filho, dando condições para que ele

possa homenagear seu afeto, e que isso seja maior do que o ressentimento pelo fim da relação.

Não repasse seu ódio para os herdeiros, transmita um ambiente de segurança pelo respeito e gentileza. Os filhos são vida depois do divórcio.

Ouça o comentário na manhã desta sexta-feira (08/05), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

GUARDA-VOLUMES

Arte de Eduardo Nasi

Tenho medo quando alguém desmontar a biblioteca de minha madre. As imensas e intermináveis prateleiras do casarão, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre (RS).

São mais de oito mil livros, distribuídos por todos os cômodos. Até no banheiro.

Meu receio é um só: escondíamos o que era proibido na retaguarda dos livros. Há uma vergonha retroativa nas contracapas dos clássicos.

Se um dia a biblioteca for abaixo, mudará a minha ingenuidade.

Não me lembro de tudo o que enfiava nas costas das obras, em especial na parte de cima do acervo, nos últimos degraus, perto do teto.

Era um hábito dividido entre os quatro irmãos.

Como o nosso quarto era funcional, tipo um hostel, com beliches e mais nada, terceirizamos nossas taras e segredos entre as coleções e enciclopédias. Sofríamos com a

mania de uma época em que se deixava um dos aposentos para o escritório e metiam a cambada de filhos no mesmo quarto.

Inventávamos armários pelos ares. Espantávamos a concorrência das traças e dos cupins. De tanto futricar, mantínhamos, pelo menos, o espaço limpo.

Um aguardava a saída do outro no lugar para produzir seu próprio esconderijo. Respeitávamos a troca de guarda. Quando encontrava algo que não era meu, nem mexia,

tomava cuidado para não gerar represálias e delações.

Armávamos gavetas nos vãos, decorávamos o título para reaver os nossos pertences. Evidente que nos confundíamos e às vezes atravessávamos tardes na biblioteca mudando

os livros de lugar, não se recordando precisamente da localização. Faulkner deve ter levado as balas azedinhas. John Dos Passos sequestrou as bolas de gude. E assim

perdia meu legado na babel dos corredores.

Os pais se orgulhavam de nossas leituras, admiravam o nosso amor pelas letras, elogiavam o nosso interesse apaixonado pela literatura – mal sabiam da verdade, que

poderá aparecer com a derrubada da mata de papel.

Atrás da erudição, vigorava o tráfico da cultura inútil: cigarros, maconha, camisinhas, caixas de bis, revistas pornôs, cartas de tarô, fichas de ônibus e de telefone.

Nunca fui um leitor puro.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
06/05/2015


CAVALO DEITADO

 Arte de Robert Falk

Eu não contei com nenhum exemplo, ídolo, modelo de vida.

Alguém que pudesse me motivar a colar cartazes atrás da porta do quarto ou que me botasse a correr por um ingresso.

Nem na música, nem no cinema, muito menos na literatura.

Alguém que fosse seguir insanamente suas pistas e biografias, capaz de me pôr a participar de chats e comunidades.

Alguém para repetir os gestos, o riso, o carisma do olhar no espelho.

Nunca fui fã de carteirinha de qualquer artista. Não tive aquela influência externa, que facilitasse uma identidade e que poderia prestar uma homenagem no Facebook.

Com exceção de um cavalo. Um cavalo branco, pálido como o leite, que observei na infância.

Um cavalo, sim!, eu inspirei a minha vida num cavalo.

Quando tinha oito anos, participava de um churrasco numa fazenda de amigos dos pais em São Borja.

E observei um cavalo estranho abrir o portão com um meneio da cabeça, subir a estrada sinuosa de terra batida, limpar as patas no capacho, entrar dentro do casarão e deitar na sala.

Montou guarda entre o sofá, a mesa e a televisão, ocupando praticamente o espaço necessário para se locomover.

Ele parecia uma pessoa. Não se intimidou com a multidão no pátio, manteve o porte ereto e tranquilo, convicto a protestar em pleno domingo.

Um cavalo revolucionário. Um cavalo grevista.

Eu me espantei com a imprevisibilidade da cena, e me belisquei para definir se não estava dormindo.

O cavalo entrou na casa do seu dono, por algum motivo obscuro. Os mais velhos tentaram dissuadi-lo, levá-lo dali pelo tranco das rédeas ou por palavras carinhosas, xucras, bravas, nada produzia efeito.

O cavalo teimou em ficar.

Naquele pânico, no zunzum dos convidados opinando sobre qual atitude adotar, ouvi de minha mãe a frase que me serviria de lema:

– Cavalo deitado, ninguém levanta!

Sou teimoso como aquele cavalo. Turrão como aquele cavalo. Obstinado como aquele cavalo.

É só me dizer que não posso fazer, que faço. É só me contrariar que aceito o desafio. É só falar que é impossível que dou um jeito de tentar. As adversidades são estimulantes.

Deito com todo o peso de meus sonhos na dificuldade para jamais desistir. Não importa o que os outros vão pensar, não arredo do lugar até conseguir o que desejo. Quero ver me tirarem do meu objetivo.

Tenho pena de quem eu amo. Vou entrar em sua sala e jamais sair até convencê-la a subir em minha sela.

Nunca fui o príncipe, sou seu cavalo branco, mas sei que a insistência inteligente é o caminho ao reinado.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 05/05/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18153

BONECO DE NEVE

 
Arte de Henry Moore

Chega o inverno, e todo mundo que é solteiro deseja namorar.

Para dividir o calor das cobertas. Para abraços de urso no sofá. Para passear de mãos dadas. Para visitar Gramado e sentar numa mesa perto de uma fogão a lenha. Para tomar um vinho.

Aqueles que estão sozinhos entram num desespero sem precedentes e começam uma dança das cadeiras.

Preocupados em se arrumar de qualquer jeito, dispostos a não desperdiçar o luxo do frio.

É um período de caça que vai do Dia das Mães até o Dia dos Namorados.

Mas desesperador é namorar por namorar, por formalidade, para não se ver em desvantagem em relação aos amigos casados.

Melhor permanecer sozinho do que arrumar uma companhia que não se gosta, do que acabar firmando compromisso com alguém chato.

Conviver com alguém cheio de manias e não ter como sair de casa.

Ficar trancado ao lado de um boneco de neve: gelado, sem iniciativa, sem conversa, sem euforia.

Não adianta colocar cachecol e óculos no boneco de neve - ele não deixará de ser um boneco de neve.

O inverno é perfeito para namorar, com quem se ama, senão pode ser um inferno.

Ouça o comentário na manhã desta terça-feira (05/05), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


CASAQUINHO PRETO

 Arte de Berthe Morisot 

Toda mulher tem um casaquinho preto, de malha, que custou barato e é uma companhia inseparável.

De aparência simples e discreta, o casaquinho é mais importante do que qualquer roupa de estilista famoso.

O casaquinho é aquele que ela diz para as amigas que deveria ter comprado dois e que jamais encontrará igual. E ela nunca compra dois, apesar de já ter amaldiçoado a avareza antes.

O casaquinho é uma segunda bolsa, tamanho seu valor prático, combate o frio do cinema, da saída de festa e de jantares.

Toda mulher que se admira tem um casaquinho preto, que cavou em uma liquidação como um dos grandes achados de sua vida.

É uma peça invisível que não estraga nenhuma combinação. É um travesseiro para os ombros. É uma vitamina C de pano para prevenir a gripe.

Não se habilite a segurar o casaquinho preto dela, é muito pessoal. Cometerá uma gafe. O máximo que pode fazer é ajudá-la a vesti-lo.

Nenhuma mulher aceita emprestá-lo. Não é gentileza, e sim invasão de privacidade, o equivalente a mexer em suas redes sociais.

O casaquinho é um objeto íntimo, intransferível, lingerie pelo lado de fora.

Não queira assumir a responsabilidade. Se tomar conta e extraviar, ela ficará enlouquecida e não perdoará a distração.

Casamento é bem capaz de terminar quando o homem inventa de proteger o casaquinho e acaba esquecendo em algum lugar.

Não corra riscos. Eu perdi um casaquinho num show. Amarrei na cintura. Ao pular e dançar como um negro gato no show do Luiz Melodia, deixei cair no meio da pista.

Estávamos felizes, radiantes, nos beijando e nos abraçando com furor, um casal antologicamente apaixonado em Porto Alegre, cantando as canções de cor e trocando risos caprichados. Quando, no intervalo de uma música, ela me perguntou “Cadê o casaquinho?”, a noite mudou de feição, ela mudou de feição, eu mudei de feição vendo a noite e ela mudando de feição ao mesmo tempo. Paralisei minha boca em uma careta, porque ele havia sumido sem que percebesse.

Com a lanterna do celular, eu me postei no chão, me agachei como o aspirador dos dedos para reconhecê-lo entre latas e copos de bebida. Pisaram em minhas mãos, me empurraram, e nada de resgatar o pobrezinho.

Ela passou a madrugada lamentando o casaquinho, a manhã seguinte lamentando o casaquinho, o mês seguinte lamentando o casaquinho.

Era viúva do casaquinho. Não se falava em outra coisa.

Procurei corrigir o erro e adquirir um semelhante. E agravei a minha falha: só ela tem o direito de escolher seu casaquinho.

As mulheres não são difíceis, mas fetichistas.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.40
Porto Alegre (RS),  03/05 /2015 Edição N°18151

PASSARELA


Arte de Joan Erbe

Não sou de ficar olhando para homens, não é minha preferência, não sei dizer se é bonito ou feio, quadrado ou redondo, alto ou magro, gostoso ou raquítico, nem me interessa.

Não entendo homens que se declaram machões mas que me qualificam a todo instante de feio ou monstro ou estranho. No fundo estão obcecados pelo meu jeito. Estão atraídos. Eu não perco tempo avaliando a beleza masculina. Tem tanta mulher para se admirar. Gosto de mulher, de falar de mulher, de comentar sobre mulher. Para mim, não tem nada melhor nesta vida.

Esses sujeitos que se dedicam a reparar na minha aparência ainda não se definiram. Precisam ter um imenso guarda-roupa embutido em casa para se esconder.

Ouça o comentário na manhã desta sexta-feira (01/05), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


quarta-feira, 13 de maio de 2015

NA HORA DE VER FILME NA CAMA

Arte de Eduardo Nasi

Tenho uma estratégia para dormir nos filmes e parecer que não estou de olhos fechados. Não falo de cinema, sagrado para mim, que não cochilo nem se for um documentário mudo, preto e branco e de cinco horas, mas daquele filme para ver na cama, escolhido um pouco antes da meia-noite, em horário altamente perigoso para quem acorda cedo. Sendo o filme bom, enfrentarei grandes chances de arcar depois  com a insônia.

Apesar do medo de aguentar ou não aguentar, participo de nosso ritual familiar com entusiasmo, pois criei uma manha para sobreviver. Opto por um filme que já vi várias vezes. Óbvio que escondo a informação. Aliás, digo o contrário. Solto uma frase animadora que costuma encerrar nossa procura:

— Amor, faz séculos que desejo assistir este filme!

Diante do título que já frequentou até sessão da tarde, a mulher me encara com incredulidade, quase pergunta onde estive nos últimos vinte anos, quase questiona se não vim de uma ilha deserta. Certo de que sente pena das minhas lacunas cinematográficas.

Agora vem a melhor parte. Eu me agarro nela de conchinha, encaixo a cabeça em sua nuca cheirosa, e levanto o queixo preguiçosamente em direção à tevê.

Sua pele é meu vício. Não resisto ao ópio confortável de sua fragrância, e desfaleço. Minha atenção na tela dura dez minutos. Ela pressente minha respiração pesada no cangote, e vira para conferir se dormi. Nesta hora, levanto as pálpebras assustado e finjo que continuo assistindo. Ela não acredita, está na cara de que me entreguei. Como conheço o filme de cor, repito o que aconteceu naquela cena e conquisto o direito da dúvida. Sofro mais vinte apagões antes dos letreiros finais.

De manhã, durante o café, enfrento o inquérito sobre a dissimulação.

— Não dormiu, né? Então me conte como o filme termina?

Descrevo as cenas com detalhes impressionantes, sutilezas, reprodução de diálogos. Convenço e fico solto para viver a impunidade de mais uma madrugada.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
29/04/2015


terça-feira, 12 de maio de 2015

O MISTÉRIO DO COFRE DE MEU PAI

 Arte de Giorgio de Chirico

Meu pai tinha um cofre. Ficava atrás de um quadro do Vasco Prado, em nossa antiga casa na Rua Corte Real, em Porto Alegre (RS).

Ninguém conhecia a senha, a não ser ele.

Ninguém enxergava o que ele colocava lá.

Imaginávamos maços de dólares e sacos de cruzeiros. Imaginávamos, eu e os irmãos, que ele alimentava uma montanha de moedas do Tio Patinhas. Que usava uma pá para tirar o excesso e nos repassar a mesada que gastávamos com balas Xaxá no armazém da esquina.

Quando ele mexia no esconderijo, não podíamos permanecer perto. Chamava a nossa mãe para nos levar embora. Era uma questão de segurança.

Um dia, o Rodrigo apareceu com estetoscópio de médico para ouvir o que tinha dentro. Outro dia, o Miguel bateu com um martelinho para verificar a profundidade do fosso. E ainda teve um dia em que a Carla arriscou uma combinação a partir da data de aniversário do pai, não deu certo e quase fomos pegos.

O segredo durou minha infância inteira. Até nossa residência ser assaltada enquanto veraneávamos em Pinhal (RS).

Assaltantes entraram pela janela do banheiro. Entortaram as grades. Levaram a televisão preto e branco e grande parte dos eletrodomésticos.

Ao voltar da praia, meu pai – percebendo a casa depenada – correu em direção ao escritório. Aproveitamos o desespero para ir atrás. Não seríamos impedidos naquela hora trágica.

Largamos as malas no meio do corredor e seguimos a sombra paterna.

O cofre está escancarado. A porta de metal finalmente aberta, estouraram o disco de acesso.

O pai pôs, com extremo cuidado, sua mão no interior do quadrado na parede. Lembro o suspense, a minha respiração parou.

E trouxe do fundo do buraco seis espirais, seis cadernos amarelados.

– Ufa, não levaram!

Carla, a irmã mais velha, perguntou o que era aquilo, pois aquilo não era dinheiro.

– Meus livros de poesia! – o pai respondeu.

Ele usou o cofre para guardar o que possuía de mais precioso: sua obra inédita.

Antevejo a decepção dos ladrões ao puxar um amontoado de versos. Tanto trabalho para explodir o cofre e só acabariam mais cultos e ricos de espírito.

Mergulhamos em estado de choque. Tampouco cogitávamos a hipótese de ser algo diferente do que uma poupança.

O episódio transtornou o meu modo simplista e direto de entender as pessoas. Cada um tem sua fortuna misteriosa. Algo que é somente valioso pelo sentimento e que não tem como ser valorizado por quem é de fora: um brinco dado pelo marido, uma compilação de receitas herdada da avó, um álbum de figurinhas, uma caneta tinteiro, uma camisola.

Não menosprezo os objetos da casa dos outros. Não jogo nada fora que não seja meu. Toda recordação pode ser de amor, e o amor é um cofre onde nos protegemos do esquecimento.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 28/04/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18146

ONDE COLOCAR A CARTEIRA CHEIA?

Arte de Rene Magritte

Nós, homens, nunca achamos uma solução definitiva para nossa carteira.

Ela é um enigma: onde colocar? Ainda mais que costuma ser cheia, com cartões de banco, lojas, farmácias, clubes, hotéis.

Há a mania de pôr no bolso de trás da calça. Decisão que desemboca num desastre visual.

O homem fica com um abcesso na bunda. Cria um calo. Um desnível. Uma lordose incorrigível.

Não há nada mais engraçado e patético do que o sujeito ostentando um air bag nas costas.

Não é mais um homem, mas uma saúva.

Não dá também para guardar no bolso da frente, que é fazer propaganda enganosa. Depois terá que segurar todas as decepções no colo.

Para fugir do dilema, eu já experimentei uma bolsa de carteiro, atravessada na frente. Mas é bolsa igual e já estava me tornando muito possessivo e feminino.

Não deixava ninguém mexer em minha bolsa, não achava mais o celular dentro dela, eu já estava rebolando sem querer. Larguei de mão antes de sentir minhas mamas crescendo.

Não existe resposta para esta charada masculina

Temos que aprender o segredo com os cariocas. Onde, afinal, eles guardam o dinheiro que gastam na praia se vivem de sunga?

Ouça o comentário na manhã desta terça-feira (28/04), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


NOIVA CADÁVER

Arte de Leonor Fini

Fingir felicidade é mais amargo do que a tristeza. Um veneno para almas sensíveis durante uma separação.

Fui numa festa na Woods, em Porto Alegre. Sertaneja e à fantasia, ou seja, com todos os ingredientes para me sentir deslocado. Não tinha como demonstrar euforia. Poderia rir com a boca, não com os olhos, que é o meu riso mais verdadeiro. Poderia rir como quem ri para tirar uma fotografia (obedecendo ao x), não como quem ri observando sua amada (admirando o y).

Entre gladiadoras, policiais, branca de neve e indígenas, o que mais vi foi noiva cadáver. Não se trata de uma fantasia, mas um estado de espírito, um matrimônio doentio com o lado escuro do amor.

Representavam mulheres recém separadas que forçavam a barra de sua alegria, estavam mais interessadas em se vingar do ex com fotos no instagram ou marcações no Facebook, estavam desesperadas procurando uma porta de incêndio da sua fossa com beijos fáceis ou sexo louco.

Falei com uma guria na escada, e ela terminou a relação há duas semanas. Falei com outra na frente do bar e ela encerrou um romance há um mês. Falei com mais uma fantasiada na fila do banheiro e ela lamentava o fim de seu namoro na semana passada. Entrei num camarote com cara de purgatório, penadas peladas. Aquela nudez proposital não me convencia. Os cílios postiços escondiam o caminho das lágrimas.

Elas não se movimentavam com a liberdade das palavras. Suas pulseiras brilhantes da casa noturna lembravam algemas de casos mal resolvidos. Ostentavam um contentamento fictício, que é diferente de ser feliz.

Não achariam ali sua solução, seu remédio. Tampouco desejavam trair o amor despedaçado, confinadas nas lembranças dos seus antigos pares. Por mais que rebolassem e se agachassem nas grades, o que se notava com nitidez é que berravam as músicas de dor de cotovelo. Conheciam vírgula por vírgula, como quem pede socorro. Eram mulheres casadas por dentro fingindo solteirice por fora.

No luto, o melhor é ficar em casa. O melhor é destruir um pote de sorvete e assistir a um filme romântico de pijama. O melhor é se tocar em segredo debaixo das cobertas, depois do choro. O melhor é não conferir o espelho e repetir os lamentos para os amigos. O melhor é desaparecer para se acostumar com o fim ou reencontrar o início.

Jamais se violentar socialmente buscando ser agradável. Jamais chamar vítimas para ocupar o próprio lugar. Jamais tripudiar o que aconteceu de errado com novos pretendentes.

Jamais trazer para perto quem não tem nada a ver com sua angústia.

Reparar, enquanto é tempo, que você ainda está contaminada, ainda está reagindo à separação, ainda quer provocar atenção do ex, ainda vem conversando com os problemas do passado.

Não se envolva com rapidez para aumentar a culpa: quantos corações você precisa destruir para refazer o seu?

O ímpeto de sair de qualquer jeito do sofrimento lhe fará sofrer muito mais.




Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.40
Porto Alegre (RS),  26/04 /2015 Edição N°18144

NÃO RASGO EMBALAGENS

Arte de Stefan Luchian

Tenho um amigo que se apaixonou por uma empacotadora.

Não, ele se apaixonou pela forma como a empacotadora embrulhava as compras para presente. O modo que desfiava o laço com a tesoura, que cortava o durex com os dentes, o carinho que dobrava o papel para dentro e para fora, a lentidão amorosa com algo que não era para ela. Nada de embalagens prontas, nada de saquinhos com cola e facilidades.

Desde que a viu, ele passou a comprar compulsivamente naquela loja. Comprava coisas desnecessárias. Comprava sem precisar de nada dali. Comprava presentes sem ter para quem entregar. Comprava para assistir o espetáculo daquelas unhas vermelhas realizando um curso de origami somente para ele. E os objetos adquiridos ficavam empilhados em sua casa, e não se importava com o desperdício de seu tempo e dinheiro: conhecia alguém que valorizava o capricho. Cuidava do mínimo, do pouco, da aparência, alguém que gostava daquilo que estava fazendo e que fazia com gosto.

Até hoje, quando recebo presentes, não rasgo a embalagem lembrando dessa história.

O que vai fora denuncia o que vai dentro.

O amor, seja profissional, seja pessoal, reside nos detalhes. É não somente mandar uma carta, mas escolher a cor do envelope. É não somente mandar flores, mas cuidar com o que vai escrito no cartãozinho. É não somente lembrar, é explicar o quanto o outro é importante.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (24/4), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 11 de maio de 2015

O FABRÍCIO MORREU

 Arte de Charles Cottet

Vou contar um segredo: Carpinejar era meu amigo imaginário na infância. Sempre que sofria deboche na escola chamava um menino fictício de óculos grandes e destemido para resolver o conflito. Carpinejar era o meu contrário. Era o meu justiceiro. Era o meu confidente.

Se arcava com a gagueira, a timidez claustrofóbica e a vergonha da aparência, vinha o Carpinejar me defender falando alto, comprando briga com os meus agressores, desarmando preconceitos com sua risada poderosa.

Se chorava no fim das aulas, vinha o Carpinejar me consolar, secar as lágrimas e exigir que deixasse de ser maricas.

Se não me aproximava de nenhuma menina com receio de ser escorraçado, vinha o Carpinejar, com seu espírito galhofeiro, flertar e namorar as mais bonitas do bairro.

Carpinejar cresceu comigo e se transformou num autor de sucesso. Ele é quem realiza as palestras, escreve no jornal, surge polemizando na televisão, dá dicas de relacionamento.

O Fabrício continuava sendo o guri indefeso, inseguro, sensível, caseiro, discreto, dentro do Carpinejar. Aparecia com parcimônia, apenas com longa intimidade, para aqueles que ele julgasse realmente merecer.

Enquanto Fabrício se emocionava à toa, com seu olhar de pintassilgo no muro, cheio de dúvidas de si, à espera da confiança e lealdade irrestritas de alguém para sair do seu esconderijo do medo, Carpinejar abria espaço com sua confiança e certezas absolutas de gavião, sedutor afiado com as palavras.

Um completava o outro. Até a semana passada. O Fabrício morreu por grave amor. Não sobreviveu aos ferimentos invisíveis de sua dor. Definhou de tristeza ouvindo Vitor Ramil. Entregou tudo o que podia e não podia a uma mulher que não soube cuidá-lo, muito menos proteger sua fragilidade como deveria acontecer com os verdadeiros amores.

Não houve obituário. Não chamou atenção de ninguém. Nenhum familiar ou amigo notou seu desaparecimento - porque Carpinejar assumiu definitivamente o lugar da personalidade.

Não é de se estranhar a confusão. São idênticos, gêmeos nascidos da angústia de viver e de se doar. Fabrício teve a coragem de amar além do seu fôlego, soldadinho de chumbo que se sacrificou no fogo para salvar sua bailarina.

Hoje ele está enterrado no fundo do rosto de capela do Carpinejar. Bem ao fundo. Uma estrela morta que prosseguirá ainda por muito tempo com seu fulgor, como se estivesse viva para quem vê de longe.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 8, 21/04/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18139

AS VÁRIAS PESSOAS DO SOFRIMENTO

Arte de Eduardo Nasi

O sofrimento não é um só, mas várias pessoas dentro da gente.

Conheço uma por uma delas. A fisionomia, o olhar, as manias, as roupas que vestem. Elas aparecem em etapas, como se fossem fantasmas agendados.

A primeira visita é a Fúria. Você ofende e insulta quem ama, não entende como seu par não acorda com os gritos, não percebe o desespero, não vê a injustiça que está sendo cometida, não repara no tamanho de sua sinceridade.

O ódio vem salvaguardar a relação. Não é o tipo ideal para mediar uma conciliação, mas é o inevitável.

Como o outro que ama está contra a relação, você fica contra o outro e a favor da relação. Joga todos os erros na cara de seu ex, aguardando uma redenção súbita.

Você reage com agressividade. Não entende o que impede o pedido de desculpa e a volta por cima. Não admite que seja uma separação fácil, você quer brigar para ainda estar junto, quer discutir para ainda estar perto.

Depois com os canais fechados, tudo bloqueado, culpa integral da Fúria que jamais negocia, surge a figura do Foda-se, arrogante, prepotente, com uma auto-ajuda de boteco. Diz que você foi subestimado, menosprezado, e que a vida está sorrindo lá fora, que deve se amar mais, aproveitar as oportunidades e que logo encontrará alguém melhor para sinalizar o que o outro perdeu. Seguindo seus conselhos, atravessará longas festas, aceitará qualquer convite, postará imagens doidas, abrirá o baú dos demônios.

A hospedagem da entidade dura, no máximo, duas semanas. Pois não aguenta a bagunça e o caos do Foda-se. Demite sumariamente o salafrário, por justa causa. Ele criou constrangimentos e trouxe mais testemunhas para infeccionar sua ferida. Além de se defender da angústia da perda, precisa ficar explicando para pretendentes que não têm condições de se envolver com ninguém no momento. É um trabalho dobrado de convívio social, que aumenta a ressaca e a saudade de quem sabia de cor.

A terceira a despontar é a carinhosa e gentil Aflição. Não pede nada, não fala nada, é o sofrimento calado. Acompanhado de sua escolta cúmplice, ouve as mesmas músicas, revisa fotos e mensagens e espera um milagre. Você anda com o celular na mão e tem o interfone instalado na garganta. Ocorre uma cumplicidade de animal doméstico, não há como definir quem é o animal. Muito menos é capaz de mandar embora a Aflição, que não levanta a voz e dorme em qualquer lugar. Desaparece simplesmente numa tarde de sol.

Em seguida, vem o Ressentimento. O ranzinza e mal-humorado Ressentimento. Coitados dos seus amigos e familiares. Ele ironiza, debocha, e não suporta nenhuma declaração de amor. Perdeu o interesse de sobreviver. Não acredita em reconciliação e desconfia de juras e promessas.

Por último, quando não aguenta o vaivém da alma, bate em sua porta a Esperança, mulher madura e generosa, com flores a tiracolo. Ela muda seu raciocínio cansado e objetivo. Renova seu otimismo: que não se fixe nas evidências, que não esmoreça diante das provas contrárias e que interceda no plano dos pensamentos.

Você torna-se, paradoxalmente, um condenado a morte lendo a Bíblia. Desiste de comentar o assunto, mas não desiste de rezar.

A esperança é bonita e sedutora, porém a mais sacana da turma. Tão sacana que ela faz com que receba, de novo, a Fúria, o Foda-se, a Aflição e o Ressentimento, e lhe convence a dar uma segunda chance até para seu sofrimento.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
22/04/2015