Arte de Eduardo Nasi
O sofrimento não é um só, mas várias pessoas dentro da gente.
Conheço uma por uma delas. A fisionomia, o olhar, as manias, as roupas que vestem. Elas aparecem em etapas, como se fossem fantasmas agendados.
A primeira visita é a Fúria. Você ofende e insulta quem ama, não entende como seu par não acorda com os gritos, não percebe o desespero, não vê a injustiça que está sendo cometida, não repara no tamanho de sua sinceridade.
O ódio vem salvaguardar a relação. Não é o tipo ideal para mediar uma conciliação, mas é o inevitável.
Como o outro que ama está contra a relação, você fica contra o outro e a favor da relação. Joga todos os erros na cara de seu ex, aguardando uma redenção súbita.
Você reage com agressividade. Não entende o que impede o pedido de desculpa e a volta por cima. Não admite que seja uma separação fácil, você quer brigar para ainda estar junto, quer discutir para ainda estar perto.
Depois com os canais fechados, tudo bloqueado, culpa integral da Fúria que jamais negocia, surge a figura do Foda-se, arrogante, prepotente, com uma auto-ajuda de boteco. Diz que você foi subestimado, menosprezado, e que a vida está sorrindo lá fora, que deve se amar mais, aproveitar as oportunidades e que logo encontrará alguém melhor para sinalizar o que o outro perdeu. Seguindo seus conselhos, atravessará longas festas, aceitará qualquer convite, postará imagens doidas, abrirá o baú dos demônios.
A hospedagem da entidade dura, no máximo, duas semanas. Pois não aguenta a bagunça e o caos do Foda-se. Demite sumariamente o salafrário, por justa causa. Ele criou constrangimentos e trouxe mais testemunhas para infeccionar sua ferida. Além de se defender da angústia da perda, precisa ficar explicando para pretendentes que não têm condições de se envolver com ninguém no momento. É um trabalho dobrado de convívio social, que aumenta a ressaca e a saudade de quem sabia de cor.
A terceira a despontar é a carinhosa e gentil Aflição. Não pede nada, não fala nada, é o sofrimento calado. Acompanhado de sua escolta cúmplice, ouve as mesmas músicas, revisa fotos e mensagens e espera um milagre. Você anda com o celular na mão e tem o interfone instalado na garganta. Ocorre uma cumplicidade de animal doméstico, não há como definir quem é o animal. Muito menos é capaz de mandar embora a Aflição, que não levanta a voz e dorme em qualquer lugar. Desaparece simplesmente numa tarde de sol.
Em seguida, vem o Ressentimento. O ranzinza e mal-humorado Ressentimento. Coitados dos seus amigos e familiares. Ele ironiza, debocha, e não suporta nenhuma declaração de amor. Perdeu o interesse de sobreviver. Não acredita em reconciliação e desconfia de juras e promessas.
Por último, quando não aguenta o vaivém da alma, bate em sua porta a Esperança, mulher madura e generosa, com flores a tiracolo. Ela muda seu raciocínio cansado e objetivo. Renova seu otimismo: que não se fixe nas evidências, que não esmoreça diante das provas contrárias e que interceda no plano dos pensamentos.
Você torna-se, paradoxalmente, um condenado a morte lendo a Bíblia. Desiste de comentar o assunto, mas não desiste de rezar.
A esperança é bonita e sedutora, porém a mais sacana da turma. Tão sacana que ela faz com que receba, de novo, a Fúria, o Foda-se, a Aflição e o Ressentimento, e lhe convence a dar uma segunda chance até para seu sofrimento.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
22/04/2015