sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

HERÓIS CASEIROS

Arte de Émilie Charmy

Minha homenagem a todos que ainda dizem que a comida está na mesa, batendo de porta em porta, de quarto em quarto, que não desistiram do trabalho de reunir a família.

Minha homenagem a todos que ainda preparam a salada mesmo sabendo da antipatia da turma.

Minha homenagem a todos que arrumam a mesa com guardanapos e casais de talheres, e tiram uma hora de seu dia para ouvir os familiares.

Minha homenagem a todos que perdem tempo cortando o assado de pé para distribuir as fatias de modo igual.

Minha homenagem a todos que lembram de afiar as facas e de comprar panos de prato.

Minha homenagem a todos que não têm pressa e nem egoísmo e servem os outros só para depois cuidar de seu prato.

Minha homenagem a todos que não reclamam de buscar algo a mais na geladeira e sempre estão dispostos, sozinhos, a recolher a sujeira, embalar as sobras em plástico filme e lavar a louça.

Minha homenagem a todos que nunca são valorizados, que nunca são elogiados, que nunca recebem aplausos: mães, pais, avós e avôs silenciosos, heróis desconhecidos de nossa cozinha, que mantém vivo o ritual de se amar pela refeição.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (27/2) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

CRIANÇAS MORREM

Arte de Eduardo Nasi

Ia da casa para escola a pé. Havia um colega que saía de seu edifício no mesmo horário que atravessava a rua Bagé. Eu seguia sua mochila marrom saltitando na minha frente. Jamais puxei conversa. Ele era meu cronômetro para entrar antes do sino bater. Não estudávamos na mesma turma, ele frequentava a 102 e eu a 101.

Manoelito evitava falar no recreio. Invariavelmente sozinho, comendo seu sanduíche de mortadela olhando para o céu. Desligado dos gritos e do polícia-ladrão nos muros. Ruivo, de sardas e baixinho, um pequeno soldadinho de chumbo. Não pretendia incomodar e dar trabalho de ser visto. Acho que vinha marcado pela profecia. Não desejava gerar apego. Como se adivinhasse seu destino.

Ele faleceu de leucemia. A primeira criança que testemunhei a morte. Não acreditava antes que criança morresse.

Desapareceu uma semana do convívio para curar dores na cabeça e depois estendeu o atestado para sempre.

Lembro que a escola parou quando soube da perda de um dos seus alunos. Não se trocava de assunto. Ninguém lembrava de sua cara. Um ajudava o outro com informações vagas para compor um retrato falado dele.

Fui no velório de Manoelito. Não me esqueço do impacto do caixão pequeno. Quase uma caixa de sapatos forrada de pano acolhendo um bichinho. Ele ainda parecia distraído olhando para o céu. Não tinha muita gente. Coitado, não fez nem amizade para encher o enterro. Eu dediquei um tempão naquela manhã gelada de abril de 1979 me esforçando para entender como se morre. Plantado sob a tampa de vidro. Como se fosse a experiência do feijão no algodão molhado.

Encarava longamente o menino de idade curta e passagem fugaz pelo mundo, que se despediu sem ao menos aprender a ler e escrever. Aguardava que fosse brotar de novo. Que viria um galho verde de seu rosto. Que o grão do nariz cresceria com a respiração. Mas nenhum movimento me surpreendeu.

Não entendo ainda como se morre, muito menos como se vive. Nunca mais cheguei no horário para nada. Fiquei uma vida atrasado.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
25/02/2015


TODO CÃO É FIEL

Arte de Rodolfo Morales

Tenho um irmão amado que mora em Faxinal do Soturno: Miguel, juiz, pai do Murilo e casado com Milena.

É o caçula de casa, o único que se dá bem com toda a família e o mais quieto e sábio, talvez porque foi o último a chegar nas brigas e descobriu que eram insolúveis e não valeria a pena perder tempo com elas.

Ele cuida de dois cachorros. O mais novo, um salsicha, o Mandi, foi atropelado na frente do Miguel. Escapou de um passeio vigiado na residência e se animou a atravessar a rua de repente.

Diante do estrondo das rodas, do rasgo do freio e do latido esganiçado, Miguel correu para socorrê-lo.

Mesmo abatido, mesmo morrendo, o cachorro mexeu o rabo ao ver seu dono.

Destroçado, encolhido na frieza das pedras, fez um esforço colossal de mexer o rabo para festejar as mãos de Miguel em sua cabeça.

Apesar de ferido e sangrando, alheio a sua condição agonizante, mexeu o rabo, esta mão prodigiosa que o cachorro tem além das patas, esta antena do coração, esta risada do corpo.

Mesmo soltando seu último suspiro, mesmo desesperadamente doendo, o cachorro mexeu o rabo ao ver o Miguel próximo.

Mesmo no pior momento de sua vida, ele encontrou um instante de felicidade e ternura, e acenou com o rabo, quis demonstrar para Miguel que o amava.

Mexeu o rabo de agradecimento. Mexeu o rabo de comoção. Mexeu o rabo, como sempre mexeu o rabo, quando Miguel chegava do trabalho e perguntava pelo seu nome pelos corredores. Nada mudaria seu hábito de mexer o rabo. Nada arrancaria dele o gesto puro e repetido dia a dia.

Nem o fim impediu sua declaração. Nem a falta de ar, o medo, a angústia de não estar mais entre nós para sempre.

Ficou mais feliz de ver Miguel do que triste de morrer.

Ele é um exemplo de como não ser tragado pela infelicidade.

O quanto não devemos nos afundar na angústia, seremos maiores do que as fatalidades e os reveses, pois poderemos agradecer o que somos e o que recebemos.

Ainda que nossa vida esteja perdida, temos uma chance de eternizá-la ao nos entregar para a amizade do outro.

Miguel mexeu os olhos em resposta. Sem ter certeza se estava rindo pelo carinho surpreendente de seu cão naquele momento ou chorando pelo acidente trágico.

As lágrimas escorriam, ao mesmo tempo, de contentamento envergonhado e de dor exagerada. Não conseguia separar os sentimentos.

Isto é a grandeza do humano, a imprevisibilidade do amor, que também mora na alma dos cachorros.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 24/02/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18084

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

MEUS FILHOS CRESCERAM, E AGORA?

Arte de John Tunnard

Jamais envelhecemos reparando em nossa idade.

O costume é nos perdoar, esticar as rugas com o riso, desprezar a falta de fôlego e os ossos estalando. Ainda guardamos dentro da gente a vitalidade do pensamento, mesmo que o corpo não acompanhe.
Relevamos as pontadas, o cansaço e a vontade de sentar logo ao entrar em uma sala. Não achamos que é sério. Costumamos explicar que é apenas uma indisposição temporária ou uma noite mal dormida ou o excesso do calor.

Não chamamos nunca a velhice pelo nome, está cheia de sinônimos.

O único jeito de encarar o peso dos anos é pela idade dos filhos. Eles nos denunciam. Eles nos entregam. São delatores de nossa data de nascimento. Representam um cartório sempre aberto dentro de casa.

Não tem como pintar o cabelo, estender pano de prato com calendário antigo ou fingir que não é conosco.

Meus pais esqueceram que já estão com 76 anos. Nem as cartelas vazias do remédio no café da manhã são alarmes de suas fragilidades. Mas lembrarão imediatamente do longo percurso se avisá-los que o caçula Miguel tem quarenta anos e que todos os seus filhos passaram das quatro décadas.
Eu me vejo como um guri, capaz de empreender indiadas e emendar noites trabalhando. Por mim, não sofreria abalo psicológico, não experimentaria crise de lobo, raposa, cachorro, hiena. Não me percebia velho. Nenhuma festa acentuava a passagem do tempo.

Até o momento em que comemorei o aniversário de 21 anos de minha filha. Mariana completou a maioridade. Sou pai de uma mulher de 21 anos. Minha menina é uma mulher.

Assim como o Vicente, que parecia um eterno bebê, acaba de pisar na adolescência com os dois pés. Fez 13 anos na última sexta. Meu piá tem 13 anos. A voz é de um homem, fala grosso e chiado, bate a porta do quarto com força exigindo privacidade.

Eu considerava que ambos demorariam séculos imaginários para alcançar a fase adulta. Não estou preparado para ter filhos adultos e abandonar o termo “minhas crianças”. Como se despedir da infância pela segunda vez?

É o medo de perder a paternidade mais pura, a confiança cega e incondicional de seus pequenos, e também o medo de não estar mais aqui para ver a sequência da família.

Recordo que os 13 anos do Vicente estavam ligados à quitação do imóvel de São Leopoldo. Era um longo financiamento, projetado para longe, numa realidade remota e absurda. O ano de 2015 soava, no contrato de 2002, como um filme de ficção científica.

Nem sonhava que esta data fosse existir. Pagava religiosamente todo mês como se fosse um dízimo perpétuo.

A ampulheta virou e perdi a contagem. Distraído com o mar, não enumerei os grãos de areia debaixo dos pés.

Pois aconteceu. Chegou esse dia que me diz que estou envelhecendo, que o futuro já é passado, onde o agradecimento e o pedido de desculpa estão soberanamente misturados.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.28
Porto Alegre (RS),  22/02 /2015 Edição N°18081

PAI PASSARINHO

Arte de Anastasiya Markovich

Minha filha de 21 anos veio com aquele papo estranho quando eu dava carona:

- Você não vai morrer cedo, né pai?

- Não, Mari, não vou morrer.

Depois de dez minutos, ela voltava com o assunto:

- Não vai morrer mesmo? Sabe que te amo muito.

- Eu também te amo muito. Ainda passaremos grandes momentos lado a lado.

Ela não se acalmava com as minhas respostas.

- Vou ficar furiosa se morrer, entendeu?

- De onde tirou esta preocupação, minha filha?

- É que você anda muito distraído. Como os passarinhos que quebram o pescoço e morrem.

Meu pescoço não quebrou, mas meu coração me arrancou do chão. Vi que minha filha não ama somente seu pai como uma fortaleza e um referencial de segurança. Amadureceu. Eu não sou mais eterno, o nosso sentimento que é eterno. Agora ela ama também a minha fragilidade, ama combatendo minha finitude, ama me protegendo e me salvando dia a dia com seu amor.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (20/2) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Jocimar Farina e Kelly Matos:

INFALÍVEL TOALHA DE CAPUZ

Arte de Eduardo Nasi

Uma das minhas melhores sensações era a toalha com capuz. Lamento que esta peça tenha exclusividade infantil e que não levamos para a vida adulta.

O que carregamos para a maturidade, em compensação, é o roupão, o que não acho que foi um bom negócio. Pelo menos para ala masculina, já que as mulheres adoram o cinto e a possibilidade de amarrá-lo.

O roupão é exagerado, abafado, pesado, um blazer de banho, uma cortina que vem acompanhada do blecaute.

Existe sempre a dúvida se a pessoa deixou o chuveiro ou está entrando no tatame. É mais uma roupa do que uma toalha — ideal para os preguiçosos, que não gostam de escolher o que vestir.
Sinto falta da toalha com capuz. De sua humildade e singeleza. De sua espontaneidade mágica. De sua funcionalidade despojada.

Largava a ducha ou a piscina e já me via acolhido. Não era apenas uma toalha para me secar, era uma toalha para ficar com ela até me secar. Um moletom fino que espantava o frio no inverno e não aquecia demais no verão.

Eu andava com a toalha como se fosse uma amiga de pano, longe da pressa e da mera utilidade. Segurava a toalha pela cabeça, sem a necessidade das mãos. Equilibrava seu tecido com a direção dos olhos.

Ela também colaborava com a imaginação e o faz-de-conta. Podia brincar que estava com uma capa de super-herói e correr com a impressão de voo. Podia inventar um escudo de invisibilidade e esconder meu rosto. Ou fingir que lutava boxe e desafiar as moscas e varejeiras. Ou ainda me disfarçar de templário em aventuras medievais para proteger o Santo Graal do refrigerante da ameaça das abelhas.

A toalha de capuz coroava a infância. Havia todo um reinado de fábulas me esperando.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
18/02/2015


FUTEBOLZINHO INOFENSIVO

Arte de Wifredo Lam

A mulher não é contra o futebolzinho do namorado na semana. É uma lenda. É folclore. É oposição inventada.

Ela até apoia e gosta, tem um tempo livre para não ser incomodada e assistir a uma temporada inteira de The Good Wife, sem nenhuma interrupção.

O que a mulher se irrita é com a incoerência da atividade esportiva. O homem volta pior do que quando saiu. Mais demolido, mais desmoronado, desprovido de fôlego, precisando de uma injeção de glicose na veia.

Ele se despede sóbrio, de calção, regata e tênis e volta dois quilos a mais, não a menos, com a barriga proeminente, bafo de cerveja e arrotando costela e pão com alho. É uma antiginástica, uma desidratação alcoólica. Bate a porta como um touro e regressa como um porco, incapaz de enfiar a chave na fechadura.

Que futebol é este que incha e acaba com o cara? Atravessou por uma máquina de moer ogro? Abandonou o lar disposto e centrado e retorna bêbado, proferindo neologismos, enrolando a língua e derrubando objetos.

Como acreditar que foi fazer um esporte? Não está nem mais suado, e sim com rosto pálido de engov. A impressão é de que passou o rodo numa churrascaria, num boteco, num bordel, na Cidade Baixa.
Não há como imaginar depois romance, sexo, carinho, palavras de amor, nem dormir de conchinha. Homem pós-jogo é nulo e tóxico. O sujeito deve permanecer no outro lado da cama, distanciado por uma muralha de travesseiros.

Além de estar imprestável para o restante da madrugada, esqueça a companhia dele no dia seguinte, envolvido com azia, enxaqueca e gemidos involuntários.

Mas não desconfie apesar das aparências enganosas. Homem usa o jogo como pretexto para o exorcismo dos bons modos, para expulsar a educação materna e a etiqueta social. A bagunça é mais importante do que a partida, a arruaça é mais fundamental do que o condicionamento. É tão somente uma criança viking, inofensiva, brincando de se destruir um pouco, escapando do controle do colesterol e da bebida, fofocando com amigos e contando as mesmas piadas de sempre. Até correu em campo, nada de especial, meia hora de grito para que os colegas passassem a bola e muitos gols perdidos. Ele se dedicou com volúpia para a mesa e cervejada no fim da pelada – banca o atleta, mas tem alma aposentada de técnico.

Já quando está traindo, o marido chega limpo e cheiroso do banho do motel. Neste caso, pode comprar briga e vender a casa.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 17/02/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18076

NUNCA DIGA

Arte de William Baziotes

Nunca diga para sua namorada quanto tempo ficou sem transar na vida - pode gerar ato falho e ela fazer uma recontagem.

Nunca diga para sua namorada que não têm amigas e que não acredita na amizade com as mulheres. Depois não poderá ter nenhuma amiga sem suspeita.

Nunca diga para sua namorada que é a última vez, não importando o quê.

Nunca diga para sua namorada que você traiu todas as suas ex e que ela é uma exceção. Não vai acreditar no milagre.

Nunca diga para sua namorada que é capaz de dar três (quando o histórico aponta no máximo duas).

Nunca diga para sua namorada “Tá bem”, ela sabe que não está.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (17/2) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Jocimar Farina e Kelly Matos:

O BRANCO QUE PASSA EM BRANCO

Arte de Toulouse-Lautrec

O homem tem uma séria desvantagem na praia em relação à mulher. O que justifica o nosso descaso para permanecer horas a fio em cadeira reclinada à beira do mar.

Não tem nexo tomar sol, expor-se aos raios como se a pele fosse um livro para ser trocado de página pelo vento.

Não há significado algum em banhar-se de luz de costas e de frente, simetricamente.

Não existe justiça para o trabalho masculino de se bronzear.

A mulher é valorizada pela marca branquinha que fica do biquíni; já o homem não, de modo algum.
É uma desigualdade estética, social e política.

Homem é apaixonado, louco, enfeitiçado por aquela região que evoca o líquido corretivo do papel. Tece homenagens, rilha os dentes, oferece piruetas de cachorro pidão quando ela se entremostra. Reconhece a glória da pele albina debaixo dos trajes, que determina o quanto ela se queimou e o quanto estava branca, que auxilia na comparação do antes e do depois, que pode ser demonstrada pela parte de cima ou pela parte de baixo do biquíni.

Por sua vez, a mulher não dá a mínima para o nosso branco ao tirar a sunga ou a bermuda. Ela ri. Ela debocha. Ela inventa piadas.

– Olha como está branquinho! – e aponta.

Não está excitada, não é uma reação de arrebatamento e volúpia, de morder os lábios e imaginar safadezas.

Desponta inofensivo como o focinho de um ursinho de pelúcia. É um detalhe bonitinho e fofo e querido e mimoso, nada a acrescentar na fantasia a dois.

Não tem a gravidade de um enredo picante, o combustível visual de uma atração fatal.

O branco nas coxas do macho não excita as fêmeas, não entra no ranking dos cinquenta e um tons de cinza. Não provoca nenhum frisson, não é um fetiche sexual e um afrodisíaco.

A sunga não será uma peça disputada nas últimas rodas do strip poker, talvez caia nas primeiras rodadas do truco.

Elas não chegam perto e sussurram:

– Posso espiar?

Longe de repetir nossa avidez e malícia para conferir a diferença da cor e o contraste.

Não compreendo o motivo. Temos tão poucos atrativos para esnobar. Não pintamos as unhas, não hidratamos os cabelos, não corrigimos as sobrancelhas, não nos depilamos.

Deixem-nos a sensualidade da marca da sunga, por compaixão.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS),  15/02 /2015 Edição N°18074

O FUNDO DOS OLHOS

Arte de Eduardo Nasi

Tenho devoção pelas olheiras femininas. Sei que é fácil disfarçá-las com corretivos e cremes, o que reforça ainda mais sua aparição atraente e rara.

Eu me encanto com os olhos levemente melancólicos, de quem viveu mais do que pensou, de quem não oferece uma segunda chance para os covardes.

Olhos que não saem de casa sem sua bolsa escura. Olhos de mar, de repuxo do mar, depois de festa para Iemanjá na praia. Olhos pintados com a cor da experiência, que indicam a intensidade e a passionalidade de suas portadoras.

As olheiras são um charme. Uma noite na pele. Um espírito boêmio que se mantém intacto pelas manhãs e tardes ensolaradas.

Mulheres com olheiras são irônicas, cínicas, desesperadamente felizes. Pode reparar. Falam o que vem ao coração, sem anjos e mediadores.

Não serão enganadas. O carvão quase apagado mostra sua ascendência das brasas e do fogo alto.
Olheiras conferem personalidade, atitude, ganas de viver.

Coroa de musa, saída de banho da embriaguez. Poeira enamorada de feiticeira.

Há uma tristeza mansa irresistível em suas bordas cinzentas, azuladas. Traduz enigma e insatisfação. É a marca daquela que não aceitará tudo, não aceitará de qualquer jeito, negará o destino para fortalecer suas crenças.

Olheiras fundas, que sempre me deixam indeciso se é insônia ou estilo de vida, se é desespero ou alegria de amante.

Não paro de observar quando vejo uma mulher de olheiras, é uma outra boca doce e amarga, é um convite na soleira das pálpebras. Não desvio a atenção, perco-me em miradas indiscretas, fixas e longas.

Minha vontade é tocar naquela pele que chorou ou não dormiu, mergulhar nos pequenos açudes onde a água salgada já visitou.

Olheiras significam que os olhos se espalharam pelo rosto. E ver e viver se equivalem, palavras que se tornaram absurdamente iguais.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
11/02/2015


CALA A BOCA, MÃEPAI!

Arte de Johann Friedrich Overbeck

Família é para provocar vexame.

Não importa a minha idade. Ainda hoje tem coisas que meu pai e minha mãe falam que ainda criam constrangimento. Eu fico encabulado, vermelho, com vontade de me esconder debaixo da mesa. É uma história da minha infância que não cansam de repetir para qualquer conhecido. Ou é uma indiscrição, tipo "Fabrício só parou de mamar aos 4 anos". Ou "tive que colocar pimenta para ele largar o bico".

A vontade é gritar: Cala a boca mãe! Cala a boca pai!

Família sempre diz algo que não queremos, que não precisava, que é chato e vergonhoso.

Tudo o que desejamos esquecer, enterrar, ocultar para os outros, a família lembra.

Enquanto os amigos passam nossa melhor versão, a família passa a nossa pior versão adiante.

Não tem o que fazer. Família boa, reunida, feliz é sempre delação premiada. É nossa indústria permanente de escândalos.

Ouça meu comentário na manhã dessa sexta-feira (13/02) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Jocimar Farina e Kelly Matos:

AMIZADES DEFINITIVAS

Arte de Edward Burne-Jones

Amizade vai além do momento.

É comum ser amigo de contextos idênticos e se distanciar com os hábitos diferentes.

Quando você está solteiro, o normal é fazer cumplicidade com quem frequenta festas e não se apega a uma relação. Quando está casado, o normal é criar laços com outros casais e privilegiar jantares e viagens. Quando está com filhos, o normal é sair com quem também está conhecendo as manhas e as longas manhãs dos bebês.

Amizade verdadeira ultrapassa a normalidade e o oportunismo do convívio.

Estas nem são amizades verdadeiras, mas afinidades circunstanciais. São colegas de uma época, de uma fase, de um estilo. Acabam unidos provisoriamente por um gosto, circunscritos a uma vizinhança etária. Desaparecem diante de nossa primeira mudança, de nossa primeira transformação de personalidade.

Permanecem quando há um interesse imediato, um arranjo benéfico do cotidiano, e somem quando não existe mais uma desculpa para se ver e se ouvir. Dependem de um pretexto para se manter próximos.

Os conhecidos da academia ficarão no passado dos halteres assim que cansarmos dos treinos. Os conhecidos da faculdade ficarão na lembrança do quadro-negro assim que nos formarmos. Os conhecidos dos cursos de idiomas ficarão nos livros de exercícios assim que dominarmos uma nova língua.

Amigo mesmo é o que não experimenta uma fase igual e permanece junto. Quebra o espelho e não se machuca com os cacos.

Amigo mesmo é o que não tem filho e vem brincar com nossas crianças, não reclama dos gritos e dos choros e não diz que “pela trabalheira, não pensa em ser mãe ou ser pai tão cedo”. Não se justifica, está lado a lado qualquer que seja o cenário.

É aquele que se separou e não amaldiçoa nossa paixão recente. É aquele que não tem emprego fixo e não inveja o nosso sucesso. É aquele que não tem nenhum problema grave e escuta com paciência e atenção as nossas lamúrias.

Não é o de empatia fácil, feita de experiências semelhantes: só porque atravessa a fossa entende a nossa fossa, só porque transborda de alegria festeja a nossa alegria.

Amigo não dá nem para contar nos dedos, pois sempre estará segurando nossa mão.







Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 10/02/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18069

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

ESPERANÇA NÃO É TOLICE

Arte de Francesco Curradi

Sou muito esperançoso:

Acredito que vou curar dor de cabeça com AAS infantil.

Está chovendo há uma semana, dilúvio, Arca de Noé, e lavo a roupa de cama e as toalhas pensando no sol.

O chefe me chama na salinha para me demitir e ainda penso que serei promovido.

A namorada quer terminar a relação enquanto compro anel de noivado.

Meu time perde de 4 a 0 e não saio do estádio confiando na virada.

Posso ser confundido com um idiota. Mas prefiro ser esperançoso do que pessimista, que sofre duas vezes: antes e depois.

É necessário coragem para ter esperança. Temos mais medo da esperança do que do desespero.

Ouça meu comentário na manhã dessa terça-feira (10/02) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Jocimar Farina e Kelly Matos:


SUPERMERCADO DAS PAIXÕES

Arte de George Grosz

Não reconheço como grande obstáculo mudar por alguém. É uma bobagem resistir, uma tolice se esconder no orgulho e encher a boca para dizer que precisa me aceitar como sou. A soberba é inimiga da evolução.

Ao se separar vai terminar mudando, então por que não mudar dentro da relação? O resultado será igual. Até porque, depois da distância, fará tudo o que ela queria por birra.

Casais desfeitos mergulham numa guerra de reformas e de lista de intenções. Tropas de carentes procurando chamar atenção a todo instante na web, obcecados em provar que estão melhores, sadios e irresistíveis e sinalizar o quanto o ex ainda se arrependerá da decisão.

Se ela reclamava de sua barriga e de sua flacidez, começará academia imediatamente e assumirá a condição de marombado. Se ela xingava sua pouca insistência com os livros, estará matriculado num curso de leitura dinâmica. Se ela zombava de seu inglês, entrará em aulas de conversação. Se ela morria de ciúme, passará a explicar a rotina aos amigos e evitará respostas genéricas e evasivas. Se ela reclamava de sua preguiça, acordará às 6h da manhã para correr.

Por vingança realizamos mais melhorias de nosso temperamento do que por amor. Só para jogar na cara. Só para provocar inveja e ressentimento.

Divorciados, acabamos nos tornando curiosamente o que o outro desejava, o que o outro tanto reivindicava. A ironia é que, tomando tal atitude durante a convivência, a separação não teria acontecido. A metamorfose surge quando não há laços para consertar. É o equivalente a aumentar o salário e promover quem já demitimos.

Ninguém é o mesmo por muito tempo, não vejo sentido em espernear no supermercado das paixões.

Eu sou influenciável, maleável, não permaneço com a personalidade imutável. Águas paradas não são profundas, apenas têm o maior risco de dengue.

Eu mudo com gosto, com vontade. Por curiosidade ou para oferecer uma nova chance ao casamento. Nem sempre alcanço resultados esperados ou atendo às expectativas, mas não nego a experiência de me aperfeiçoar e me aventurar em diferentes hábitos. Vá que funcione! E todo mundo ainda pode recuar e retomar velhas escolhas.

Não tentar que é difícil de explicar.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS),  08/02/2015 Edição N°18067

FUTEBOL COMPOSTO E MENOS ÍNTIMO

Arte de Roger de La Fresnaye

Conhece este ataque?

Roberto Rivelino, Gérson de Oliveira Nunes, Edson Arantes do Nascimento, Eduardo Gonçalves de Andrade e Jair Ventura Filho.

É a seleção maravilhosa de 70. Com os apelidos, todo mundo destrava a língua: Rivelino, Gérson, Pelé, Tostão e Jairzinho

Reconhece esta formação ofensiva?

Antônio Carlos Cerezo, Paulo Roberto Falcão, Éder Aleixo de Assis, Arthur Antunes Coimbra, Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira e Sérgio Bernardino

É o time mágico de 82. Com os apelidos, ninguém esquece: Cerezo, Falcão, Éder, Zico  Sócrates e Serginho.

Agora jogador inventou de empregar nome composto.

Até atacante, centroavante, matador, meia. Antes nome composto era exclusividade de zagueiro, para impor respeito.

Acabou a época dos apelidos, da identificação imediata e folclórica, do nome curto, emocional, passional, para a arquibancada gritar e criar cantos.

Tristes os narradores esportivos, que precisam se virar para não perder tempo no lance. De repente é gol, e ainda estão descrevendo um passe de Paulo Henrique Ganso para Alexandre Pato. 

Isso prova que os jogadores estão mais próximos do empresário do que da torcida.

Ouça meu comentário na manhã de sexta (6/2), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


FALSO DESTRO

Arte de Eduardo Nasi

Minha letra é feia, desastrada, um garrancho de médico.

Emendada já era uma árvore em chamas, separada é um floresta extinta.

Só serve para criar assinatura, não para ser legível.

As professoras não corrigiam minhas provas, traduziam as provas para depois corrigir.

Até meus números são esquisitos. Cumpro a façanha de criar confusão entre o 9, o 3 e o 4 ou entre o 1 e o 2. Gero trotes quando passo telefones, produzo ligações erradas. Nenhum familiar pede mais para que anote qualquer coisa — é desperdício de tempo.

Enfrentei tantas frustrações ao longo da vida que alimento a ilusão de retornar ao primeiro dia de aula daquele fim de fevereiro de 1979, onde a professora da escola nos mostrou que escreveríamos com a mão direita, a mão certa para aprender a empunhar o lápis.

Houve uma explicação de como usar o lápis e éramos condicionados a repetir o desenho das letras que estava no quadro negro.

Eu peguei o lápis com a mão esquerda, minha mão boa, minha mão de maior força, e não sofri nenhuma complicação para imitar o alfabeto.

Foi fácil, tranquilo, fluente. Esgotei a tarefa em poucos minutos, o cheiro do álcool do mimeógrafo nem havia evaporado. O lápis se comportava como um sexto dedo.

A “sora” se aproximou de minha classe, levantou a folha, parabenizou o contorno, mas emitiu a sentença que mudaria a minha vida:

— Muito bom, mas agora faz com a mão correta: a direita. Não é para escrever com a esquerda. Se escrever com a esquerda, fica em castigo.

E lembro que ela piscou o olho esquerdo. O maldito olho esquerdo. A piscadela de sua pálpebra me transtornou mais do que a reprimenda. Por que, então, ela não piscava com o direito?

Já tive vários pesadelos com ela piscando o solitário olho para mim.

Foi uma iniciação no cinismo na infância. Ameaçava fazendo charme. Uma situação ambígua: severidade e doçura, rigor e sedução. Não contava com a certeza se iria mesmo me penalizar ou se estava cumprindo seu papel de educadora.

A questão é que não me permitiu escrever com a canhota, eu que nasci para ser canhoto: jogo sinuca com a mão esquerda, ergo os objetos com a mão esquerda, me defendo com a mão esquerda, acaricio com a mão esquerda.

Não desfrutei da liberdade de escolher o braço da minha escrita.

Forçado a ser um outro. Um estranho de tinta e mancha. É como perder sua sombra logo cedo. A palavra é nossa sombra.

Apanhava demais das linhas para manter a motricidade mínima do lado destro. Não passeava, mas marchava. Não deslizava, mas caía. O último a realizar as tarefas. O retardatário. O que restava sozinho na classe após o sinal.

Como seria minha caligrafia se escrevesse com a esquerda?, flagro-me sonhando na aula ao receber os cadernos de meus alunos.

Linda, compreensível, arredondada?

É uma ilusão supor que salvaria o traçado da minha angústia.

Minha letra seria muito mais feia. O domínio piora a letra.

Como teria destreza e firmeza, aumentaria minha pressa, minha ânsia de acabar logo com a frase.

A ansiedade está no sangue.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
04/02/2015


O BAGAGEIRO E A MALA

Arte de Fortunato Depero

Homem sabe arrumar bagageiro, mas fracassa ao organizar sua mala.

O bagageiro do carro é sua mala.

Lembro as técnicas militares do meu pai quando passávamos um mês no litoral gaúcho.

Naquele tempo, carregávamos a casa para o mar, não íamos somente para o mar.

Tínhamos que levar tevê, ventilador, cadeiras, isopor, panelas, afora as bagagens do casal e dos quatro filhos.

E mais brinquedos. E mais bicicletas. E pranchas. E patins.

A mãe sempre se metia na frente e tentava acomodar as quinquilharias no Corcel II.

Na metade do processo, ela desistia e gritava com todo mundo:

– Vamos, pessoal, optar e selecionar o que cada um realmente vai usar.

Nessa hora, vinha o pai, com seu boné de poeta Neruda, analisava o tamanho da encrenca, um contêiner de alças, e pacificava:

– Deixa que resolvo, não precisa tirar nada daqui.

Ele iniciava um longo processo de quebra-cabeça, de encaixe de conteúdo pela forma e pelo peso do objeto, empregando desvãos e esconderijos inimagináveis debaixo dos bancos.

Virava um samurai, com movimentos lentos e seguros, numa coreografia que se assemelhava à saudação ao sol da ioga. Durante 30 minutos, em insana caixa registradora, retirava coisas e depositava de novo.

E aquilo me impressionava. Só ele conseguia lacrar o porta-malas, parecia que seria impossível!, e ainda garantir uma abertura ao retrovisor.

Quando batia a porta e estalava o clique, todo mundo aplaudia. Era uma cena mais festejada do que churrasco de domingo.

Já o pai com sua mala era um fiasco.

Desleixado, confuso, sem ordem nenhuma na colocação das roupas ou na importância dos itens.

Botava embalagens frágeis no forro, perfeito para quebrarem, dobrava as calças como cobertor e esticava as camisas como redes de varanda.

E ficava irritado e socava o couro e urrava de insatisfação.

A mãe precisava dar um jeito, senão ele jogaria tudo no chão.

Com a arte mínima das unhas, a paciência de leque das mãos, a figura materna reorganizava as peças, criava canudos com as roupas, explorava os bolsões com domínio e equilíbrio.

No final, a mala paterna que antes transbordava agora chamava outros convidados do armário e da estante. E o pai podia, inclusive, ampliar seu repertório de livros e sandálias.

Minha infância veio à tona quando vi minha mulher arrumando seus pertences para as férias em Búzios (RJ).

Ela não sentava na mala como eu, não ficava de pé nela como eu, não ameaçava a integridade dos produtos caros de cabelos e pele com golpes de caratê, não produzia curvas de autódromo no zíper como eu.

Simplesmente conversava com a mala:

– Fecha, por favor, a gente merece ser feliz.

E a mala obedecia.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 03/02/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18062

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

SUSPEITAS

Arte de Francis Bacon

Um dos meus passatempos é me divertir reparando os nomes das conexões de internet das pessoas.

Revela muito da identidade do sujeito.

É acessar o Wi-Fi do celular e as redes de segurança aparecem em cascata.

É um excesso de criatividade. Dá para descobrir quem é o seu vizinho apenas pelo batismo da internet. Nem preciso ser hacker para adivinhar.

PSDBNUNCAMAIS é o petista do segundo andar.

PETRALHAS são os velhinhos do quarto andar que sempre passeiam com roupas engomadas.

PIRATABARCOS é o adolescente que me ofende em dias de jogo da janela do quinto andar.

LASSIE é do casal do terraço que tem três cachorros.

CARACAMULEKE é da vizinha da porta da frente, que fica escutando pagode a todo volume. Só podia ser ela, fã do Thiaguinho!

GARGANTA PROFUNDA, este é o único que não sei, mas olho para todo mundo que passa pela portaria com muita desconfiança.

Ouça meu comentário na manhã desta terça-feira (3/2), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


COITADA DE EVA

Arte de Charles Angrand

Não há maior solidão do que a de Eva.

Ela não tinha mãe. E não podemos considerar a costela de Adão propriamente uma madrasta.

Ela gerou uma penca de filhos sem ter onde deixá-los no final de semana para desfrutar de um cineminha e de um jantar romântico.

Não dividiu com ninguém a alegria do primeiro beijo, da menstruação chegando, dos seios crescendo, do exame positivo da maternidade.

Precisou aguentar um marido que não morria – viveu 930 anos – sem a possibilidade de desabafar os problemas do relacionamento, como quando Adão puxava seu cabelo ou se metia com a bebida ou desejava gastar todo o salário em briga de galos.

Não contou com conselho materno para esfriar a rivalidade entre Caim e Abel.

Não recebeu dica de nome para suas crianças. Sete prova que não restava mais criatividade, já recorria à numeração.

Não ganhou explicação de método anticonceptivo antes de sua primeira experiência sexual.

Jamais acertou a receita do bolo de fubá simplesmente porque não conheceu nenhuma vó.

Ficou sozinha para enfrentar a lábia da serpente.

Nunca pôde usar a expressão “nem por cima do cadáver de minha mãe”.

Não se sentia ofendida quando era xingada na selva de “filha da p...”.

Não teve sequer uma mãe para mentir e comer escondido o fruto proibido.

Não pôde seguir um exemplo ou ser a ovelha negra da família. Não cresceu na adversidade: não suportou pressão para se casar, prestar vestibular e seguir carreira.

Não havia graça nenhuma em fazer terapia sem uma mãe para colocar a culpa.

Terminou pagando mico ao usar pele de animal para passear no Éden, pois não herdou roupa alguma.

Tombou com salto alto nas trilhas, desfalcada de um tutorial de mãe.

Uma vez por mês, explodia em TPM, chorava, arcava com cólicas, morria de vontade de chocolate, sem saber o que acontecia com seus hormônios.

Não entendia a diferença entre cócegas e orgasmo.

Não desfrutava da opção de se separar do marido e voltar para a casa da mãe.

Eva foi, sem dúvida, a mulher que mais sofreu no mundo.




Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS),  01/02/2015 Edição N°18060