quarta-feira, 24 de março de 2010

PESSOA PREDILETA

Arte de Tereza Yamashita


Sou barman da memória.

Misturo as bebidas, as lembranças e giro de um lado para outro tentando entender. Dependendo do que vejo, sou capaz de dançar.

Minha primeira vez com a Cínthya, não recordo o que tomei, nunca consegui repetir. Permaneço com ela somente para descobrir a receita. É mentira, já estou brincando porque estou emocionado. Costumo fazer isso: brincar quando estou nervoso, brincar quando estou desesperado, brincar quando estou angustiado, o que me torna um homem aparentemente bem-humorado. Se não fosse minha cultura, dançaria sertanejo. E sertanejo universitário, para mostrar com que copo derramado você vem conversando.

Não desejava amar de novo. Acabava de me separar. Experimentava um pavor corajoso, o mesmo que sentia de pequeno, quando tinha que atravessar o pátio escuro correndo, correndo acelerado, para buscar a bola abandonada na grama.

Fui trocar prosa fiada com um grande amigo no bar. Mandei um torpedo antes para Cínthya, de quem somente conhecia a voz ao telefone, avisando que estaria no Apolinário. Ela desenhou camisas com minhas crônicas. Um trabalho artesanal para oferecer de presente aos amigos.

Ela veio em quinze minutos, meu amigo não acompanhou o relâmpago. Imaginei que conversaria com uma fã, alguém que gostava do meu estilo, que inflamaria a vaidade. Mas não. A gente começou a discutir a ponto de fazer uma queda de olhos mais do que de braço.

O amigo se isolou, assistia ao entrave como a uma partida de tênis, cuidando os arremessos na marca. Logo desistiu e pagou sua parte na conta.

Não que ela fosse truculenta. Pelo contrário, educada e delicada, tomada de uma fragilidade de quem prende a respiração e tira vidro da pele. Havia uma leveza em seus cabelos, um vento próprio, a impressão é que andava com um pajem em suas costas. Vá que seu anjo seja um pajem.

Luminosa, aérea, linda em seu despojamento, percebia nela uma pobreza de paraíso. Ela era toda essencial, não se conseguia roubar coisa alguma de seu temperamento. Não usava nenhum vestido, não apareceu produzida, estava de jeans e uma camisa básica, sem pintura. Como se fosse descer para pegar uma carta em seu edifício. Não me concedeu importâncias de visita.

Aquele primeiro encontro é incompreensível mesmo. Não criamos nenhuma cumplicidade imediata, nenhuma sintonia evidente; cortejamos o deboche. Os garçons não diriam que ficaríamos juntos, apostavam 3 por 1 que não sairíamos no mesmo carro. Nem nós. O destino escreve rápido e esconde a folha. Mudo a cena, viro de cabeça para baixo e não capturo o que nos aproximou. Por quê?

Talvez o riso dela, que aumentava a altura do teto. Talvez a boca límpida, que não sobrava em nenhuma palavra. Ou sua capacidade de se devotar a cada frase com “o quê?” como se não houvesse escutado para ganhar tempo do revide.

Ela foi lavar as mãos e me aproximei e passei a lavar seus braços, seu rosto, a ensaboá-la, nem pensando em como receberia meu gesto, se me afastaria com violência ou aceitaria mansamente a minha loucura. Naquela hora, eu queria dar banho nela. Naquela hora, esqueci o lugar. Esqueci que estava cheio. E beijá-la era beijar sua pálpebra por dentro.

Somos tão diferentes e tão apaixonados. Ela tem disciplina, eu tenho obsessões. Eu guardo minhas culpas no desejo e distribuo desculpas. Ela odeia culpa e não perdoa. Sou alucinado por casamento, ela jura que é cativeiro. Cansamos com frequência, não aceitamos fácil um ponto de vista, não falamos amém para uma teoria ou uma descoberta, o que é estranho para mim depois de imprevisíveis metáforas. Convivemos com réplica, tréplica, uma curiosidade infinita pelo avesso. Não convivemos com o suspiro, porém com o soluço. O soluço é o nosso suspiro. O soluço é o suspiro da discussão.

Ela tem um medo assombroso de mim, do quanto posso feri-la. Eu tenho um medo danado dela, porque é bem capaz de viver sem mim. A linda cretina nunca disse que não vive sem mim, acredita? Nunca, nem dormindo…

O amor dela é tranquilo, imutável, o meu é para agora, renovável. Ai se ela não demonstra apego numa tarde, mergulho em surto. Ela não depende de jura e declarações, está bem assim, cercada de um silêncio atento, sabendo que a amo. Quando preciso dela, ela supõe que é drama e mais uma artimanha para ser o centro dos acontecimentos. Quando ela precisa de mim, eu deduzo que ela procura se afastar e perdeu o interesse. Já brigamos no carro, no elevador, no shopping, acordamos vizinhos, assustamos os donos e seus cães na rua e insistimos e nos perdoamos porque somos tão apaixonados.

Existem enigmas guardados na pequena mesa de um bar da Cidade Baixa. O enigma é o futuro do segredo. Muito mais do que poderia beber naquela noite. Muito mais do que poderia conservar numa vida. Muito mais do que possuo condições de antecipar pela minha ansiedade.

A esperança pode vencer a experiência. A esperança é uma experiência.



Crônica publicada no site Vida Breve

31 comentários:

Karol disse...

Adoro tudo que vc escreve
hauahau
=D

Pimentinha disse...

Graças a Deus! voltaste a escrever coisas romanticas!!! adoro!!!
Obrigada Cintia!!

la increible aventura disse...

e de pensar que quase todos os dias eu me apaixono dessa mesma forma. ainda bem que não são só pessoas, mas de tudo um pouco.

juliana disse...

Eu também nunca disse que não vivo sem o meu amor, mas vivo sim, antes de amar o outro, precisamos amar a nós mesmos, se a perda um dia vier a acontecer, paciência, acredito que duas pessoas ficam juntas mesmo sendo diferentes como vocês dois quando a história e o sentimento não acabou, quando as diferenças passam a se tornar insuportáveis o fim é a melhor escolha.
Que bom vê-lo assim Fabro, cheio de gás e muito amor,te ler se tornou um vício pra mim.
Bjosssssssssssssss.

Unknown disse...

Vania disse:
Adorei o texto!
Concordo com a Juliana, ler você virou um vício...

Pri S. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Pri S. disse...

Que declaração linda! Realidade cheia de metáforas com espaço para romance e confissão das fragilidades.

E justo eu, que gosto tanto de escrever, e que me entendo através da palavras escritas, fico sonhando com um texto feito por aquele que me amar. Um texto para mim, sobre mim, assim como esse lindo presente que você fez para a Cínthya.

Que a estória de vocês seja sempre repleta de frases e ilustrações. :-)

Claudia Costa disse...

Lindo!

Andréa disse...

lindo amor no encontro do respeito às diferenças.

Augusto Amato Neto disse...

Sou vidrado nas histórias de vida, e mais, gosto dos tipos de amores que nascem sem saber como, de uma situação que aparentemente não prometia nada.

Anônimo disse...

Enquanto lia essa tua crônica, não me saía da cabeça a canção "Love minus zero / No limit", do Bob Dylan. Bárbaro, como sempre. Abraços.

Anônimo disse...

puta que pariu, Fabro!
que coisa linda...
amo cada vez mais o que escreves...
beijos, Pam

HUGOSALUM disse...

É, a Cinthya é daquelas que chega para ficar, e se impões com delicadeza, com um sorriso manso... perigosa, mas adorável...sedutora...

Ana Paula Montenegro disse...

Eu que sempre leio cada vírgula sua, cada pausa pra respirar, mas nunca comento...Não me contive diante da beleza do texto de hoje. Seu jeito passional de amar, lembra-me um antigo amor e o dela, o meu jeito atualmente. Fã do amor de voces, das histórias, dos textos bem escritos, da paixão serial killer..risos..Torço pra que permaneçam assim: amados, cúmplices pelo avesso, apaixonados pela diferença e por tudo que os mantem vivos. Beijos, Fabricio e Cinthya. ;-)

ana disse...

ai, que inveja gostosa.

Ramiro Conceição disse...

Caro Fabro,
ao teu amor...



FILHOS DO SOL
by Ramiro Conceição


Lembra-se daquela vez
em que éramos inocentes
simplesmente caminhando?

Lembra-se daquela vez
em que tínhamos somente
o nosso frágil amor?

Lembra-se daquela vez em que juramos?
Lembra-se de como nos amamos?
Lembra como brilhamos de felicidade?

Lembra-se daquela vez em que brigamos?
Lembra de como nos xingamos,
como nos amaldiçoamos?

Lembra-se daquela vez em que voltamos?
Lembra como festejamos?
Lembra do cuidado com que nos reconhecemos?

Lembra daquela vez em que morremos...?
Lembra do quanto choramos...?
Lembra de como oramos a Deus...?

Lembra daquela vez em que você e eu
amamos outra vez?
Sim, éramos e somos - filhos do Sol.

Maria Tereza disse...

Com uma declaração dessas, não haverá mais motivos pra Matando Carpinejar! Lindo texto! =)

Racconte disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rita disse...

Bárbaro!
Dessa vez, o parabéns vai para a Cínthya, por inspirar uma declaração tão linda!
Sucesso para ambos!!
bjs

Terráqueo disse...

Maravilhoso, parabéns.

Carla disse...

Que coisa mais linda. De chorar.

SuélenCristina* disse...

Aah! Lindo! Me senti apaixonada tbm! Pelo menos enquanto nos minutinhos que li teu texto. Parabens pela nova conquista... parabens por ser conquistado!
Abraços!

{ Scrappiness } disse...

O amor se torna realmente um elo quando somos capazes de respeitar as diferenças e contiuar amando. Obrigada por compartilhar a experiência com todos nós, o texto é lindo!

MLL disse...

fã declarado, comentando somente agora. mas também, diante de tanta beleza desse texto, devo me render realmente :) abraço

Rouxinol disse...

Ahhh!!! Que lindo!!!
O amor é lindo!!!
Parabéns pela crônica.
Beijosssssss

Nat. disse...

Ah, o amor! bom saber que ele ainda existe!
Belissimo texto!

Leandro Tavares disse...

Fazia tempo que não lia algo assim, gostei.
O enigma é o futuro do mistério. Gastei um tempão pensando nisso!
parabéns pelo texto.

Beta disse...

Fabro, fazia tempo que não passava por aqui. Que linda declaração. Que mulher sortuda a Cinthya.
beijos de Sampa

Jééh disse...

nossa lindo
tão apaixonante e real

fazia um tempo que'e não passava por aqui, mas vejo que o lugar continua sendo muito agradável ^^

Renata de Aragão Lopes disse...

É difícil a convivência
entre formas distintas de amar.

A interseção dos amantes
tem de preponderar
sobre as suas individualidades...

Belo texto!
E boa sorte no romance! : )

Beijo,
doce de lira

Adélia Carvalho disse...

Amor assim não exige uma história para justificar seu começo. Vem quando quer, sem pedir motivo. A gente cuida depois de inventar razões para explicar o inexplicável. E o amor vai se aquietando nas invencionices que lhe damos. E se deixa contar.