quarta-feira, 5 de maio de 2010

SMS

Arte de Tereza Yamashita

O medo é supersticioso, não eu.

Tenho que vestir a mesma camisa surrada para assistir jogo do Inter. Quando estou em dúvida amorosa fecho um envelope vazio e mando pelo correio ao meu endereço. Só atendo o telefone no quarto toque. Coisas dessa laia.

Vivo abastecendo sinais, testando o sexto sentido. Sou um talentoso taquígrafo de suspeitas. Ansioso demais para aguardar estrelas cadentes ou velas de aniversário. Sopro pedidos a toda hora.

As viagens sucessivas me tornaram altamente atento aos detalhes, sempre à beira da morte ou de um milagre.

Embarquei para Poços de Caldas, com escala em Campinas. Sentei no fundo da aeronave e notei que esqueci a revista que comprei na tabacaria. Dei dinheiro de graça, idiota. Já entendi como uma advertência, que bobagem sair de casa. Tudo é uma mensagem das intenções do destino comigo. Abaixei os ombros e tentei adormecer, poderia ser também a manifestação do divino para acalmar o corpo e me poupar do estresse.

Quando encontrava a zona erógena das pálpebras, o avião começou a tremer. Ouvi que nos aproximávamos de uma zona de turbulência. Ou seja, mais importante do que qualquer zona erógena. Levantei a bandeja e puxei conversa com meu vizinho. Puxo papo apenas prestes a cair. Eu me sentia em desvalia, tal criança apresentando trabalho numa Feira de Ciências.

A asa farfalhava, isopor de aeromodelo. Logo iria quebrar. O vento corria a 220 km/h. As turbinas se soltariam em tocha olímpica, acrescentando crepúsculo ao céu paulista.

O quarentão que me acompanhava parecia simpático, falante, cheirando a loção pós-barba. Um pouco avarento, sem dúvida, já que escondeu dois pacotes de batatas chips no bolso do casaco. Cismei em questionar sua profissão. Levei um susto: pastor da Igreja do Sétimo Dia. Nunca havia me acomodado junto de um pastor. Era o selo do Juízo Final. Um pressentimento fúnebre. Ele estava ali para encomendar minha alma, recomendar os pecados para a triagem das cinzas.

Ainda suspirou diante da janela:
— Seja o que Deus quiser.

Apanhei suas palavras como uma extrema-unção. Não inspirava pose de cabra que lutaria pela sua permanência até o último baque. Entregou de cara o jogo ao juiz.

Ele me perguntou se tinha fé, falei que sim, senão não torceria para o Internacional. Meu riso não comoveu suas covinhas, tinha simpatia pelo time do Olímpico. Esclareceu que eu não deveria levar futebol a sério. Repliquei que se fosse gremista, não levaria mesmo. Ele fez um estrondoso sinal com o dedo na frente da boca:
— Shhhh!, não é momento de brincadeira.

E chamou a aeromoça pelo painel luminoso.

A atendente veio com aquele rebolado típico de desastre, batendo com suas coxas nas poltronas.
— O que deseja?
— Um lenço de papel, por obséquio?

Era a primeira vez que ouvia alguém usando obséquio. Claro agouro de que iria morrer. Uma premonição muito maior do que dividir o braço de couro com um pastor. Por obséquio, a gente escuta uma vez na vida e outra na morte. Significava um torpedo de Deus. São poucos os instantes em que o poderoso está online.

Fiz o levantamento das linhas tortas: a revista extraviada, o pastor e o obséquio; não havia escapatória, estava liquidado, dormi para sedar o efeito do fogo.

Ao acordar no aeroporto de Viracopos, eu me vi ludibriado. Como que sobrevivi? Não é justo traduzir profecias do aramaico e não receber a mínima atenção.





Crônica publicada no site Vida Breve

26 comentários:

Alex disse...

Um excelente texto. Parabéns pela criatividade, originalidade e bom humor.

Asdrúbal disse...

Que delícia de texto. Leve, cativante e bem-humorado! Parabéns!

Anônimo disse...

Que maravilha! Eu sou um pouco assim,rsrs, colorado e místico de meia tigela :)

líria porto disse...

risos - ainda bem que existes - podes traduzir nossos temores e ainda nos fazer rir deles...
besos

(canalha!!! )

Luana Gabriela disse...

Fabrício a melhor parte foi ter fé se não não torceria para o Inter e o parágrafo do grêmio.

Bjos

Patrícia Marques disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Patrícia Marques disse...

Adorei, acordei triste com alguns desencontros da vida, e eis que ao som da música de Los Hermanos e seu texto, soltei um sorriso.

Parabéns!

Rodrigo Rocha disse...

Fabro, ri muito! hahaha Se o obséquio vai aparecer uma vez na vida, outra na morte, cuidado! Fuja das pessoas formais!

milu disse...

Que maravilha!!Ler teu post de manhã e passar o resto do dia com um sorriso no rosto. Bjs.

Augusto Amato Neto disse...

Muito divertida a descrição da cena. Quando a intuição funciona, antevê o que está nas entrelinhas, acabamos procurando o tal "pelo em ovo". Ter tido sucesso na intuição é o que complica...
Engraçado, pois estarei com você na oficina no Barco semana que vem, e senti um alívio em saber que, ao escrever sobre o SMS de Deus, que estava vivo e portanto, poderei te conhecer pessoalmente na oficina.
Aí imediatamente lembrei que deve haver o vôo até Sampa. Tomara que Deus esteja Offline... rs
Até semana que vem!
Abraços,
Augusto.

Daniel Moreira disse...

Muito bom o texto. Visite-nos no blog http://revista-seja.blogspot.com Um abraço, Daniel

Luz del Fuego disse...

Sempre adorei seus textos e a simplicidade como as vezes vc traduz coisas complexas como por exemplo as noaasa "superstições" e manias... As formas como vemos td como um anuncio do destino, msm qdo não cremos nisso...rsrs Obrigada por nos brindar sempre c seus textos, palavras, idéias... Um bjo!

Jander disse...

Adorei o texto, todo ele.. e, a frase "Tudo é uma mensagem das intenções do destino comigo" diz tudo.. adoro ai as perolas q voce tira do fundo do seu mar e compartilha conosco.. obrigado! Jander

Anônimo disse...

"Ansioso demais para aguardar estrelas cadentes ou velas de aniversário. Sopro pedidos a toda hora."

Você é um gênio!

Tatiana Monteiro disse...

Quem é você??? Por favor, me diz! Sensacional texto.

Tati disse...

Esse é o problema dos SMS, às vezes eles vão para números errados.
Sorte a nossa!
Beijos.

Anônimo disse...

Adorei seu texto! Magnífico tudo que escreve!
Até hoje me dá um aperto no peito quando lembro que perdi o meu "Canalha!"!
Só para constar... Também ouvi ninguém falar obséquio. Ficarei atenta! Quando alguém falar, eu começo a orar/rezar para que o avião não caia.
=)

"Puxo papo apenas prestes a cair." eu também sou assim.

Cida disse...

Amei!!!

Difícil vai ser, de agora em diante, pegar um avião sem me lembrar de você...

Beijos e bons voos.

Cid@

Maria Tereza disse...

"Era o selo do Juízo Final. Um pressentimento fúnebre. Ele estava ali para encomendar minha alma, recomendar os pecados para a triagem das cinzas." que drama! rsrs... ótimo texto! =)

João Pedro disse...

Com a intuição não se brinca.

Sabendo usá-la podemos nos livrar de muitos embaraços.

juliana disse...

Você sempre nos surpreende Fabro, ainda bem que voltou salvo dessa viagem.
Bjossss, te admiro demais.

egosatira disse...

O divino anda se manifestando demais; o transtorno de ansiedade generalizada que o diga.

João Jesus Fonseca dos Santos disse...

Inteligente e divertido...muito bom de ser lido...perfeito o texto. Já havia lido outras crônicas e considero uma melhor que a outra; me impressiono com a tua capacidade de escrever de forma tão peculiar e interessante a respeito de várias temáticas: de cuecas até acerca da intuição. Parabéns pelo blog e pelo dom da escrita!
Abraço.

Senhorita.Naylon disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Renata de Aragão Lopes disse...

É justo, justíssimo! (risos)

Raiana Reis disse...

É Fabrício, vc como Nostradamus está um ótimo escritor. Coloca na revisão teu sexto sentido, ainda tem muita crônica sua pra ser escrita! Adorei as risadas provocadas por este SMS. =)