segunda-feira, 11 de abril de 2011

A FÚRIA DOS TAXISTAS

Arte de George Grosz


Um dia os taxistas iriam se vingar de nossas indiscrições no banco de trás dos carros, das bebedeiras inomináveis, dos namoros escondidos, dos negócios em alto som. Um dia seria o julgamento, a explosão dos gravadores e taxímetros. A resposta para todas aquelas conversas e safadezas que eles foram obrigados a ouvir - e fingir que não estavam prestando atenção - durante um século de ofício.

A represália aconteceu comigo na sexta. Ia de táxi do bairro Pinheiros a Perdizes em São Paulo. Observando minha quietude tímida, todo o silêncio é envergonhado de manhã!, o taxista arreganhou os lábios e começou a discar o celular. Pensei que daria um recado rápido para familiares, já que ele estava dirigindo, ou manteria um discreto papo com o uso do headphone, já que eu estava ali. Que nada: ele colocou a ligação em viva voz, no rádio do carro – a nitidez me permitia transcrever as escalas do pigarro, do suspiro, do soluço do outro lado da linha.

Minha cordialidade levou um choque. Para não ser multado com o aparelho na mão, o taxista inventou uma maratona de telefonemas abertos. Agora seria vítima de um falatório ininterrupto, e não dava nem para pedir que baixasse o volume. Foi falando com ansiedade macabra. O mais grave é que a interlocutora não tinha noção de que eu participava da cena.

- Tentei ligar para você três vezes hoje, não atendeu nenhuma... Tá de brincadeira, hein?

Pelo tom áspero da reprimenda, concluí que fosse sua esposa. Liguei meu GPS, para seguir os dois na conversa. Vigiaria as sobrancelhas pulando corda pelo espelhinho. Mas o diálogo logo mudou de rota e largou sua redoma de bolo:

- Quase uma semana que a gente não se vê e não posso telefonar para você no final de semana, sabe que a patroa fica na cola.

A restrição revelava que se tratava de um casal de amantes. O taxista esfregava suas infidelidades na cara do passageiro, desprovido de qualquer vergonha.

Com uma voz de fumante, frágil, ela permanecia na defensiva.

- É que fiquei mal desde a última vez que nos vimos.
- O que houve?
- Comi algo que me embrulhou, e vomitei.

Aquilo que me seduziu no início como novidade foi me preocupando. Temia que revelasse uma gravidez, e ele se enfurecesse atropelando os pedestres na faixa.

- Tá tomando pílula, né?

Não precisava escutar que trepavam sem camisinha.

- Sim, meu amoreco...
- Ah, bom, passei da idade de me preocupar.
- Deve ter sido o almoço de domingo. Comi frango, salada de maionese, pepino...
- Desconfio de bactéria. Sempre tem alguma bactéria nas massas.
- Não sei, estou melhorando.

Meu estômago revoltava-se com a audição.

- Bom que não ficou enjoada de mim.
- Engoli sua porra no domingo, mas ela só me faz bem...

Naquele momento, o motorista gelou, freou o carro, percebeu que o relacionamento com o cliente não poderia ser mais recuperado. Desci ali mesmo, acho que nem paguei.

Queria ter cuspido pelos ouvidos.

23 comentários:

José Carlos da Silva Gonçalves disse...

Meu Deus! Como dizia mina avó: "Melhor ouvir certas coisas do que ser surdo!"
Se foi uma vingança, teve requintes de crueldade.

Priscyla Targino disse...

Nossa ! E ele só ficou preocupado no final da conversa ? hahaha
Cada coisa...

Altavolt disse...

Eu ia comentar exatamente o que o José Carlos disse acima! Essa situação foi a prova viva desse ditado. Literalmente! Abraço!

Caca disse...

Ele esperou chegar a esse ponto para "cair a ficha"? Meio sórdido esse cara! Abraços. paz e bem.

Anônimo disse...

Ninguém notou que é ficção? rsrs

Escritos disse...

Os escritos do Fabrício sempre deixam a gente um pouco confusa. Ele pula da realidade pra ficção, e vice-versa, com tamanha sutileza que ficamos sem saber ao certo o que aconteceu de verdade e o que aconteceu apenas na imaginação. Fabrício é gênio das letras.

Ludmila Lourenço Rodrigues disse...

ficçao ou não,,, Fabricio poderia ter nos poupado de certos detalhes. éka

Unknown disse...

Vingança das boas! Adorei!!! Se for ficção mesmo, bem que podia acontecer. Taxista tem cada uma...

Jack vestida de loba e uivando...ou balindo? disse...

Intimidades alheias...quem as suporta?
Rs...

Renan disse...

Se acontecesse comigo, teria me divertido. Não é todo dia que se tem tanto entretenimento em uma viagem de táxi.

Ramiro Conceição disse...

Esse texto é muito bom...
Ficção ou não-ficção, o que importa?
Agora já é realidade...

Um abraço, Fabro.

Anderson Farias Borba disse...

Caro Fabrício, chegou a imaginar o que eles poderiam ter feito no banco do taxi que você sentou?
uhauha

Que sacanagem!
abraço mestre!

Anônimo disse...

Queria ter cuspido pelos ouvidos? Hora, um poeta dizer isso parece incômodo. Ser poeta, ser artista, é ter coragem e habilidade de dividir uma intimidade quase cruel com o mundo, talvez o taxista não seja habilidoso, mas pq esse tipo de intimidade choca? Ouvir sobre o trânsito e do pão e circo quotidiano, isso sim faria meus ouvidos e minha alma cuspirem, ou melhor, vomitarem. Lembra da frase?: Ninguém resiste a um homem pérfido, pois ele vive a poesia que não sabe escrever, enquanto o poeta escreve a poesia que não ousa viver.

ana disse...

Esse taxista podia participar do consultório poético. Cadê o Consultório Poético, não vai haver mais? Eu adoro comentar.
Bjs.

Anônimo disse...

Ou talvez o "cuspido pelos ouvidos" expresse o quanto vc entrou na história, e eu fui enganado pela história.

Anônimo disse...

Sem dúvidas Carpinejar teve seus tímpanos explorados sem permissão! Agora a palavra Táxi e taxista me remete a uma outra relacionada a taxas e tarifas, mas em outra ocasião mas propensa comentarei sobre isso já que o mesmo saiu sem pagar. Fantástico!

Érica. disse...

Adoro os taxistas, uma lição de vida, sempre!!
bjo

Cecília Sousa disse...

Eca... E que historia. Fiquei surpresa com o seu silêncio diante do taxista, mas deve ser um grande choque memso lol. Vamos combinar que você também se vingou direitinho, hein? Bom texto. Engraçadissimo como sempre. Colocou a boca no trombone rsrs

Ana Paula Ferraz disse...

Adorei!

No Divã com a Malu disse...

O incrível é a sua capacidade de transformar tudo que vive...Essa crônica precisa cair na mãos dos taxistas...
Embora as pessoas no momento não façam o menor esforço para se colocar no lugar do outro..bjs

Malu

Bruninhahh disse...

Não e o povo não tem mais educação mesmo!
Adoro seu textos, não perco um !

Rosana Ferreira disse...

Outro dia um taxista me contou a q mulher dele o largou pq era broxa, e q não estava nem aí, assumia na boa, era broxa mesmo rs.
Ainda disse q alguns amigos sugeriram q ele virasse viado, mas q ele "achava" q não daria certo rsrs.
Fiquei lá sentada, com cara de paisagem esperando ansiosamente chegar ao meu destino, nem esperei o troco rsrs.

Rosana Ferreira disse...

Ah, e me esqueci do detalhe, qdo estava saindo do taxi ele ainda me falou "olha, não conta isso pra ninguém"... Oi???