terça-feira, 14 de junho de 2011

DORMINDO COM O INIMIGO

Arte de Philip Guston


Puxar o lençol é motivo de discussão. Puxar o lençol e o edredom é motivo de crise. Puxar o lençol, o edredom e roubar o travesseiro são motivos de divórcio.

Coisa séria a disputa pelas cobertas de noite, um perigoso jiu-jítsu de pais de família, uma luta livre de pijama.

Não há bruxismo mais grave do que das mãos e dos cotovelos defendendo o território e guardando o lugar aquecido.

A reforma agrária talvez somente seja possível depois da partilha igualitária da roupa de cama pelos casais.

Mari se deitava e logo encarava seu marido como um inimigo. Caco tomava pílulas de cafeína para se manter acordado e ser o último a fechar os olhos, desconfiado das armadilhas de sua esposa.

Não mais relaxavam, não se abraçavam, não pediam conchinha, não encostavam os pés. Adormecer era o mesmo que ser enganado. Caco temia que Mari virasse uma múmia, a ponto de confiná-lo na Cidade dos Mortos. Mari receava que Caco se convertesse em lobisomem, tomando seu conforto e espaço.

Eles se odiavam silenciosamente de madrugada. Algo inconsciente, imperceptível no detector de metais da terapia. Não iriam mesmo conseguir controlar a vontade de passar o outro para trás. E ninguém realmente consegue: uma das glórias do amor é despertar regiamente enrolado enquanto nosso par treme de frio no canto. Representa uma cena de insuperável cinismo. Muitos não freiam o sadismo e culpam a vítima: “Por que você não me avisou?”.

Para salvar o casamento e evitar a saída litigiosa de quartos separados, os dois optaram pela alternativa diplomática de individualizar o lençol e o edredom. Cada um compraria o seu enxoval. Terminaria assim a injustiça noturna, o MST, o colchão improdutivo.

Na primeira noite juntos após a medida, saíram do banho direto para a cama com uma volúpia inédita, um contentamento infantil.

Coroando o entendimento, ainda tiveram a sorte de contar com uma madrugada bem fria; os termômetros em Porto Alegre flertavam com o negativo.

O que não imaginavam era a ação impulsiva da empregada, que cruzou os lençóis, indiferente à sutil divisão dos bens.

– Mari, quer que levante para separar as cobertas?

– Não, Caco, deixa assim, senão vai fazer vento.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 14/06/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16729

9 comentários:

Cacau disse...

É nessa briga constante por quem irá dominar os lençóis que os casais muitas vezes se encontram acordados quando deveriam estar dormindo, ao invés de raiva pelo outro 'roubar' seu território, deveriam e olhar no olhos e perceber que eles dividem mais do que uma vida juntos, mais do que alegrias e tristezas, dividem o mais importante: o conforto de uma noite e madrugadas frias.

Marina ✨ disse...

É nessa divisão, mesmo que infantil, que as coisas se acabam aos poucos.

juliana disse...

Por isso que aqui em casa cada qual tem seu lençol e edredom,rs.Bjos Fabro!

Ramiro Conceição disse...

"saíram do banho direto para a cama com uma volúpia inédita, um contentamento infantil."

Porém o amor nasce, cresce e morre, pois é feito de alma e lama...


FLOR DE CASTELA
by Ramiro Conceição


Quando foi a última vez
que subi aquela escada
que dava ao terraço da casa
onde às vezes namorávamos
literalmente, a sós, a Vida?
Lembro-me das chuvas, dos sóis,
das flores do teu jardim suspenso.
Lembro-me do vento e do relento…

Éramos bonitos,
porque sinceros!,
quando olhávamos
de lá, de cima,
a cidade a crescer
em torno de nós.

Era bonito quando se colocava
o nosso medo a secar no varal,
quando se mandava os sonhos
brincarem sozinhos debaixo do sol,
quando se fazia o pão, e se deixava
a massa a descansar… sobre a mesa,
quando nas redondezas se procurava
madeira à lareira, quando com vinho
se sorria inocentemente… à beleza.

Eras bonita porque se quisesses
poderias de memória citar de repente,
em castelhano fluente, uma página
de Cervantes.
Eras e és flor de Castela
a tilintar castanholas.
Eras e és espanhola.

Quando foi a última vez
que desci aquela escada,
atravessei a sala,
abri a porta e saí
pra nunca mais?

Ramiro Conceição disse...

ALMA E LAMA
by Ramiro Conceição


Tenho profundo nojo,
uma vontade de matar

quando diante de “gigolôs
das angústias humanas”.

Ah, como é necessário encarar a morte
para se poder viver, sadiamente, a vida.

Ainda bem que o existir é breve,
e o tempo esquece. Ainda bem

que sou poeta a cuidar da chama:
eis meu verso feito de alma e lama.

menina limão disse...

Olá tudo bem?
Adorei seu blog, parabéns!
Adorei o seu post.
Estou te seguindo e gostaria de te convidar a conhecer meu blog e segui-lo, é da minha personagem cômica,
são vários vídeos engraçados.
Fica com Deus e boa semana.
Divirta-se!!! bjs

www.meninalimaoem.blogspot.com
@limaomenina

Ana disse...

Me lembrei, enternecida, do meu ex, que passava a noite me cobrindo...

Anônimo disse...

Tenho alguém que mesmo inconsciente se preocupa comigo e cede sempre a metade do cobertor que puxou sem querer. Tenho certeza que me pede desculpa no meio do sonho. Como sou feliz.

Mima disse...

Muito bom! Será que foi por causa do frio ou porque, no fundo, os dois queriam mesmo ficar juntinhos na noite fria? Haha. Nunca saberemos. Em assuntos como este, quem não está envolvido é mero expectador (ou leitor ^^). E eu fico aqui torcendo pra que essa estória tenha tido um final feliz =)

Estou divulgando teu blog! E seguindo. Fique à vontade caso queira ver o meu!

Abraços e parabéns pelo blog!