terça-feira, 17 de julho de 2012

QUANDO O GARÇOM NÃO NOS ENXERGA

Arte de Giorgio De Chirico

O garçom não nos percebia. Não virava o rosto em nossa direção. Levantava o braço e abaixava, fingia coçar a cabeça, levantava de novo e abaixava, procurava piolhos imaginários.

Diante das recorrentes macaquices de minha parte, os filhos armaram debochada hola.

A coreografia não surtiu efeito, apenas aumentou a vergonha.

Ele circulava perto e, de repente, girava o tronco para o lado inverso. Um Garrincha de gravata-borboleta dando janelinhas e lençóis nas pernas das mesas.

No momento de nos ver, voltava para cozinha.

– Diacho – eu lamentava. – Impossível marcá-lo de cima.

O sujeito conduzia a bandeja com a cabeça erguida ao teto, ao infinito, ao horizonte. Um dom para a lua capaz de irritar até poeta. Acho que estava mesmo indiferente, não distraído. É complicado diferenciar a distração da indiferença.

Ele não servia. Pela demora, fazia tele-entrega.

Meu ímpeto era pegar o celular e telefonar ao restaurante:

– Pode atender a mesa 15, por gentileza.

O serviço daquele muquifo se enquadrava no mais relapso da vida. Minha paranoia já queria reter os dez por cento.

A impressão é que todos que chegavam depois da gente tinham sido servidos e devoravam as bandejas com prazer e mexiam os garfos com estardalhaço no fundo do prato.

E só nós, ilhados, fantasmas, família do Sexto Sentido.

Nem tínhamos recebido ainda o cardápio. Depois da fila para sentar, agora havia a fila do menu. E depois a fila do refrigerante e suco. E depois a fila da comida.

Quando o homenzinho nos enxergou, ele veio com calma de santo. Fixou seu olhar em meus olhos como se eu estivesse recém me sentando e fosse novo ali.

Avancei o queixo para reclamar e acabar com a palhaçada, mas ele se antecipou com um vozeirão afinadíssimo:

– Não aguento mais esse lugar, estou louco para sair. Entreguei demissão ontem, e o proprietário recusou.

Sua resposta me desarmou. Ele mantinha uma Elza Soares dentro dele.

–Vocês não têm ideia do que enfrento – completou.

Permanecemos boquiabertos, sem reação. Num golpe de telepatia, ele tomou a minha fala, roubou minha cena do roteiro. Sua lamúria anulou a crítica. Eu fiquei totalmente paralisado, gaguejei suspiros.

Com medo de que ele chorasse, perguntei como poderia ajudá-lo.

O que ele aprontou foi melhor do que pedir desculpa, ele inverteu os papéis, mudou de lado, pulou a portinhola do balcão.

Juntou-se a nós, colocou a farda de nosso time e reclamou de seu serviço a ponto de neutralizar o ataque. Um pouquinho mais estaria comendo conosco. Um pouquinho mais seria adotado pela família.

Como a gente não localizou ninguém mais para reclamar, decidimos esperar o tempo que fosse. Uma vez no inferno, não há sentido em ter pressa.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 17/07/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 17133

Um comentário:

Soraia disse...

Aposto que a família Carpinejar passou por essa saga em Belo Horizonte. Aqui os garçons não enxergam os clientes...enxergam através deles, mas não eles...rsrs