domingo, 4 de agosto de 2013

EU SOU O MELHOR NO QUE FAÇO, MAS O QUE FAÇO NÃO É NADA BONITO

Arte de Fatturi

Meu pai me chama de Wolverine. É o nosso apelido secreto.

Não tenho o queixo quadrado e a baixa estatura do desenho da Marvel Comics. Muito menos a suíça e o cabelo alvoroçado do ator Hugh Jackman, que interpreta o herói no cinema. A referência física não contribui para nossas semelhanças.

Ele me compara ao personagem pelo meu alto poder de cicatrização. Eu me desespero e logo ressuscito, eu caio e logo levanto.

Não morro de uma única vez. Não desisto. Não me entrego mesmo que não veja a saída. Quando não há porta, eu espero no escuro até ser a porta.

A ansiedade que me enerva acaba por aumentar minha vontade de ver de novo a luz.

Tenho fúria de viver.

Não há perda que seja total. Alguém pode me machucar terrivelmente, mas não me leva. Posso permanecer sequelado, mas sei cavar a terra por dentro da terra. Penso nos filhos, penso nos amigos, penso na literatura e sigo adiante. Cambalear ainda é caminhar. A chuva lava minha ferida e o vento seca.

A carne da memória se recompõe de algum jeito. Talvez seja um excesso de sofrimento na infância que me preparou para o pior no futuro.

Eu sobrevivi a tanta coisa.

Sobrevivi ao bullying na escola, ao pessoal me chamando de ET e monstro todo dia durante o ensino fundamental.

Sobrevivi à resistência dos médicos que juravam que tinha algum retardo mental.

Sobrevivi à desistência dos professores com meu desempenho.

Sobrevivi à traição de amigos.

Sobrevivi às drogas para ser aceito na roda dos adultos.

Sobrevivi à briga de rua.

Sobrevivi a uma tentativa de suicídio na adolescência.

Sobrevivi a enterros de jovens amigos.

Sobrevivi a três acidentes de carro.

Sobrevivi a três separações.

Sobrevivi ao vício do cigarro.

Sobrevivi a dois assaltos a mão armada.

Sobrevivi a várias demissões.

Sobrevivi ao distanciamento de meus dois irmãos amados.

Sobrevivi, vou sobreviver, mesmo que não acredite na hora.

Só não entendia onde meu pai enxergava as garras retráteis de Logan.

– E as garras das mãos, pai?

– São as palavras, meu filho. Você se defende com a linguagem ou se agarra nela para não morrer.

 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 04/08/2013 Edição N° 17512

17 comentários:

Amanda Vasconcellos disse...

Acho que foi o seu texto mais lindo até hoje.
Força!
Como diz o poeta: "Tudo dá certo no final e se ainda não deu certo é pq não chegou o final."

Thaïs disse...

AMEI

Anônimo disse...

O bom de já ter sofrido tanto na vida é que, depois de um tempo, você sabe que sempre sobrevive. Que a dor pode ser lancinante, mas você sobreviverá, não sem cicatrizes, mas essas serão o testemunho de sua força e de seu amor à vida.
Ass.: Volverine feminina

Maria Helena, de Londrina-PR disse...

Você é um bravo, um corajoso, Fabrício!
Amar e se entregar, amar e pedir para voltar, sem medo, sem orgulho, é para poucos, e você é um deles!
Concordo com você que sua sobrevivência a tanta coisa o faz com que consiga ainda lidar com mais uma dor. E saiba: ela vai passar e você vai encontrar outro amor que valorize o seu, tanto quanto o seu amor merece!
Sou solidária a você!


ana disse...

Fabrício, você só precisa conviver com pessoas que sejam mais inteligentes e que tenham mais maturidade. Só os
ignóbeis fazem sofrer. Conheço casos de amor que mesmo não correspondido foi acompanhado pelo outro até que ambos estivessemprontos para a separação.

Mas como eu sempre afirmo, os dois eram poetas. E só os poetas sabem o que é empatia e responsabilidade no amor.
abraços

Mileny Squilasse Pestana disse...

Nossa AMEI!!! Estava precisando ler isso... MARAVILHOSO!!!

PARABÉNS,

Beijos,


Mileny- Osasco- São Paulo

Y.N. Daniel disse...

Fabrício-San, bom dia.
Logan, vulgo wolverine, é um personagem que luta diariamente para controlar sua própria selvageria.
Ele se esforça para ser um homem apesar de todas as suas características externas e genéticas lhe dizerem que seria mais fácil agir como um animal.
Muitas vezes ele se apresenta com um aspecto animalesco, mas por dentro ele é um samurai capaz de atos de extrema polidez e sofisticação.
Mesmo quando seu poder de cura está avariado, wolverine continua sendo wolverine. Letal, mas justo.

Anônimo disse...

Esse texto... Eu o li na fila de um supermercado e me senti 'fraca' porque, tudo pelo o que você passou, eu passei... Mas sem essa 'vontade de viver', que você diz ter. Aprendi bastante, até.

Nicotti disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Nicotti disse...

Obrigado por não ter me decepcionado!!!

Borboleta disse...

Me reconheci tanto nesse texto. Também não me entrego. Vou do céu ao inferno e logo volto para o céu. Tenho fome de viver e nada mata essa fome. Choro, me desespero, enxugo minhas lágrimas e volto a sorrir. Tenho aprendido muito sobre mim lendo os seus textos. Obrigada. Bjs.

limalimao disse...

Brilhante, forte, cru. Valeu!

Anônimo disse...

gostei do texto e me identifiquei muito, entendi o porque de gostar tanto do personagem. Vou antecipada à sua permissão postar o texto no meu blog-http://boxtextual.blogspot.com.br/-(colocando a sua autoria e divulgando o endereço do seu blog para meus alunos)Bjo

Adriana disse...

Tu és um lindo! Nunca um texto tocou tanto e me fez reviver tantas memórias :) alguns trechos são simplesmente uma descrição de minha pessoa! Obrigada pela sensibilidade e por sobreviver. O mundo precisa de pessoas assim. Abraço!

Anônimo disse...

xxxxxxxxx

Anônimo disse...

Olá Fabrício!

Não precisei ler mais que um parágrafo de seus escritos para me tornar fã.

Também sou escritora e estou lançando meu primeiro livro agora em setembro.

Essa sua crônica me inspirou tanto que saiu uma minha, com a minha lista de 'sobrevivi' ... Além de me emocionar, emprestei a ideia!

Talento é para poucos.

Parabéns!

Sálvia

P.S.: meu site onde postei minha crônica inspirada na sua é:
www.salviahaddad.com.br

Eu Abelha disse...

Amei o Texto! agora tenho uma justificativa para quem perguntar por que sempre amei o Wolverine. Obrigada Fabrício!