segunda-feira, 7 de julho de 2014

A TEIMOSIA DO GANDULA

Arte de Eduardo Nasi

Minha mãe saía para trabalhar e eu ficava sozinho em casa até o anoitecer.

Antes de se despedir, ganhava as instruções de arrumar o quarto, aquecer a comida, tomar banho e realizar os temas da escola. Mas havia sempre aquela advertência mais severa, dada no abraço e beijo de tchau:

— Não abra a porta para ninguém! Ninguém, viu? Ninguém!

Numa dessas tardes desamparadas, a campainha tocou. Era minha tia Cléia. Já havia identificado pelo som meloso de seu timbre:

—Adorável sobrinho…

Toda tia carrega no perfume e na adjetivação. Toda tia é exagerada, o que soa involuntariamente cínico.

Espiei pela janelinha e não abri a porta.

Ela insistiu:

— Vejo você mexendo na cortina, meu adorável sobrinho, sua mãe me mandou aqui.

— Não posso, respondi. Não posso abrir para ninguém.

Ela gritou, esperneou, produziu escândalo, chamou os vizinhos, só que não cedi. A mãe depois veio reclamar que sua exigência não valia para quem era da família.

— Ninguém é ninguém!, bati o pé.

Lembrei de minha teimosia quando vi um gandula brigando com o jogador da Alemanha, nas oitavas de final da Copa do Mundo, em partida contra a Argélia, em Porto Alegre.

O atacante Kramer pediu a bola para aquecer no intervalo da prorrogação.  Gesto natural, já que seria a próxima substituição do técnico Joachim Löw. Menos para o gandula. Na puberdade de seu bigodinho, enfrentou o número 23 da seleção germânica. Nem aí para a hierarquia do momento, ou para a importância do jogo tenso e dramático, sob o risco de ser decidido nos pênaltis.

— Não, impossível, só posso dar a bola dentro da partida — explicou o gandula.

Ele não falava alemão, o alemão não falava português. A linguagem que vingou foi a da coerção. Kramer teve que arrancar com violência a bola das mãos do adolescente.

O guri ainda tentou lutar em vão, reaver o objeto de sua estima. Em represália, ensaiou correr ao campo, porém recuou pelos assobios da torcida.

Eu me identifiquei com seu gesto. Mesmo se Joseph Blatter solicitasse a bola, ele negaria. Aquele homenzinho de capuz e tênis colorido recusaria com convicção qualquer infração à ordem recebida. Não abriria exceção para presidente da FIFA, tia, carteiraço, privilégios. Não estava em campo para interpretar a lei, e sim para executar tarefas até o fim. Custe o que custar.

Para a maioria dos torcedores, sua ação terminou sendo alvo de deboche, acolhida como falta de senso e burrice. Gerou longas vaias e risos. Não segui a hola de bullying. De pé, rompi a gozação, aplaudi isoladamente, bati palmas com força.

A obediência é tão rara, tão incomum, tão inesperada hoje em dia.  Eu me alegrei ao testemunhar a ingenuidade comprometida com a palavra, a missão sendo cumprida à risca. Como é bonita a responsabilidade amadurecendo em um menino.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
2/7/2014

Um comentário:

Anônimo disse...

Já fui desses. Até pensei que era a inocência transbordando. Exagero. Falta de jogo de cintura daquele menino do mato. Que bom que vi seu texto. Me senti bem!