terça-feira, 17 de abril de 2012

O RISO É PERIGOSO

Arte de Mark Rothko

Clarice Lispector beliscava sua amiga Lygia Fagundes Telles quando entravam juntas num encontro literário:

– Não ri, vai! Séria, cara de viúva.

– Por quê? – perguntava Lygia.

– Para que valorizem o nosso trabalho.

Não há mesmo imagem de alguma risada da escritora Clarice Lispector. Em livros e revistas, a cena que persiste é seu olhar desafiador, emoldurado por um rosto anguloso, compenetrado e enigmático. Os lábios não se mexem, absolutamente contraídos, envelopes fechados para a posteridade.

Lispector não mostrava suas obturações, sua arcada para ninguém. Não se permitia gargalhadas para não parecer mulher superficial e leviana.

Ela percebeu que existe um imenso preconceito contra a alegria. Os críticos não a levariam a sério, dizendo que ela não era densa, não inspirava profundidade; acabariam por sobrepor a aparência faceira aos questionamentos metafísicos de sua obra.

Seu medo não era bobo. O riso permanece perigoso. Todos temem os contentes. Falam mal dos contentes.

O riso gera inveja, ciúme, intriga: “Por que está feliz, e eu não?”.

A alegria é malvista em casa e no trabalho, sempre intrusa, sempre suspeita equivocada de uma ironia ou de um sentimento de superioridade.

Ainda acreditamos que profissionalismo é feição fechada, casmurra. Ainda deduzimos que competência é baixar a cabeça e não entregar nossas emoções.

Quanto mais triste, mais confiável. Quanto mais calado, mais concentrado. O que é um tremendo engano.

A criatividade chama a brincadeira, assim como a risada renova a disposição.

Se um funcionário ri no ambiente profissional, o chefe deduz que ele está vadiando, sem nada para fazer. Poderá receber reprimenda pública e o dobro de tarefas. Quem diz que ele não está somente satisfeito com os resultados?

Se sua companhia ri durante a transa, você conclui que está debochando do seu desempenho. Quem diz que não é o contrário, que ela não festeja o próprio prazer?

Se a criança ri no meio da aula, o professor compreende como provocação e pede para que cale a boca. Quem diz que ela não está comemorando algum aprendizado tardio?

Se o filho ri quando os pais descrevem dificuldades profissionais, a atitude é reduzida a um grave desrespeito. Quem diz que ele não achou graça do tom repetitivo das histórias?

Se a esposa ou marido ri e suspira à toa, já tememos infidelidade.

O riso é escravo dos costumes, sinônimo de futilidade e distração quando deveria ser visto como sinal de maturidade e envolvimento afetivo.

Não reagimos bem à felicidade do outro simplesmente porque ela ameaça nossa tristeza.



Publicado no jornal Zero Hora

Coluna semanal, p. 17/04/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 1742

22 comentários:

Lilian Pool disse...

Adorei o texto, é bem verdade cada linha, o riso é prejudicial ao outro. Coitados, não sabem o que estão perdendo...
Bjsss e até uma outra risada!

Adriana Gonçalves de Oliveira disse...

AFE MARIA DO CÉU! QUE MARAVILHA DE TEXTO!

A Ex de Murphy disse...

Muito bom! O riso é sempre uma ameaça pra gente sisuda, mas acredito que seja mesmo é dor de cotovelo por quem sabe rir da vida e deixá-la mais leve...

Rafael R. disse...

Sei não. Acredito que estamos mais vivendo numa ditadura da felicidade que qualquer outra coisa. Pelo que vejo e vivo, quem não sorri é suspeito. Você não é bem-vindo num grupo de pessoas se não tem um sorriso a oferecer (ainda que possa dar, em troca, muitas outras coisas). De qualquer maneira, outro ótimo texto seu, agudo, desafiador, como de costume. E eu gosto do que me desafia.

Gabriela Ahcor disse...

A felicidade está extinta.

Anônimo disse...

Fabrício,
Me identifiquei com o teu texto. As pessoas "perderam" o riso fácil dentro do seu coração e passaram a acreditar que ser adulto é ser sério. Abraços. Rosmaria

! Marcelo Cândido ! disse...

Rir é algo que pode salvar vidas, e momentos sobrecarregados de nossos dias
! ! !

Eva disse...

Ai que lindo! Estava com saudades daqui, bjos!

Eliane Ratier disse...

Rindo para você e com você, bela lembrança da adorada Clarice. Recebeu as fotos? Beijo

jaciraamaral disse...

Lindo!No entanto, é mesmo verdade que a pessoa bem disposta e alegre compromete a pseudo tristeza de muitos embezerrados!!! jacira

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Um problema gerado. Sou amante do riso largo solto as tipicas gargalhadas em silencio sorrio até com os olhos. Um problema para os infelizes.

ramonc disse...

Para Clarice, o que ,talvez, justificasse sua postura, além froid,é o teórico dominique maingueneau, quando diz sobre ritos genéticos em discursos literários. são, as obras, um espelho do que os autores constroem de si. e, o riso, é do caralho.

Thiago Damião disse...

Parabéns pelo texto, muuitoo sensível. Eu vi uma palestra sua em Ctba, e adorei. Quando você veio pra Maringá, que também veio o Affonso Romanno e a Alice Ruiz, eu não consegui ver |Fiquei sabendo que vocês vieram meses depois do acontecido. Uma lástima. Um abraço e sucesso.

Michelle Jesus disse...

Excelente texto! Realmente nunca vi um sorriso da Clarice, escritora por quem sou apaixonada.

Grata pela partilha!

Vital disse...

muito bom, principalmente a última frase!

@Café disse...

Agora eu quase chorei...pela primeira vez me dou conta o do pq de tantas perdas em minha vida...

Anônimo disse...

Concordo com o Rafael, que comentou acima. Vivemos sim uma ditadura da felicidade. Ao menos aquela feita sobre medida pro outro ver e aprovar. Todo mundo hoje vive feliz, sorridente, como personagem de um comercial de margarina. Basta um passeio pelo facebbok para confirmar. O triste, esse sim,'e visto sempre como aquele a ser banido do cenario cor de rosa. Na verdade o que predomina e a artificialidade do sentimento.

Rosi disse...

Muito bom teu texto, as pessoas alegres perdem grandes oportunidades,sou do tipo alegre, algumas coisas só passam ao meu lado, não chegam, como que se você não prescisasse delas chegam justo nas pessoas mais tristes e menos criativas.

Maria Helena - Londrina disse...

Simplesmente um dos textos mais maravilhosos que li nos últimos dias!
Um enorme beijo pra vc1

Anônimo disse...

Você não me conhece, mas escreveu sobre mim. Essa sou eu, livre pra ser feliz.

Gabi Lampert disse...

Você não me conhece, mas escreveu sobre mim. Essa sou eu, livre pra ser feliz.