terça-feira, 10 de julho de 2012

O AMOR É MAIOR DO QUE O ESQUECIMENTO

Arte de Jackson Pollock

A mulher esperaria na cafeteria. Era manhãzinha, 7h30, véspera de escola e de expediente.

O escritor José Cardoso Pires, no meio do caminho, falou para esposa que já voltava. Subiria ao apartamento para buscar o caderno de anotações na gaveta da cômoda. Seu moleskine vermelho, talismã de inspirações e personagens súbitos, essencial como os óculos de leitura.

Quando ele foi descer, já no elevador, sofreu um derrame. Um leve desmaio, rápido, tal piscar de olhos. Sentou um pouco no chão, para acalmar os nervos.

Recomposto do choque, ao empurrar a porta da rua, ele viu que algo de estranho e sério aconteceu: não lembrava quem era e o que precisava fazer. Foi acometido de uma amnésia total.

Estava esvaziado de referências, jogado a uma infância adulta.

Em pânico, seguiu reto pela multidão, encarando o tamanho dos prédios. Usou os cotovelos para se defender da pressa do turbilhão humano.

Não tinha mais nenhuma recordação viva.  Um pequeno derrame apagou a memória, o mapa de seus desejos.

Procurando se enganar e disfarçar o horror, andava resoluto, decidido, para frente. Percorreu três quarteirões, porém sentiu cansaço, vontade de pensar melhor e organizar as ideias.

Entrou no café, onde sua esposa lhe aguardava no balcão para beber um ristretto, hábito do casal antes de mergulhar no ritmo alucinado do trabalho.

Mas ele não lembrava que tinha esposa, família, destino profissional. 

O que impressiona é que a primeira pessoa que ele procurou depois do esquecimento foi a própria mulher. Recusou outras cinquenta que estavam presentes no lugar.

Foi falar com a sua mulher. Sorteou seu rosto entre todos. Elegeu seus cabelos castanhos e longos diante de dezenas de candidatos do momento.

Não hesitou em atravessar o salão lotado para cumprimentá-la, repetindo o encontro fundador do casamento de quarenta anos. Assim como no baile da faculdade superou a timidez medrosa e pediu uma dança.

Repetiu aquilo que não sabia. 

Ainda que não conservasse nenhuma réstia de passado, aproximou-se dela e perguntou:

- Onde estou? Pode me ajudar?

Ela riu, achando que seu marido armava uma brincadeira, perdoou a piada estalando um beijo em sua boca. Ele se assustou com o gesto. 

- Que isso?
- O que foi, amor?
- Amor?

Sim, amor, ele entenderia depois quando recuperasse a saúde.

Amava obsessivamente sua Marina a ponto de se apaixonar de novo e sempre.

Talvez fosse se apaixonar cada vez que a enxergasse. Com alma ou sem alma, com memória ou sem memória.

Seu corpo era um cavalo obediente à dona.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 10/07/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 17126

9 comentários:

Mayla Nascimento disse...

PERFEITO Carpinejar, perfeito... é assim que deve ser, sempre! se reapaixonar!

Anônimo disse...

Realmente perfeito..poderia ser assim sempre..

LUIZ CARLOS COSTA DE QUADROS disse...

Sensacional. Tu és um gênio, um gênio com as palavras. Me imaginei nesta cena, encontrando minha Rejane que depois de 23 anos juntos ainda me apaixonaria por ela, mesmo com a memória apagada.
Gênio.

Gabrielle disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gabrielle disse...

Verdade?

aprimeiraedicao.blogspot.com

Leonardo Camacho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Leonardo Camacho disse...

Querido Carpineja, seu trabalho me inspira. Obrigado. Por favor, continue eternamente.

Abraços fraternos,

Leonardo

Coracao na Boca disse...

Perfeito

Anônimo disse...

Sem palavras, sinceramente foi adentro na alma. Perfeito.