sábado, 29 de outubro de 2016
JAMAIS
Quem já não cometeu pequenas e patéticas infrações na relação? Como roubar a gilete rosa da esposa, que ela usa para depilar no banho, para corrigir aquele fio solto da barba. Precisa abolir o pelo de qualquer jeito, no desespero do horário, e não há como comprar um aparelho novo. Ou alguém que furtou a escova de dente ou pegou o troco na carteira do outro sem avisar, sob alegação de que depois devolveria. Ou roubou um doce fingindo que desconhecia a importância. Quem? São naturais delitos do amor, absolutamente perdoáveis. Não partem da zona escura da personalidade. Não interferem no curso do romance. São molecagens, travessuras, implicâncias.
O que bate de frente é a agressão silenciosa. Quem esconde o punho na hipocrisia, quem finge generosidade no beijo e cospe sua agressividade em segredo.
Até perdoo a deslealdade, até perdoo a mentira. O que não abençoo com a desculpa é quem maltrata animal. Aquele que não tem câmera dentro de si para se entregar à consciência. Aquele que, por alguns minutos sozinho, tortura bichos em situação de fragilidade. Aquele que, enquanto não é visto, chuta as pernas do cachorro ou arremessa o gato na parede e depois segue normalmente com as suas tarefas no trabalho, como se nada tivesse acontecido.
Tenho certeza que o agressor de bichos também é capaz de apertar os braços de um bebê ou insultar um idoso com amnésia. Não há limites na degradação moral. Algo da devastação fica na memória. O sangue não se esvai pelo ralo com a mesma rapidez da água.
Não suporto quem se aproveita da impossibilidade da denúncia para abusar da violência. Explora a superioridade para elaborar maldades. Não guarda um mínimo de culpa e de compaixão para recuar em seus ataques.
Disfarça-se de cuidador para ter controle dos fatos e aterrorizar progressivamente as suas vítimas. Covardemente, desconta a sua raiva em seres vulneráveis, sem condições de se defender e relatar os atentados.
Mesmo que seja uma agressão repentina: um chute, um soco, um empurrão. A duração do ato não diminui a sua gravidade. Ali ele enterrou a sua fé, ali ele se recolheu ao território da impunidade e renunciou a decência e o caráter de uma vez por todas.
Não darei jamais o meu perdão aos monstros domésticos, afáveis na aparência e boçais na solidão dos gestos.
Eles acreditam que não serão castigados. Juram que os bichos são somente bichos e, se não há céu para eles, tampouco haverá inferno para os seus agressores.
Mal sabem da verdade. Um gato sofrendo não mia, um cachorro sofrendo não late, na dor ambos são crianças e gemem humanamente.
Publicado no Jornal O Globo - Blog
28.10.2016
Coluna Semanal
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Um comentário:
comparto da mesma indignação ... quanta crueldade silenciosa . devem pagar pelo sofrimento causado .
há tanta maldade ....
devemos denunciar e jamais omitir!
abraços querido poeta .
jessica
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