Arte de Vincent van Gogh
Assim como crianças cuidam de cachorro ou gato ou hamster ou tartaruga, eu protegia uma árvore na infância.
Uma árvore toda minha. Uma árvore de estimação. O balanço significava minha coleira. Quando estava triste, andava sentado no balanço. Quando estava alegre, andava de pé no balanço.
Eu conversava com a árvore, ela me lambia de volta. Eu jogava um osso para o alto, ela pegava com a sua boca.
A ameixeira ficava no centro do pátio e me levava para os telhados dos vizinhos.
Era a proa de um navio, a cabine de um avião.
Era minha escada para assistir ao mundo de cima. Tinha um esconderijo no alto dela, um observatório privilegiado da movimentação da casa. No momento em que cometia um crime doméstico, quebrar um vaso ou responder aos pais com palavrão, me refugiava em seus domínios e não me mexia para não ser descoberto e posto de castigo. Eu me fingia de coruja, de pintassilgo, de sabiá.
Era minha torre de guerra, quando arremessava ameixas nos meus irmãos sem que eles percebessem. Já venci grandes batalhas em suas muradas e impedi invasões dos manos com artilharia pesada.
Era minha melhor amiga. Minha conselheira. Tomado de tristeza dos amores platônicos, fechava os olhos e ouvia sua sinfonia de folhas. Somente minha árvore era capaz de me acalmar – banhava meu rosto de vento e esperança, me fazia cócegas com sua penugem de flores.
Minha árvore latia para quem me incomodasse. E cantava para quem me amava.
Ela me ensinou a descascar frutas, a cuspir caroços longe, a me equilibrar com uma perna e não ter medo de altura, a cair com os joelhos flexionados.
Era meu escritório de poemas. Minha água-furtada. Meu assoalho no céu. Levava um bloco e caneta e escrevia cartas para as futuras ex-namoradas.
Dormi em minha árvore predileta várias vezes, sesteava com o barulho intermitente das cigarras.
Eu segurava sua cintura e ela me convidava para dançar, pisei em seus pés no começo e ela não se importou, não reclamou, disse para seguir a música de dentro.
Ela fazia aniversário em outubro, cinco dias antes de meu aniversário, sei que era de Libra, nunca descobri seu ascendente e sua lua.
Fui seu tatuador, talhei um coração com meu nome em sua madeira, com as datas embaralhadas de nossos nascimentos.
Ela assobiava no verão. Ela ria no outono. Ela chorava no inverno. Ela pedia minha ajuda na primavera, estava muito carregada de frutas e quase desmaiava. Eu comia tudo o que podia em uma única tarde para devolver sua leveza.
Não deixei que a mãe pendurasse a corda do varal em seus ombros. Ela era criança para trabalhar na lavanderia secando roupas. A mãe amarrava, eu ia lá e desamarrava.
Durante dias, seguimos esta luta silenciosa, este cabo de força, e acabei vencendo. Ela me agradeceu com um balão azul que apanhou com seus galhos de alguma festa perdida.
Levava minha árvore a passear pelo bairro com meu binóculo. Ela enxergava até a igreja São Sebastião, numa distância de um quilômetro.
Minha árvore adoeceu quando completei 10 anos. Teve o câncer de árvore, chamado de broca pelo adultos e de ferrugem pelas crianças. Sua madeira apodreceu. E perdeu seus braços e ficou apenas um tronco podado, uma estaca, uma cruz no pátio.
Minha árvore morreu de pé, como uma guerreira. Morreu ainda me esperando para o último abraço.
Publicado no jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), Edição N°
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