Arte de Donelli diMaria
Tenho uma multidão de Pinóquios.
Coleciono o boneco de madeira. É meu presente predileto. Os amigos já viajam com a encomenda em vista. Nunca é demais, arrumo espaço no teto, nas paredes, nas prateleiras. Jamais me decepciono. Sempre vibro quando recebo mais um modelo, ainda mais se é títere, com os fios embaralhados, para me sentir esperto em tirar o nó.
Na infância, eu apenas ganhava bolas de futebol. E tampouco me cansava. Cheguei ao cúmulo de contar com dez bolas no quarto – impossível era andar no escuro.
Adepto dos presentes monotemáticos, gosto de algo até me fartar. Eu transformo predileção em obsessão; preferência em mania.
Pelo menos ninguém precisa se preocupar em me adivinhar. Facilito o trabalho no Natal.
Ainda faço cara de surpresa sendo um presente igual ao outro.
O que não considero justo é deduzir que sou mentiroso porque adoro Pinóquio.
Ele não poderia ser sinônimo da trapaça e do engano. Faz travessias inimagináveis para honrar suas promessas e guardar o que é justo.
Pinóquio é o contrário da sua fama: é o esforço que todos passamos para alcançar a verdade. É a insistência da verdade. É a teimosia da verdade. O caminho não é linear. Não nascemos, somos fabricados. Nascer só acontece depois de amar. Temos que nos perder para valorizar o que encontramos.
Pinóquio é tradução de sofrimento infantil. É um exemplo de honestidade – ele erra para aprender, assimila a si mesmo –, o doce e o amargo – tropeçando com a mais pura das intenções.
É a demonstração da lealdade ao seu pai Geppetto e ao seu começo.
Pois crescer não é amadurecer. Tem gente que cresce e jamais amadurece. Pinóquio amadurece dentro do sofrimento.
Pinóquio sou eu.
Quando peço o Pinóquio de presente, estou dizendo que não tive infância, busco restaurar uma tranquilidade que não conheci nos anos de alfabetização.
Quando peço o Pinóquio de presente, estou dizendo que confiava em grilos e amigos imaginários, que sempre acreditei no invisível para dividir minhas aflições.
Quando peço Pinóquio de presente, estou dizendo que sofri gozação dos colegas, que me chamaram de burro e asno, que troçaram da minha aparência, que me maltrataram com frequência, a ponto de me colocar de cabeça para baixo na janela da escola, que mesmo assim resisti e fui buscar meu coração no interior do oceano e da baleia.
Quando peço o Pinóquio de presente, estou dizendo que não me escondi na fantasia, por mais que a realidade não me favorecesse, que aceitei quem sou, de madeira, frágil e imperfeito.
Quando peço o Pinóquio de presente, estou dizendo que não desisti de ter esperança, não me escondi na depressão, não parei de caminhar. Avancei sem entender. Fui adiante aguardando a solução do meu mistério.
Não sei quantos Pinóquios necessito receber para acalmar o choro da criança que fui. Mas um dia, se Deus quiser, eu me torno um menino da verdade.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 30/11/2014 Edição N°17999
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