sexta-feira, 15 de maio de 2015

ME TIRE DAQUI

 Arte de Francis Picabia

Nunca mais tinha dormido em Santa Maria depois da matança da boate Kiss, incêndio que sacrificou 242 pessoas há dois anos, a maior parte jovens e adolescentes, que terminaram presas numa cilada maquiavélica, impossível de fugir.

Nem sei se deveria escrever algo tão pessoal, que expõe minhas crenças espíritas. Passei a noite num hotel, satisfeito com a recepção do público e a palestra lotada na Feira do Livro na última quinta.

Só que não dormi. A princípio, jurei que estava preocupado com quem eu amo e já ultrapassava a meia-noite para telefonar. Mandei mensagens aos familiares e não obtive retorno. Não pretendia ser histérico – pressentimentos jamais são levados a sério – e aguentei a ansiedade.

Mas, quanto mais a noite avançava, não aquietava o meu espírito, não achava uma posição para relaxar, liguei e desliguei a televisão, liguei e desliguei a caixinha de música, iniciei e interrompi leitura de livros. Desceu em mim uma angústia implacável. Não é que dei para chorar copiosamente do nada, irrefreável, logo eu que não choro com facilidade? Chorei infinito. Cochilava e chorava. Suspirava e chorava. Como se estivesse com Bluetooth emocional emparelhado em uma data remota.

No quarto absolutamente confortável, me enxergava emparedado, preso, encaixotado. Tossia convulsivamente. Cuspia o ar que não vinha. A sensação de sufoco e queimação se agravava, com um calor anormal no corpo para uma madrugada fria de inverno lá fora. Abri a janela e não refrescava. Tirei as roupas e não encontrava alívio.

Não ardia em febre. Não sofria de asma. Não apresentava nenhum quadro gripal. Estava bem de saúde. Porém me arrastava na cama, um cansaço indigente, próximo do desmaio. A pele reagia a um sobrepeso invisível, suava absurdos e cheirava forte.

Ao fechar os olhos e tentar sonhar, várias vozes conversavam comigo, chat multiplicando borbotões de janelas na tela do inconsciente. Não entendia nenhuma delas, pela sobreposição dos timbres. Centenas de recados, gritos e uivos ilegíveis – procurava ajudar e responder. Eu me esforçava para ouvir e sofria do pânico de não alcançar a velocidade das falas: frenéticas, constantes, passionais. Sem resultado, ajustava a atenção para aquele vendaval de apelos, o equivalente a sintonizar uma estação de rádio fora de frequência. Peguei papel e caneta com o propósito de anotar frases soltas e desconexas, pena que, tamanho o desespero, não lembrava sequer de meu nome.

O que qualquer um pode concluir é que experimentei um sofrimento paranormal. Não se engane: sobrenatural é a impunidade até hoje da boate Kiss. Se não desfrutei de um minuto de serenidade na vigência de uma lua, de uma simples lua em Santa Maria, apesar de não ter perdido nenhum parente ou amigo próximo na tragédia, como os pais das vítimas vão conseguir dormir?






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 12/05/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18160

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