Texto Fabrício Carpinejar
Arte Eduardo Nasi
Só algo desesperava a família: receber um telefonema a cobrar durante a madrugada.
Já pensávamos no pior, que um parente tinha sido assaltado ou sequestrado.
Eu começo a suar frio se alguém me liga a cobrar até hoje: quem será? O que aconteceu?
Rezo antes de falar, apresso a ave-maria da infância. É véspera de tragédia em meu sangue, dá uma aflição ouvir aquela voz feminina estabelecendo as instruções: “chamada a cobrar, para aceitá-la continue na linha após a identificação”.
Meus familiares e amigos têm crédito. Uma ligação a cobrar, então, é o inesperado triste do meu cotidiano, um imprevisto fúnebre, uma mudança de rumo, um corte do destino.
Eu conto com seis segundos para decidir se aceito ou recuso. Quando não reconheço o timbre, bato o telefone na cara. Não há misericórdia com trotes. Não ofereço chance de retratação.
Ligação a cobrar é coisa séria, não permite ambiguidades. O coração fica engasgado na garganta: engolir a voz ou cuspi-la.
Sempre que recebi ligação a cobrar foi aviso de morte, de acidente, de falta de dinheiro.
Com uma única exceção. Na minha adolescência, nos anos 80, quando o serviço automático foi implantado (antes telefonista mediava ligações), lembro que a minha primeira namorada, assim que nos separamos, telefonou durante vários dias consecutivos a cobrar para o fixo de casa. Ela não encontrava coragem para responder do outro lado, escutava somente a sua respiração sôfrega, ansiosa, reticente, desiludida com o nosso fim. Mas não mantenho certeza absoluta de sua identidade. Será que desejava a reconciliação? Por que não falava?
Se me enganei ao longo de quatro décadas, isso apenas aumenta o meu medo do desconhecido. Se não era ela, quem poderia ser?
Este telefonema incompreendido, misterioso, enigmático, povoado de sussurros, custou caro para a minha sanidade amorosa. Jamais defini o quebra-cabeça.
Pena que nunca tive uma ligação a cobrar feliz para matar os fantasmas.
Publicado no site Vida Breve
Coluna Semanal
21.09.2016
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