Arte de Rodolfo Morales
Tenho um irmão amado que mora em Faxinal do Soturno: Miguel, juiz, pai do Murilo e casado com Milena.
É o caçula de casa, o único que se dá bem com toda a família e o mais quieto e sábio, talvez porque foi o último a chegar nas brigas e descobriu que eram insolúveis e não valeria a pena perder tempo com elas.
Ele cuida de dois cachorros. O mais novo, um salsicha, o Mandi, foi atropelado na frente do Miguel. Escapou de um passeio vigiado na residência e se animou a atravessar a rua de repente.
Diante do estrondo das rodas, do rasgo do freio e do latido esganiçado, Miguel correu para socorrê-lo.
Mesmo abatido, mesmo morrendo, o cachorro mexeu o rabo ao ver seu dono.
Destroçado, encolhido na frieza das pedras, fez um esforço colossal de mexer o rabo para festejar as mãos de Miguel em sua cabeça.
Apesar de ferido e sangrando, alheio a sua condição agonizante, mexeu o rabo, esta mão prodigiosa que o cachorro tem além das patas, esta antena do coração, esta risada do corpo.
Mesmo soltando seu último suspiro, mesmo desesperadamente doendo, o cachorro mexeu o rabo ao ver o Miguel próximo.
Mesmo no pior momento de sua vida, ele encontrou um instante de felicidade e ternura, e acenou com o rabo, quis demonstrar para Miguel que o amava.
Mexeu o rabo de agradecimento. Mexeu o rabo de comoção. Mexeu o rabo, como sempre mexeu o rabo, quando Miguel chegava do trabalho e perguntava pelo seu nome pelos corredores. Nada mudaria seu hábito de mexer o rabo. Nada arrancaria dele o gesto puro e repetido dia a dia.
Nem o fim impediu sua declaração. Nem a falta de ar, o medo, a angústia de não estar mais entre nós para sempre.
Ficou mais feliz de ver Miguel do que triste de morrer.
Ele é um exemplo de como não ser tragado pela infelicidade.
O quanto não devemos nos afundar na angústia, seremos maiores do que as fatalidades e os reveses, pois poderemos agradecer o que somos e o que recebemos.
Ainda que nossa vida esteja perdida, temos uma chance de eternizá-la ao nos entregar para a amizade do outro.
Miguel mexeu os olhos em resposta. Sem ter certeza se estava rindo pelo carinho surpreendente de seu cão naquele momento ou chorando pelo acidente trágico.
As lágrimas escorriam, ao mesmo tempo, de contentamento envergonhado e de dor exagerada. Não conseguia separar os sentimentos.
Isto é a grandeza do humano, a imprevisibilidade do amor, que também mora na alma dos cachorros.
Publicado no jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), Edição N°
3 comentários:
Que lindo! Amei!
Não sei explicar por qual motivos meu peito saltou depois que li essa crônica. Não sei o motivo que fez meus olhos lacrimejarem...Quem sabe pelo fato de eu reconhecer mais humanidade em um cão, em contraste por existir tantos homens animais sem um traço de humanidade, lobos cruéis que forjam de mentiras para atos de crueldade com seu semelhante. Maravilhoso texto Carpinejar, maravilhoso!
Mexeu!
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