domingo, 28 de junho de 2015

AMOR EM VÃO

                                                                                Arte de Eduardo Nasi

Ele estava sentado numa cadeira de rodas aguardando atendimento, preso ao braço do soro. Tinha 80 anos para mais ou 80 anos para menos + a doença.

Sua senhora baixinha e de coque, amorosa e atenta, em cadeira próxima, com olhar de agulha de crochê, recebeu a ficha de atendimento da enfermeira.

Conferiu, e não se guardou. Mudou radicalmente de feição, embrabecida. Deduzi que fosse cobrança indevida do hospital, mas não era. Questionou o marido:

- Você colocou aqui que não tem religião! Como que não tem religião?

- Não me lembro.

- Como é que vai esquecer Deus numa hora dessas?

- Não sei. Não sou praticante.

- Mas Deus é praticante contigo, vive te salvando.

- Não tem importância este detalhe.

- Como é que não tem importância? Acha que Deus não lê os prontuários médicos?

- Só o que faltava, claro que não lê.

- Lê sim, para ver se assumimos ou não a nossa fé.

- Não exagera, mulher. Está sem dormir, cansada, e vem delirando.

- Delirando? Não, precisa mudar aqui, com sua letra. Calma aí, pegarei uma caneta da mesma cor.

- Não precisa, deixa assim. Não vou ficar rasurando o prontuário.

- Prefere ficar desassistido?

- Deus não é um plano de saúde.

- É mais do que um plano de saúde, é o princípio, o meio e o fim.

- Pelo jeito, estou no fim.

- Não seja teimoso, hômi. Não entrega os pontos agora.

- Não declarei minha religião, não é um pecado mortal.

- É um pecado, sempre peço para rezar uma missa para a tua recuperação. Tudo o que faço não tem sentido: as velas, o dízimo, as promessas. Arruma, nesta linha, quer os óculos? Onde colocou os óculos?

- Não mudarei nada, não tenho religião.

- Não tem religião, é? Então vou embora.

- Por quê? Para de ser tola! Não me deixará sozinho, o médico não chegou.

- Tola coisa alguma. Se não tem religião, não estamos também casados. Não existiu a nossa cerimônia.

Ela arrancou sua aliança, jogou no chão, tomou sua bolsa caramelo e virou as costas.

Enquanto o velho se esforçava para girar a cadeira e recuperar o anel, ainda o ouvi resmungar:

- Deus, dai-me a paciência.







Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
20/05/2015

Um comentário:

Rafaela Pires disse...

A velha contradição prática versus teoria.No momento, tenho me questionado muito a respeito.Detectar no outro fiz e faço com frequência,mas comecei a olhar para meu próprio umbigo e me senti uma fraude.