terça-feira, 30 de junho de 2015

ESTRANHAMENTOS


                                                                               Arte de Eduardo Nasi

Vazamento é parar sua agenda.

Minha cozinha estava ensopada devido a um encanamento quebrado da vizinha de cima.

Ivania, a médica do prédio, não tinha como tomar banho ou ligar a pia da cozinha, senão meus tapetes viravam canoas.

A urgência do contratempo fez com que seu hidráulico baixasse em meu apartamento como um relâmpago. Apareceu mais rápido que azulzinho em período de campanha.

Sem empregada em casa, desisti de qualquer outro compromisso pela frente. Quando o hidráulico diz que levará duas horas pode contar com 4h de serviço. É sempre o dobro da promessa, isso quando não leva dias dependendo da infiltração. Isso quando não leva meses dependendo da fé do proprietário.

Sim, fé!, a primeira frase do hidráulico foi:

- Preciso de sua fé para resolver rápido.

Não sei como ele age quando cumprimenta ateus. O pedido era tão inusitado que quase acendi uma vela. Concordei com a cabeça, completei o sinal-da-cruz e parti para ajeitar a residência.

Enquanto ele trabalhava e elogiava seus filhos universitários, enquanto narrava sua vida em ordem epistolar, lavei a louça, sequei e guardei todos os pratos e vasilhas, passei roupa, cozinhei para meu filho Vicente, limpei a geladeira daquelas sobras de domingo que nunca mais conhecerão a primeira divisão e sambei com o aspirador na sala. Aproveitei o tempo encarcerado no lar para dar conta das inúmeras tarefas domésticas. Não tinha condições de relaxar e escrever com alguém solicitando a toda hora pano velho, jornal, lanterna, arame. Assumi o papel de estagiário da construção civil, fingindo acelerar o que não havia como apressar.

Não demorava nem um eco para atender seus chamados. Solícito, atento, como se realmente estivesse disputando uma promoção.

Depois de falar sem parar de si, ele me encarou de abrigo velho e havaianas, um sujeito estranho engalfinhado na espuma e no ferro, na limpeza e no pesado, e me questionou:

- Que horas chega seu patrão?








Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira03/06/2015

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