domingo, 6 de dezembro de 2015

MINHA AMANTE


Preciso confessar, amor: tenho uma amante. Você deve ter percebido. Não há como esconder mais. Antes você reclamava, agora cansou diante das excessivas evidências irrefutáveis. O escândalo de seu silêncio me fez admitir. O silêncio é o último estágio da briga. Entendo que nunca me tratará da mesma forma, que estraguei a lealdade, sofrerei os efeitos colaterais da verdade. Sim, a verdade cura mas somente depois de muita dor e medicação.

Os amigos são contrários à minha franqueza, adeptos de mentir até o fim, mesmo depois do fim. Mas não consigo, pois lhe devo lealdade, eu lhe amo mais do que me amo.

Eu tenho uma amante. Há tempo. Desde antes de nossa relação. É uma amante vitalícia, uma amante estável, um caso antigo.

Você já identificou o dia. É toda a noite de segunda-feira. Sumo por duas horas, não atendo o celular por nada desse mundo. Quando retorno, estou podre de cansado, suor seco, pele lívida. Não demonstro vontade para mais nada, nem para o nosso sexo. Mal converso, a culpa não me ajuda. Vou direto ao banho, ponho bermuda e camiseta, aqueço o que acho na geladeira e deito cedo, sem direito à repescagem das histórias de nosso trabalho. Eu me encontro morto após a escapada, a amante me exige demais. Ela é gulosa, possessiva, autoritária. Desejava que eu me separasse, não aceitei, não me vejo longe de você. Desejava que ampliasse os dias da semana, recusei também, seria ostensivo e chamaria atenção.

Eu tenho uma amante, duro desabafar, fui fraco por errar e por revelar, não aguentei sustentar a minha hipocrisia.

Está explicado por que volto cheio de arranhões, hematomas, machucados. Fico com receio de permanecer nu em sua frente, venho cobrindo as pernas e o dorso quando me visto no quarto. Tenta se aproximar, e me afasto. Não há como justificar a herança da violência em minha pele. Disfarço como posso, com pomadas e cremes. Nunca cicatriza ou desaparece rapidamente, gerando angústia da delação. Pedi que ela não me batesse mais, só que não muda sua natureza violenta - me agarra e me puxa e me derruba no chão.

Tenho uma amante. No momento em que sou chamado por ela, saio de perto para atender o celular. São várias ligações pela manhã, antes do nosso encontro. Converso baixinho, envergonhado com a confusão sentimental. Apago o sinal sonoro do WhatsApp e as mensagens da tela. Sofro tentando sufocar os sinais, despistando e me mantendo alegre e solícito para não entregar o nervosismo.

Compreendo que é uma falta de tato assumir que tenho uma amante publicamente. Dirá que é uma humilhação. Porém, não existe jeito fácil. Que, pelo menos, eu sirva de exemplo para outros homens com vida dupla, que tomem a coragem de expor seus segredos.

Tenho uma amante, amor, desculpa. Certamente perguntará quem é. Aposto que conhece e sabe o nome da destruidora de nosso lar: é e sempre foi o futebol.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.44
Porto Alegre (RS),  06/12/2015 Edição N°18377

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