terça-feira, 22 de dezembro de 2015
NÃO FOI ASSIM
Almoço familiar é uma guerra de recordações. Ainda mais lá em casa: prole numerosa, formada por escritores, promotores e juízes. Há uma disputa vaidosa por quem conduz a melhor história. Um interrompe o outro. A falta de educação é uma arma para ganhar o debate. Falar de boca cheia é uma obrigação para não ficar atrás na conversa. Não há timidez, recato, respeito, trata-se de jogo sujo do início ao fim da refeição, não faltam cotoveladas, chutes por debaixo da mesa e respingos de molho na roupa. Comer é o de menos, desde criança participo de um concurso de contos.
Começo a ciscar uma lembrança:
– A minha tia dizia que fui trocado no hospital.
A mãe logo interrompe:
– Nada a ver, confunde a tia com a sua irmã.
O pai muda o personagem:
– Foi a sua avó.
Insisto no tom professoral, como se a luz me focasse sem a ameaça de o público interferir no escuro. Faço da cozinha o meu palco, as vaias não me pressionam.
– A minha tia me encarava estranho e chamava a atenção para uma incoerência: nasci cheio de pintinhas e depois no berçário não apresentava mais nenhuma mancha no rosto. Como? Ela suspeitava seriamente da troca.
Os irmãos me censuram:
– Não pode lembrar, era muito pequeno. Aposto que é invenção.
É necessário manter a tranquilidade e não ceder à mudança de rotas do pessoal. Passo a bandeja de arroz, a salada, respiro fundo o intervalo comercial e não perco o estribilho.
– Pedi para a mãe comprovar que era mesmo filho dela. Ela me trouxe a certidão de nascimento. Ora, não sou idiota, poderia me colocar como filho no cartório e isso não prova nada.
O pai questiona quando que ele vai aparecer na lembrança.
– Pai, você não está nesta história – resmungo.
Prossigo. É um esforço enfrentar os parentes para terminar uma piada ou uma evocação. Eles têm a mania de duvidar do jeito que memorizamos a infância.
– Mantinha a certeza de que fui trocado no hospital. A mãe, chateada com a minha desconfiança, decidiu pôr fim às dúvidas e me trouxe um envelope pardo. Abriu vagarosamente com as fotos de meu avô: a mesma cara amassada, o mesmo desvio de septo, os mesmos olhos caídos, a mesma testa larga. Olhei, olhei e lamentei: “Coitado, ele também foi trocado no hospital”.
Enfrento as risadas desonestas da turma, sinto o cheiro do deboche. Ouço gritos de protesto:
– Não foi assim.
O pai conta uma versão. A mãe conta uma diferente. Carla, Rodrigo e Miguel tomam caminhos absolutamente inesperados na interceptação dos fatos. É de enlouquecer para qualquer estranho convidado a comer conosco.
Desisto de tentar definir a verdade. O que descobri ao longo da vida é que todos, inclusive eu, estão mentindo.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 6, 22/12/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°18393
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