segunda-feira, 6 de julho de 2015

BATIZADO DO TÊNIS


Mantenho até hoje pânico de sair na rua com tênis novo.

As duas décadas de experiência desde a escola não aliviaram a ansiedade.

Minha vontade é comprar tênis usado, para não sofrer com o receio infantil que se esconde intacto nos meus olhos de meia-idade.

Sofria com o batizado dos colegas. Bastava aparecer com um tênis branquinho que a turma fazia fila para batizar.

Nunca estudei em seminário, mas a turma virava um bando de padres sedentos para aspergir lama no recém-nascido.

Havia um delator espertinho, que gritava ao tocar o sinal:

– Fabrício está de tênis novo!

Eu procurava argumentar em vão:

– Só lavei, só lavei.

Experimentava no recreio um corredor humano que não permitia fuga. Sem apelação, escapatória, adiamento, liminar. Fechavam a porta.

Em minutos, o tênis ficava barrento, sujo, com manchas pretas de piche. Mais humilhante do que um dia de chuva.

Recebia o mapa de Porto Alegre nos cadarços – herança das longas caminhadas das crianças, que vinham de longe para a escola, atravessando vários bairros a pé.

Meus dedos terminavam esmagados e achatados. São absolutamente tortos devido a esse trauma silencioso.

O primeiro que se aproximava para inaugurar era gentil, já os demais compensavam o atraso com força e truculência. Aproveitavam o contexto para me chutar e descontar 
diferenças de brigas históricas do futebol. Os pisões se transmudavam em coices.

Adoecia de remorso ao voltar para casa. A mãe protestava injustamente, ralhava que joguei bola logo na estreia do presente, que não cuidava de minhas coisas e não compraria mais nada.

Tratava-se de uma ameaça séria numa época de recatado consumismo e de poucas opções (ou se adquiria Conga ou Kichute ou Rainha).

Eu não tinha outro tênis, era um só até arrebentar, até aparecerem as unhas, até a sola se esfacelar como pão molhado.

Pai e mãe analisavam o estado dos nossos calçados diante da reivindicação de que precisávamos de um segundo par.

No jantar, enfrentávamos uma vistoria tensa, algo como reunião para melhoria de salários entre CUT e sindicato patronal.

Os pais conversavam, cochichavam e vinham com o terrível parecer:

– Dá para usar mais uma semana.

A semana durava um mês e meio.

Os tempos de quem sofre e de quem cuida são sempre diferentes.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 6,  23/06/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18202

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