segunda-feira, 6 de julho de 2015

DECEPÇÕES AMOROSAS

Arte de Eduardo Nasi

Já gerei decepções, mesmo quando não cogitava corresponder a uma idealização.

Somos o que também o outro nos sonha, o que é um atalho de pesadelos.

Em uma noite violácea, como são as noites quentes estreladas, a namorada bebia na cozinha quando reparou num objeto com frisos laranja e preto de pé na sala, preso num suporte.

Ela gritou, sem esconder o entusiasmo. Os olhinhos brilhavam:

- Você tem uma guitarra! Toca para mim?

Tudo bem que estava escuro, à meia-luz, mas não era uma guitarra, mas um aspirador de pó de última geração, que se adaptava aos movimentos do corpo.

Ainda expliquei:

- Queria há muito tempo.

E demonstrei que uma das peças era removível e funcionava como aspirador portátil, de mão, para vãos e mesas. Falava com entusiasmo e orgulho, repetindo as palavras de Excel do vendedor.

O rosto dela se deslocou do ocidente ao oriente em minutos. Para quem aguardava um guitarrista descolado e senhor da madrugada, deve ter sido frustrante encontrar uma dona de casa vespertina e careta. Não transamos naquela noite, ela enfrentou sérias dificuldades para mudar o seletor materno e doméstico para o de homem de sua vida, selvagem e imprevisível.

Como estávamos nos conhecendo, não havia como prever o que eu era, qualquer início de relação é envolta em mistérios, pistas e descobertas. Vi que ela acalentava a fantasia de um músico-poeta, entoando suas canções prediletas ao pé do ouvido.

Mas não menti, não fingi, escolhi a verdade como passaporte para a felicidade, quando o costume é entrar nela de forma clandestina.

Realmente guardo uma paixão ardente por faxina, por esta possibilidade barata de reformar o ambiente apenas com a limpeza.

Eu despertei cedo para inaugurar o aspirador. Ela dormia.

Procurei fechar as portas e vedar o som. Poderia ter esperado a minha companhia ir embora, só que não me contive. Todo adulto ansioso é uma criança.

Vestido de abrigo e de camiseta rasgada, voei pela sala e cozinha baixando e levantando a mangueira de vento. Aspirava até o teto. Ria ao destruir uma teia de aranha transparente ou ao capturar ciscos do alto da estante.

Foi quando testemunhei a namorada, pasma e atônita com a minha movimentação, parada no corredor:

- Pode parar com esta barulheira?

Naquele momento, diante de sua advertência, eu me senti uma pomba-gira de Keith Richards, Leonardo Wohlers, Stevie Ray Vaughan, Chuck Berry e Robert Johnson, um guitarrista tocando na garagem, envaidecido pelos seus acordes altos e ensurdecedores.

Ninguém me arrancaria do meu transe inspirado.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 24/06/2015

Nenhum comentário: