domingo, 5 de julho de 2015

FLORESCER OS BOTÕES


Não quero herdar da casa materna os 8 mil livros da biblioteca.

Não quero os quadros de artistas famosos.

Não quero os móveis antigos ou mesmo a cadeira de balanço onde fui amamentado.

Não me interessa nenhum bem de um futuro inventário.

Não desejo nada dali de dentro, a não ser a caixinha de botões. A caixinha de botões que está na
primeira gaveta da cristaleira da sala.

E não passarei mais frio na memória.

O desinteressante pote rosa, entornado até a borda, que nem fecha direito a sua tampa de enroscar, lascada do lado direito.

É um museu das sobras da família. É um achados e perdidos de nossos trajes. Tem botões extraviados ou reservas de três décadas, de camisetas e casacos do meu pai, dos meus avós, dos meus irmãos.

Camadas e camadas geológicas de esquecimento doméstico, recuperadas do chão por uma atenta sentinela do guarda-roupa. Uma montanha de tipos e modelos, desde os embutidos aos duplos, dos foscos aos perolados, de todas as cores e formas.

Era o estojo de primeiros socorros antes de um encontro importante, em que notávamos que não tinha como fechar a camisa.

Lá vinha a mãe acalmar o nosso desespero. Sempre achava o botão certo, o botão ideal, o botão igual. Impressionava-me a quantidade inesgotável de gêmeos guardados naquele berço miúdo.

Havia uma alegria quando ela colocava o fio preto ou branco na cabeça da agulha e nos prendia de novo às certezas da rotina. Ela recuperava a ordem natural do nosso crescimento, como se devolvesse o pássaro ao ramo, o peixe ao rio, a estrela ao céu.

Dedicava tardes esparramando seu conteúdo na mesa, buscando adivinhar a origem de cada uma das peças, realizando combinações, brincando de estilista de brechó, remontando o meu passado de menino.

Mas confesso que também havia uma tristeza no quebra-cabeça dos pequenos objetos, uma melancolia, botões de flores que ficariam fechadas e jamais desabrochariam com o toque das unhas.

Significava ainda restos das pessoas, rastros de beijos e amizades, aguardando uma adoção desesperada, uma nova encarnação.

Ia além. Imaginava os botões como testemunhas dos principais acontecimentos de uma vida. Serviram para o desabotoar os seios da primeira noite de uma mulher ou para fechar a blusa durante a despedida de uma paixão.

Os botões são as âncoras de nossas mãos.

Os botões são as moedas das roupas, o troco de nossas ambições.

O botão é o sino do pano.

O botão é o brinco da veste, o brilho do detalhe.

O botão é um estetoscópio natural. Sem ele, o tecido não escuta a pele.

O botão é a maior das insignificâncias.

Você somente lembra que precisa dele quando perdeu. Assim como o amor de mãe.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  16/06/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18195

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