Demoro a me recuperar dos tombos. Não aguento o período de recuperação.
Sempre mexo nas cascas dos machucados. Nunca a minha pele teve a chance de se regenerar naturalmente. Passo do limite, começo retirando as bordas secas e invado o úmido da purgação.
Jamais me controlo, desde a infância.
Na escola, cutucava o pisado debaixo da classe. Ao apressar o seu fim, retomava o seu início. Não me movia pela curiosidade infantil e biológica de entender o processo, e sim para me livrar do incômodo. Óbvio que a calça do uniforme vivia manchada de sangue. Eu mesmo encontrava um jeito de me ferir e ampliar a data de validade da ferida.
Esfolar o joelho representava meses de recuperação. Transformava a expectativa convencional de uma semana em longo martírio de coceira.
Minhas pernas estão depiladas involuntariamente nas canelas. De tanto mexer nas batidas, criei cicatrizes onde não deveria constar nenhum sinal.
Acentuava a gravidade dos escorregões e encontrões do futebol.
Quem me dera se a minha impaciência estivesse reduzida à epiderme dos costumes.
Infelizmente, carreguei a mesma ânsia para dentro de namoros e de casamentos. Não percebia que as piores ofensas acabavam por aparecer no meio da briga (as que desencadeavam a discussão eram simbólicas, de menor gravidade).
Quando surgia uma insatisfação, não deixava esfriar. Não aceitava que cada um se aquietasse em sua solidão para sarar o ruído com silêncio e pensamento.
Não há como evitar acidentes e quedas na vida a dois, mas não realizava o simples curativo perante um revés: limpar a zona infeccionada das palavras, cobrir o assunto por dois dias e aguardar a melhora.
Já coçava com as unhas compridas. Já cavoucava a chaga. Já pretendia resolver na hora. Já pressionava a minha companhia a tomar uma decisão, a explicar seu posicionamento, a emitir uma sentença.
De algo muito tolo (uma piada no contexto errado, uma frase torta, um descontentamento com um gesto), convertia em tudo ou nada, naquele extremismo de exigir desculpa ou terminar a relação.
Não admitia a existência breve de uma pequena ferida. Não guardava as mãos. Não saía de perto.
Fixava-me no desentendimento a ponto de ampliá-lo em impasse.
O que é físico é também emocional.
Assim como no corpo, um ferimento na pele do orgulho, diante da insistência de insultos e acusações, pode dar origem a uma lesão crônica, que persistirá durante anos.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS), 12/07 /2015 Edição 18231
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Porto Alegre (RS), 12/07 /2015 Edição 18231
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