Arte de Eduardo Nasi
Não escute com os dois ouvidos o que uma mãe diz.
Eu realizava esta operação perigosa quando criança
Não obtive os melhores resultados.
A mãe sempre contava histórias dos santos antes de dormir.
A que eu mais me intrigava era a conversão de Francisco de Assis: quando ele entregou suas roupas ao pai Pietro Bernardone em praça pública, absolutamente nu, afirmando que não devia mais nada para ele e se oferecendo em absoluto a Deus e assumindo uma nova identidade (no ato, mudou o nome de Giovanni para Francisco).
Aquilo me marcou tanto que procurei imitá-lo.
Num domingo de Gre-Nal, com a família reunida na frente da televisão, aguardando a possibilidade do clássico ser transmitido ao vivo pelo canal 12, instantes antes da decisão do Campeonato Gaúcho de 1979, tirei os os meus trajes e me dirigi para a sala onde estava a família reunida (incluindo primos e tios).
Pelado, somente de botas (na minha visão, dependia das botas ortopédicas para chegar ao paraíso), entreguei a camiseta, a calça, a cueca e as meias ao pai. A sala parou para me ouvir. Foi um minuto de tenso silêncio, homenageando a minha morte social.
- Toma, sou filho de Deus!
O pai não compreendeu absolutamente coisa alguma. O que significava seu filho de seis anos em pelo na frente de todos repassando suas roupas?
- Estão sujas?, ele ensaiou diminuir o drama.
- Não, pai, suja está a minha alma. Toma, entrego os meus pertences e o meu sobrenome.
- O quê? Tá maluco. O jogo vai começar? Bota um agasalho, guri!
- Não me interesso por futebol, só em ajudar as pessoas.
- Está possuído pelo demônio! É o que faltava ter que chamar um exorcista…
Ele me pegou pelo braço e me trancou no quarto para refletir sobre o meu descomportamento. Ficaria de castigo até pedir desculpa. Eu juro que não absorvi a confusão dos acontecimentos. O que deu errado? Como que ele avisava que estava possuído pelo demônio se estava me santificando naquele instante?
Fracassei como cover de Francisco de Assis.
Ninguém jamais aceitou a minha atitude na família, ainda acham que sou um exibicionista desde pequeno, não entenderam o fundo de minha angústia, o tamanho de minha renúncia, de que eu seguia o caminho irreversível da santidade.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 23/09/2015
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