Arte de Eduardo Nasi
Nunca reparei na porta da residência de minha mãe e da minha infância. Por mais que tenha atravessado a sua fronteira milhares de vezes. Por mais que tenha girado a chave em sua fechadura. Por mais que tenha mateado em sua soleira. Por mais que tenha trocado os adereços de bem-vindo.
Ela é de ferro, pesada, lembrando um cofre, porém é toda constituída de vidro, com a leveza da armação de uma janela.
Arranha o chão, só que não pode ser batida com força senão quebra a vidraça.
Com uma base fixa e instransponível, mas absolutamente vulnerável por cima.
É forte e fraca ao mesmo tempo. Uma pedrinha arremessada já arrebenta sua estrutura. Só que ela tem o peso de um tanque de guerra.
A porta sou eu: incoerente, contraditório, instável, que dissimula suas feridas e ferocidades.
A porta é a minha família. O espírito de minha família, que diz sim com facilidade para depois complicar, nada é transparente em suas reuniões e encontros, há um quê para ser decifrado nas frases mais bobas, uma segunda intenção latejando nos discursos mais banais.
Papear com a mãe é completar palavras cruzadas, discutir com o pai é resolver criptogramas, eles não expressam o que falam.
Falar é disfarçar o que se pretende. Falar é omitir. Falar é guardar.
Como se fosse falta de educação dizer aquilo que se quer. Fui ensinado a não entregar as minhas vontades, pois a facilidade seria ofensiva, sinal de que somos oferecidos e fracos.
A educação de ferro esconde o nosso desejo de vidro.
Não digo que estou com sede. Antecipo a previsão meteorológica, destaco o tempo infernal, aviso que não paro de suar.
Não sou jamais direto. Espero que alguém me ofereça um copo d’ água. Não peço o copo d’água.
O meu corpo e as minhas palavras têm confissões sempre diferentes.
Eu embaraço todos que estão próximos. Poucos captam as minhas reais intenções, com dificuldade de definir se converso sério ou debocho.
Para alguns, sou um sedutor. Para outros, sou profundo. Sou apenas um homem confuso. Como a porta de casa, indecisa entre o presídio e a estufa de flores.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 08/07/2015
2 comentários:
Ótimo texto, Carpinejar!
Reflexivo ao extremo!
Grande abraço, sucesso e ótimo final de semana!
"A educação de ferro esconde o nosso desejo de vidro."
Adorei essa frase!
Ela sintetiza bem toda a ideia central do texto. Essa máscara de proteção que temos(todos nós mesmos), acaba nos atrapalhando, e muito, nas nossas relações durante o percurso da vida ou na convivência com o mundo exterior, ou seja, o mundo além da "porta de nossa casa".
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