Na cozinha, tenho a gaveta dos mistérios. Foi dessa forma poética que a minha mulher chamou a segunda gaveta do armário.
Uma gaveta das extravagâncias caseiras, com tudo o que eu não imaginava possuir, que não lembro de ter comprado ou recebido de presente.
É o Estreito de Bering dos meus objetos, onde as coisas mais estranhas se misturam e criam novas vidas, ajudando-me a ser menos primata.
São inutensílios mais do que utensílios.
Quando a minha esposa pergunta se contamos com algo, mesmo que não compreenda do que está falando, já assimilei que pode estar na gaveta dos mistérios.
“Dá uma olhada ali!” é a minha resposta mais adequada.
Foi assim com o esmagador de alho. Nem passava pela minha cabeça que alguém excêntrico e louco tivesse inventado um espremedor para não feder as mãos.
Foi assim com o fuê e seus cabelos metálicos para bater as claras. Dez contra um que ignorava o batismo dessa colher.
Foi assim com o almofariz, um delicado pilão, moedor de grãos, cujo formato desconhecia.
Foi assim com a mandolina. Quando a esposa questionou sua existência, pedi que repetisse três vezes. Achava que escutava errado a palavra. O incrível é que havia uma mandolina na gaveta dos mistérios. Como pode? Fui descobrir que é para ralar vegetais. Não prestei a devida atenção nas aulas de técnicas domésticas na escola.
Entre os conhecidos cutelo, concha, funil, espátula e saca-rolhas, a despensa convida habitantes irreais para se juntarem à mesa. Há sempre um nome difícil e de pronúncia misteriosa. Às vezes, penso que aquilo não é uma gaveta, mas um dicionário.
Não posso mentir que me deu medo no instante em que a mulher me pediu para passar o cuscuzeiro. Tudo tem limite. Vá lá que eu ache.
Publicado no jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), Edição N°
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