quarta-feira, 7 de outubro de 2015

NÃO VISITE A NOSSA COZINHA, ÁREA DE GUERRA


Arte de Eduardo Nasi

Tenho os meus panos de cozinha.

Panos velhos, manchados, esgarçados, com os desenhos de uvas e flores apagados, mas que secam e limpam que é uma beleza.

Formam um conjunto de paninhos idosos, com a preferência de sentar em minhas mãos. Nem entram em fila de espera. São curingas que servem para diferentes atividades: lustrar móvel, desinfetar, sugar a aguaceira das superfícies.

A vida era simples até a minha mulher profissionalizar a nossa área de limpeza.

Ela anda querendo tirá-los de circulação. Um caso evidente e abominável de extermínio.

Não posso mais largar um de meus panos de prato à mostra no balcão, dar bobeira, que ela pega e põe no lixo sem piedade, sem perguntar, sem remorso da história e da dedicação daquelas peças.

E não tenho como comprar panos velhos. É como o tênis usado que fica bom, entende? É quando o tênis perde aquele branco constrangedor e passa a ser humano. O mesmo ocorre com meus paninhos. Os paninhos são a minha gente, ora bolas, são a minha família.

Mas ela decidiu de terceirizar o espaço, não há mais como misturar mais nada: comprou um pano amarelo para o fogão, o perflex para uso exclusivo da cozinha, um de prato que não posso empregar para mais nada a não ser secar, um pano para cera, um pano para esfregar o chão, um pano para a privada e o banheiro.

Agora é um exército de panos inéditos que me confunde: penso muito para definir qual é o tipo de quê. Antes apenas limpava. Hoje é decoreba, hoje me revejo memorizando a tabuada com palitinhos de fósforos.

Para não perder tempo, comecei a esconder os meus panos afetivos da chacina do lar.

A cozinha transformou-se em disputa pelo domínio do morro.

Guardo meus panos no alto da secadora, lá no fundo, em uma caixinha de papelão. Ela não tem como enxergar. Um outro esconderijo é na gaveta junto dos meus calçados excêntricos, que ela não gosta, onde mantenho o par de sapatos de Bozo, como ela mesmo define.

Não entregarei os pontos.

Sou eu e os meus paninhos contra a modernização do serviço doméstico.

O fim é certo, o que me resta é adiá-lo.

O homem pode virar o rei da cozinha, mas jamais terá a coroa. Por enquanto, e somente por enquanto, escondo o meu manto para não ser irremediavelmente deposto.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 07/10/2015

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