Um casal de amigos toma banho juntos todo dia.
Não é exagero: todo santo ou maldito dia. Ambos não abdicam do hábito.
Não se unem para sexo ou transas aquáticas, não se abraçam para sedução ou selvagerias líquidas.
Nenhuma pornografia como é possível imaginar. Pois casa não é motel, é refúgio do tumulto do mundo. Os espelhos não estão no teto, mas nos próprios olhos.
É banho para a ternura, para a transparência.
É banho para conversar e se atualizar, lavar o silêncio, acalmar a ansiedade.
É banho para chorar quando necessário, brincar de espuma, rir dos perigos e organizar os desmandos do trabalho.
É banho de amizade, de cumplicidade auditiva, de intimidade da pele, para saber como foram a manhã e a tarde de cada um e preparar a barca dos sonhos.
É banho em que os joelhos e os cotovelos são lembrados, em que as axilas e as costas são esfregadas.
É banho de açúcar, melhor do que o sal grosso para espantar o mau olhado.
Dividem o xampu e a esperança. Enquanto um se ensaboa, o outro se enxagua. O revezamento é perfeito como uma dança, como uma coreografia.
Estão nus, sem reservas, sem receios, sem caretas e poses, sem mentiras e distorções, com a humildade de se colocar à disposição.
Como Adão e Eva antes da maçã. Antes da amargura.
Adultos que escolheram a água como o refúgio infantil, puro, um confessionário onde nenhum filho abrirá a porta com novas urgências.
O box é uma piscina vertical, o box é uma hidromassagem de pé.
O box é uma varanda fechada, uma Veneza em miniatura.
O box é uma chuva particular, em que vão chapinhando nas poças e as vozes buscam alguma música brega para distrair as dificuldades.
E se um já tomou banho antes repetirá a operação para não perder a parceria. Mesmo que isso signifique tirar o pijama e deixar o calor da cama.
Não passam um dia sem tomar banho lado a lado. Descobriram que a lealdade é abrir um espaço fixo para a palavra.
Os casais devem tirar um momento de sua rotina para estarem absolutamente entregues. Um momento apenas de atenção integral, para renovar o ímã da felicidade.
Pode ser o café da manhã, o almoço, uma horinha de chimarrão no entardecer, uma caminhada pela praça, a leitura de jornais, o colo de uma novela.
É dividindo a solidão que os dois serão um só pela vida inteira.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.40
Porto Alegre (RS), 04/10/2015 Edição N°18314
7 comentários:
Excelente crônica! Vc arrasa!
Excelente crônica! Vc arrasa!
QUE LINDO!
Fique em paz,
Amanda.
lindo lindo, me identifiquei. Momentos únicos para compartilhar a sós com quem se ama.
"Os espelhos não estão no teto, mas nos próprios olhos."
Lindo!
É tão aconchegante ler textos e pensamentos assim, ainda mais hoje em dia.
Fazem falta, e como.
oeraumavezdeverdade.blogspot.com
"É dividindo a solidão que os dois serão um só pela vida inteira." Adorei a crônica, ela chama à reflexão.
Que crônica linda!
Faz a gente pensar no conforto que é ter alguém pra dividir umas horas do dia, e ter onde descansar a alma.
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