sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

O ILUMINADO

Com a mudança de endereço, fica-se desalmado, frio, indiferente. É empacotar sessenta caixas e desempacotar depois todas uma por uma. Não existe modo de suavizar a raiva e enganar o ressentimento. E só você pode realizar a empreitada, só você conhece o conteúdo e reconhece a importância de cada item - dificilmente conseguirá delegar a tarefa para um estranho, ainda que pagando.

É o apocalipse do casamento. O inferno deve ser exatamente a condenação demoníaca de realizar uma mudança diária e jamais pôr fim à transferência. Não consigo imaginar castigo mais severo: mendigar eternamente por papelão nos supermercados, colocar os pecados dentro, adesivar, carregá-los por cinco andares de escada e reabrir para ser avisado no término que você não mora ali e se enganou de destino.

Não há como manter a paciência no carreto. A vontade é jogar tudo fora e residir num hotel. Talvez comprar tudo de novo para não ter que decidir o que presta e o que não presta, o que combina com a decoração e o que é fundamental ainda conservar para o futuro, na repescagem do alto dos armários.

Aquilo que foi guardado com esmero e dedicação durante décadas, de repente, no final do cansaço, é posto no lixo sem nenhuma piedade. Nunca faria isso se estivesse descansado. Cartões de amor são rasgados, fotos raras da família são picotadas, presentes simbólicos são destruídos, toalhas e lençóis levemente amarfanhados são descartados, relógios antigos são depenados, com os seus ponteiros insanamente arrancados.

A operação atinge o nível máximo do f...Ou não existe mais lugar nos cômodos ou teria que remanejar a ordem da prateleira que levou horas ou simplesmente não aguenta enxergar mais nada pela frente e o mero ato de levantar o braço. O gesto inofensivo de abrir uma caixa já lhe irrita, gera fastio por ter vivido.

A minha esposa me tocou no ombro durante o nosso vaivém de tralhas e eu virei o rosto furioso, gritando:

- O que foi?

Ela jura com os dedos cruzados que eu estava com um olhar de psicopata e que parecia fora de mim, pronto para o desatino. Saiu de perto para não ser também descartada.

Não duvido. Mudar-se é também mudar a personalidade por completo. Quem era doce acaba amargo, quem era educado acaba rude, quem era saudosista acaba curado.

Publicado em Donna ZH em 21/01/2018

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