sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

VÓ FLOR

E quando a mãe era analfabeta. E quando a mãe analfabeta só podia se comunicar com os filhos espalhados pelo mundo por cartas.

Não havia telefone disponível na cidade de Salinas (MG), não havia nenhuma forma de diálogo, a não ser o papel e a tinta.

A vó Flor, da minha amiga Fernanda, na metade do século passado, driblava os desafios para obter notícias de suas crias. Ela tinha a vizinha do lado esquerdo para ler as cartas. E tinha a vizinha do lado direito para escrever as cartas de volta. Duas comadres que serviam de seus olhos e de suas mãos.

Quando aparecia uma carta, ela corria para a casinha verde da vizinhança, um passarinho equilibrando farelos de bolo no bico. Ela tremia, querendo ver o que havia por detrás da caligrafia miúda. Como observar uma vitrine com as suas próprias roupas e não contar com dinheiro para comprar.

Ela se emocionava, impaciente, a cada linha decifrada: - O que mais? O que mais?

Não conseguia esperar o final. Seus filhos se transformavam em sua novela favorita, capítulos com relatos de namoro, do estado de saúde, de quanto ganhavam no emprego, das dificuldades de adaptação em cidade grande.

Depois corria para a casinha vermelha e pedia para a outra vizinha escrever a resposta antes que esquecesse a emoção. Ditava o que desejava de pé, num único fôlego, lutando contra a gagueira da memória, caminhando ao redor da mesa. Apanhava as palavras no ar.

Desejava dizer tanto, mas tanto que sempre faltava papel para a saudade. A vizinha a estimulava a pôr um ponto final.

- Flor, não tem mais espaço, acabaram as linhas.

Então, sem vazio para mais nada, além do vazio no peito, ela se despedia: "A bênção, filho, não canse de me escrever!".

Sozinha em casa, já viúva, a vó Flor mantinha o ritual da esperança, até o próximo ataque de alegria dos Correios. Ligava o radinho de pilha, desembaraçava a fita rosa da coleção de cartas, abria a tábua e passava uma por uma as correspondências recebidas. Com a sensação de que estava engomando as camisas de seus filhos.


Publicado em Jornal Zero Hora em 06/02/2018

Um comentário:

Lourdinha Vilela disse...

Que maravilha! Poder recordar esse tempo bom,de paz, tempo que parecia se alongar, para se viver intensamente, livre da escravidão da tecnologia.Um tempo em que eu escrevia cartas para as minhas amadas tias em Minas Gerais. Elas até hoje
guardam algumas delas.Era tanto assunto para dividir com elas, as minhas descobertas,as alegrias , as tristezas,para falar do tempo e de suas intempéries, da chuva, do calor, do frio e não da falta de tempo.Eu tinha que esperar muito tempo até que elas chegassem aqui em Brasília para nos visitar.Elas vinham todo final de ano para passar o Natal.
Parabéns pela excelência. Obrigada pela leitura.